Gerana Damulakis
Uma homenagem a Antônio Houaiss
Antônio Houaiss
[leia a biografia] faleceu ontem, 07 de março de 1999. Era um amigo
do JP. Tive oportunidade mandar alguns escritos para ele, e a
resposta, generosa, veio em letra tão tremida que tive que recorrer
aos serviços de decifração da secretária dele. Ela, gentil, me
disse: "é assim mesmo, tem momento em que nem eu mesma entendo o que
o professor escreveu". Mandei os textos de volta, ela os decifrou.
Ele me escreveu uma segunda vez: "Lamento que minhas letras se
enuviem quando quero louvar. Perdoe-me, mas louvo-o." Guardo com
intenso carinho estas palavras do homem sábio que é Houaiss.
Tenho que o JP
é, de um certo modo, a continuação da luta Houaiss, ele que tanto
pelejou pela unificação da lusofonia, o acordo gramatical e outros
lutas.
Não temos
poemas de Houaiss no JP, nem sei se ele algum dia escreveu algum. Se
algum leitor os tiver, por favor. Temos porém a certeza da presença
de Houaiss na literatura brasileira; basta citar uma tradução:
Ulisses.
Transcrevemos
um artigo de Gerana Damulakis sobre a importância do livro de Joice,
e, conseqüência, para o mundo lusófono, da tradução de Houaiss:
Gerana Damulakis
in jornal A Tarde, 08/03/99
Leitura Crítica:
Ulisses, o romance do século XX
Passados 77
anos da primeira edição de Ulisses, o mundo continua editando e
lendo a história de Leopold e Molly Bloom e Stephen Dedalus. Que os
estudiosos e os críticos até hoje se debrucem sobre tantas centenas
de páginas, é fácil de entender. Mas quem é esse público que consome
Ulisses ainda hoje, quando, pelo menos, a publicidade negativa feita
de boca em boca já devia ter surtido o efeito natural de fazer com
que ninguém mais se aventurasse a comprar, muito menos a tentar ler
aquele calhamaço de estilos diversos? Qualquer resposta seria
obscura, porque os estudantes de literatura, os aficionados por
leituras “difíceis”, não chegam a render um número expressivo que
valha tantas edições.
O fato é que Ulisses está mais uma vez nas vitrinas das livrarias.
Desta feita, por conta, talvez, de ter sido o número um de uma lista
divulgada em toda a imprensa mundial, começando pelo New York Times:
a lista dos 100 romances em língua inglesa, do século XX, feita
pelos conselheiros da Modern Library, que faz parte da Editora
Handon House.
Listar autores
consagrados é uma prática tão antiga quanto a da escrita poética,
como lembra Leyla Perrone-Moisés no seu excelente livro Altas
Literaturas, da Companhia das Letras, publicado no ano passado.
Desde a Antigüidade greco-latina, os mestres da escrita artística
favorecem à criação do cânone, palavra que vem do grego kanón, pelo
latim canon, e denota “regra”, ou seja, trazendo para nosso
entendimento, seria algo como texto modelar.
Seguindo com
Leyla, a autora nos conta, no capítulo O cânone dos
escritores-críticos, que, com o tempo, a palavra cânone passou a
designar o conjunto de textos considerados autênticos pelas
autoridades religiosas e, no âmbito do catolicismo, tomou o sentido
de lista de santos reconhecidos pela autoridade papal. Daí, por
extensão, passou a significar o conjunto de autores literários
reconhecidos como mestres da tradição. Pelas informações de Ernst
Robert Curtius, em Literatura européia e Idade Média latina, a
palavra cânone, como relação de escritores, ocorre pela primeira vez
no século IV e, a partir do século XVIII, os chamados clássicos
deixaram de ser vistos como modelos absolutos. No nosso século, os
escritores-críticos tratam de elaborar suas listas com outras
preocupações, sejam elas para orientar os leitores mais jovens,
sejam para assumir certos juízos estéticos. Desta forma, os
novecentos viram Ezra Pound criar uma lista de autores básicos para
fins didáticos, seguido de perto pelo amigo – também crítico, além
de poeta – T. S. Eliot, para, logo, termos Jorge Luis Borges,
Octavio Paz, Italo Calvino e, entre outros, os brasileiros Haroldo e
Augusto de Campos.
Neste ponto, voltamos a James Joyce para comentar o que diz Augusto
de Campos sobre a história do romance se dividir em a.J. e d.J.
(donde J. é Joyce); por conseguinte, o escritor foi transformado
numa espécie de Cristo literário, demarcando a história da
literatura em antes e depois dele, como atenta a ensaísta Luciana
Hidalgo, no jornal Rio Artes.
A influência da
obra do escritor irlandês é inegável, mas as polêmicas em torno dela
também são. Na década de 20, classificaram Ulisses como uma
indecência e o livro acabou sendo editado, em Paris, em 1922, por
Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Co., com a ajuda de
Ezra Pound, André Gide, Hemingway e Yeats. A princípio se pode
pensar numa aquiescência generalizada por parte dos escritores da
época, porém, isso não se deu e as impressões de Bernard Shaw são
prova disso.
Ulisses não
chega a ser uma indecência, embora seja erótico, mas causa, sem
dúvida, grande impacto. O romance discorre sobre um dia – o famoso
16 de junho de 1904 – em Dublin, na vida dos seus três personagens,
que fazem um paralelo com Ulisses, Penélope e Telêmaco da Odisséia
de Homero. Ao longo de quase mil páginas (dependendo da edição, a
maioria fica em torno das 800 páginas), o leitor encontra, na linha
da narrativa épica, uma enorme gama de estilos e, talvez, por isso,
muitos não gostem da leitura e acabem ficando no meio do caminho.
Que seja agradável ou não, o certo é que Ulisses rompeu
literariamente com o século XIX, quebrou com o romance burguês de
“sala de visita”, marcou o início de uma certa crise no gênero. Ao
que parece, era o que desejava o autor quando, em carta a Harriet
Waver, uma amiga, escreveu: “Incluí tantos enigmas e quebra-cabeças
que Ulisses vai ocupar acadêmicos durante séculos. Esse é o único
modo de assegurar a imortalidade de alguém”. Ele vem conseguindo.
Para os aficionados de James Joyce, resta informar que Um retrato do
artista quando jovem ficou logo em terceiro lugar na lista.
E como a época
é propícia ao aparecimento dessas listas, catalogando o que de mais
importante foi feito no século em se tratando de arte. A revista
Times, em edição especial, escolheu os melhores em todas as áreas
artísticas. Assim, o século foi do pintor Pablo Picasso, do
arquiteto Le Corbusier, da estilista Coco Chanel da música de Igor
Stravinsky, da intérprete Maria Callas, da voz de Frank Sinatra...
E, na literatura, o que a equipe da revista Times decidiu? É isto,
claro: o século é de James Joyce.
Veja a página de Antônio Houaiss
|