Gerana Damulakis
Saramago, sempre Saramago
[Nota do JP:
Este ensaio foi escrito 1 anos antes do Nobel!]
Quem já leu os
romances de José Saramago está acostumado com a alta qualidade
literária de livros como Memorial do convento, O evangelho segundo
Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira; daí que esse leitor pode
pegar as crônicas do mesmo autor, pensando, claro!, em encontrar
textos de muito boa qualidade também, mas sendo crônicas, pode ser
que espere desde logo aquele “desleixo” — digamos assim — inerente à
pressa com que se escreve o gênero dito menor da literatura. Ledo
engano, vã espera. Saramago é sempre Saramago, seja qual o gênero
que escreva. Não se lhe nota queda de qualidade, não se lhe aponta
um texto aquém dele mesmo.
Mestre no
relato de curto fôlego, José Saramago expressa-se com concisão nas
suas crônicas, mantendo, durante todo o tempo da leitura, o
interesse, como se estivesse conversando com os leitores de jornais.
A crônica é uma prosa, nos dois sentidos; no sentido de gênero e no
sentido de quem conversa —e aqui estamos diante, então, daquela
faceta da crônica que fez o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, cronista
por 25 anos diariamente no jornal A Tarde, de Salvador, Bahia,
intitular sua reunião de crônicas como Conversa de Esquina.
A ironia, um
dos tropos da retórica, vê-se presente, como de resto em todo
aficionado do gênero, para olhar o mundo de forma a redimir todos os
leitores. Afinal, “crônicas, que são? Pretextos ou testemunhas?”,
pergunta-nos Saramago. A resposta pode ser o que cada um espera que
seja: o lugar onde o escritor pode falar por nós, quando usa um
timbre que reivindica; o espaço da perplexidade ou da constatação; o
momento de reflexão filosófica ao alcance de todos ou, enfim, um
exemplo de uma tomada poética tirado agora, oportunamente, da
coletânea de textos publicados no diário A Capital (1969) e no
semanário Jornal do Fundão (1971-72), intitulado A Bagagem do
Viajante ( Companhia das Letras, São Paulo,1996, 205 pp.):
Por causa de
tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu
via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca.
Portanto,
parece ser simples preconceito o rótulo de gênero menor; o que há é
o escritor menor ou o escritor maior diante de determinados gêneros.
Assim, o que coloco aqui é a capacidade de Saramago frente à
crônica, sem queda, repito, da qualidade literária que lhe é
freqüente no romance.
Outro ponto a
considerar diz respeito a nacionalidade desse texto que nós —
incluo-me no que hoje vejo como um julgamento apressado — estamos
acostumados a rotular como “um gênero brasileiro”, quando mais não
fosse, “carioca”, o que é mais localista ainda. Cabe refletir: mas
se se acha a crônica nos jornais do mundo inteiro, se existem esses
espaços para que os jornalistas desenvolvam um texto parecido com a
nossa crônica, como considerá-la apenas nossa? O que difere o texto
jornalístico das colunas de opinião dos periódicos mundo afora em
relação aos nossos textos, talvez seja o humor sempre presente na
crônica brasileira; e é com este argumento que vem a aquisição da
crônica para a cultura nacional.
Em outros
países, essas pessoas que ocupam esse tipo de espaço no jornal são
chamados de colunistas, o que, entre nós, não tem o mesmo sentido de
cronista. Inserindo a tomada de posição acima na avaliação dos
textos de Saramago, motivo do enfoque, constatamos que o escritor
português faz crônica no estilo brasileiro. Por outra, não
poderíamos olhar a questão sem xenofobia, e avaliar com mais
profundidade a colocação e concluir que, independente da
nacionalidade, a crônica adquire esse jeito de ser quando escrita
por pessoas que a ela se moldam com facilidade, tal como se para
escrevê-la tivessem determinado quociente de sensibilidade?
Com o jeito de
ser da crônica, José Saramago registra a vida contemporânea, olhando
o mundo ao redor para fazer uma primeira leitura, e, deitando no
papel o texto para a segunda leitura do mundo. A observação atual
pode levá-lo à uma lembrança de infância, ao estarrecimento ou à
notificação apenas de um ocorrido que , se agora é irrelevante,
depois pode ter importância dentro da recriação de uma época.
E, a propósito
de um outro ponto levantado aqui, sobre a crônica ser uma conversa,
sabe-se que conversar é uma arte, haja vista Sherazade. Imagine,
então, quando tudo é um monólogo, quando a resposta pertence a um
interlocutor que você não escuta, não vê, não conhece. Manter a
conversa dentro dessas condições é como falar sozinho, contudo,
espera-se que ocorra o eco. E isso se dá, seja nos comentários da
turma reunida, seja através de uma manifestação do leitor explícita
em carta ou, quando possível, por telefone, ou, quem sabe, ao
encontrar o cronista na esquina. Afinal, estamos mesmo tratando de
uma “conversa de esquina”.
Analisando esse
gênero, para o qual ando me debruçando com especial interesse, notei
que não escapa aos cronistas em geral o tom de confissão. Por tal
veio, intitulei um capítulo de um pretenso livro da seguinte
maneira: Hoje estou triste! Saramago não foge à regra, e, na crônica
“Natalmente crónica”, acaba confessando-se:
Acontece
porém que tenho fortes razões para não estar de bons humores, o que
me permite esquivar-me desta vez, se alguma outra caí em tão ingénua
fraqueza, ao jogo cúmplice do amplexo universal... Mas o leitor
também lá tem a sua vida, quem sabe se dura e difícil, e não há-de
aceitar que eu lhe agrave as amarguras. Desculpe o desabafo.
Constate-se o
“desabafo”, a confissão e a inclusão, com segurança, deste cronista
no rol dos que lá um dia resolvem “repartir” suas “amarguras” com o
leitor. E é aí que acontece a cumplicidade, terminando por viciar,
porque criamos o hábito de ler “o que diz hoje” o nosso amigo: a
pessoa abre o jornal e vai direto procurar aquele canto onde sabe
que encontra outro ritmo verbal, outro ritmo de pensamento
diferentemente do restante do jornal.
No século que
consagrou a crônica, o ganho foi da literatura, enriquecida com o
texto mais verdadeiro: o texto que traz o “eu” que fala por todos.
Sim, porque a crônica tem um “eu” muito rico, pois se poético quiser
sê-lo, pode; se meramente narrativo de um caso esdrúxulo, idem;
enfim, se ali se coloca, diz por todo um grupo de opinião; ademais
de tudo isto, o “eu” do cronista está livre das amarras que a
qualquer outro gênero são impostas em nome da arte. Reunindo todos
esses “eus” no seu “eu” de cronista, José Saramago desfila pelo
gênero com beleza e poeticidade, com mão firme do prosador que é e
com o tom de grande conversador que a crônica requer.
Ampla como
gênero, na hora de passar do jornal para o livro, são as
características literárias de cada texto que contam pontos para a
escolha da seleção. Independente das circunstâncias em que foram
escritas, as crônicas ficam submetidas a um crivo, onde não importa
a carga brilhante de humor e ironia frente às colocações do autor
porque o que ressalta é o aspecto literário.
No total, o
cronista português, motivo desse texto, transforma os fatos e os
sentimentos do cotidiano em situações e sensações que merecem “não
morrer” com o jornal do dia, entrando, assim, para fazer parte do
que é perenal, ou, por outra, fazendo literatura.
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