Gerana Damulakis
O Aprendizado apreendido
A épica e a
dramaturgia foram devidamente descritas e rotuladas desde
Aristóteles. Menos afeito às teorizações, o lirismo passa uma
impressão mais jovial, com um quê um tanto quanto rebelde. No
entanto, o lirismo é a forma mais antiga de expressão poética, ainda
que não se encontre um Homero na lírica ao longe nos tempos e, sim,
um mítico Orfeu que canta sedutoramente. E, sedutoramente, até hoje
os poetas vão atrás da causa e do efeito dessa atração de mão dupla:
a inesgotável conexão entre as palavras e as coisas, donde resultam
renovadas surpresas.
O livro de
poemas de Cid Seixas, O Espelho Infiel, não é uma surpresa no que
tange ao poeta, por este já ser muito conhecido, mas é uma renovada
surpresa, porque tudo aqui está no sentido de mais uma vez
acontecido. Para dar asas à ave há uma bela ouverture com um texto
sobre o poder de renascimento da palavra, “Fênix, A Palavra”,
deixando em evidência essa capacidade de, mesmo “sem ser escutadas”,
as palavras trazerem “sua tinta renovada,/ tão antiga e cambiante/
como é nova a madrugada”. No caminho, no rumo para o nada, que, na
poesia, assim como no mito pessoano, é tudo, a palavra é “engenho
velho e novo,/ o texto tece a alvorada/ do ser talhado na vida/ que
nasce pronunciada”.
Com respeito
aos poemas que falam da poesia, o autor cria um metadiscurso que tem
em si mesmo o substrato dos sentidos que são chamados ou clamados. O
sentido de cada palavra passa a ser o que ela é, ou seja, o material
que constrói o poema; daí o toque entre os sentidos e o poema mesmo
e daí o eu lírico cedendo lugar ao eu da palavra e, com uma nota
original, o eu do leitor, em “O Diálogo”:
O LEITOR
És também um dos deuses.
Para mim
que leio teus salmos
e para o outro
que te escreve.
O TEXTO
Por isso preciso de ti
e do outro
para existir
e para dar o que não tenho.
Posso ser belo,
posso ser triste
como a lua a refletir na noite
uma luz que não é sua.
Preciso de ti.
Objeto sem luz
que no fogo do outro
se ilumina
e reluz.
O Espelho
Infiel deixa claro a maestria do autor no manejo do ritmo e sua
intenção também claramente construtiva, que confere a unidade do
livro, um dos mais encantadores da poesia brasileira contemporânea.
Talvez porque o texto expressa a contemplação de um contínuo
renascer, talvez pelo uso enfático de palavras sempre de retornos:
“O poeta é aquele que ressurge/ do próprio naufrágio”, talvez, como
dizia, seja a contemplação da arte como veículo para a vida eterna
que perpassa por todos os poemas e que, no total, dá o tom, que é de
puro encanto desta voz, deste canto de poeta.
Para colaborar com tal atmosfera, Cid Seixas recria quatro
fragmentos de O Rubaiyat, de Omar Khayyam, com base no texto inglês
de Edward FitzGerald, texto, por sinal, que se tornou um clássico da
literatura inglesa, mas, segundo o parecer de Manuel Bandeira,
apesar de primoroso do ponto de vista literário, é, do ponto de
vista da fidelidade ao texto original, inaproveitável. Procurei
cotejar cada rubai com os que tenho do livro traduzido por Bandeira
em cima da tradução de Toussaint, O Rubaiyat, — rubáyyát é o plural
de rubay, quadra em persa — e não encontrei sentido de recriação, o
que atribuí às diferentes vias de tradução, porém, achei belas as
peças de Cid e encontrei, sim, o clima de elevação espiritual das
quadras de Khayyam, sob títulos ditados por Eros, sua interdição, a
explosão e a duração, e, enfim, a permanência em sublime convite:
“Vem/ comigo/ e se desnuda/ na folhagem/ onde o Deserto/ se encontra
com a Floresta”.
O poeta revela
o aprendiz que foi do poeta maior (embora haja ecos explícitos, se
isso é possível, daquele outro, chamado de menor dos poetas maiores
e que, na verdade, foi muito grande). Para tanto, revela-se em
“Aprendizado”:
No tempo que a memória
agora tornou palavra,
a sua lírica lira
velho poeta tocava.
Aprendiz dos mais atentos
ao campo que mestre lavra,
aguardando a sua vez,
o menino escutava.
Morto o velho poeta,
um dia a lira se quebra;
feito homem o menino
cuidadoso a lira leva.
Entre a luz
nascida do Verbo, seguindo a reflexão do autor de O Espelho Infiel,
e a Voz no silêncio do caos, este livro é abençoado pelo talento, um
talento daqueles poetas que, nas palavras de Fernando Pessoa, “se
exprimem construindo”. O espelho e o sonho fazem a mesma coisa, mas,
sendo este, um espelho infiel, pode refletir uma “arquitetura de luz
tão cintilante que a si mesma incendeia” nas linhas que formam um
poema. Pode, quando um labor rigoroso se dá ao enlaçar o poema à
sedução da palavra.
“O Espelho
Infiel” assume, contas feitas, a vertente do pessoal nas partes
últimas, “Amorial” e “Anti-Mallarmaico”, deixando um pouco a janela
que olha a terra devastada da poesia e sua possibilidade. Seguimos
com a impressão forte de renascimento das coisas e dos sentimentos,
o ideal de objetividade que confere clareza na visão deste espelho
que diz do desejo do corpo de antigamente e de um ainda pertencer um
pouco a tudo o quanto amamos um dia. É uma latência de uma esperança
que impregna como se sempre houvesse uma possibilidade de reviver,
haja vista o que fala “Renascimento”: “Não sou o mesmo
antigamente.// Morro a cada instante/ para renascer no presente”.
E o leitor, que
vive tão sem esperanças, num tempo parco de utopias, procura se
agarrar na figura da fênix que o poeta construiu neste livro. Em
plena produção contemporânea feita ainda em sua grande parte por
epígonos das vanguardas, Cid Seixas anda por uma vereda mais larga
se comparada aos caminhos estreitos da retórica atual.
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