Ivan Junqueira
Alberto da Costa e Silva, um poeta
elegíaco
Não são muitos entre nós os poetas elegíacos cujo
legado mereça estima ou estudo crítico mais aprofundado. Ainda
assim, enriqueceram o gênero neste século autores como, entre
outros, Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira, Vinícius de
Morais, Cecília Meireles, Emílio Moura, Joaquim Cardozo, Carlos
Drummond de Andrade e Mauro Mota. De qualquer modo, o lirismo
elegíaco não deixou impressões muito fundas em nossa produção
poética destes últimos anos, circunstância essa que nos obriga a
isolar, quando mais não seja porque estilisticamente assim o exige,
um livro como As linhas da mão, de Alberto da Costa e Silva, cuja
cosmovisão, como observa no prefácio Antônio Carlos Vilaça , “evolve
de um catolicismo, de inspiração fortemente jesuítica (ad maiorem
Dei gloriam), para um humanismo leigo, de inspiração a um tempo
culturalista e poética”. A par dessa solitária filiação elegíaca,
porém, cumpre esclarecer aqui que As linhas da mão se configura
também ? e sobretudo ? enquanto testemunho de uma autêntica e
altíssima vocação poética.
O mais curioso nessa poesia ? e o que decerto a fará
ser repelida pelos teóricos e acrobatas da histeria experimentalista
que vê no discurso literário a morte da linguagem poética ? é que
ela, contrariando certos cânones de limpeza e economia verbais,
desenvolve-se a partir de uma sintaxe tacitamente discursiva e nela,
apenas nela, se resolve. O enigma se desvela, porém, se atentarmos
para a singularidade de que essa linguagem somente enrijece enquanto
linearismo discursivista à superfície daquilo que o poeta enuncia.
Mas o que ela de fato enuncia jamais poderá ser captado
exclusivamente ao nível dessa epiderme verbal, e sim muito mais
abaixo, nas camadas profundas e movediças do fluxo eterno do ser,
para aquém e para além das aparências. Não é a toa, aliás, que o
conceito heraclíteo do panta rhei impulsione desde o início a
poética dacostiana, como o atesta o esplêndido poema ‘O parque`
, no qual o autor nos assegura que as
águas correm e, contudo, permanecem.
Assim como para Kierkegaard e Proust, para Da Costa e
Silva o que permanece é o rio da memória, a durée que perdura para
além do tempo cronológico, a fonte que,
embora o tempo exista, existe
ainda e, embora seca, o seu rumor ouvimos,
tão distinto, tão perfeito, tão diverso.
É o que vemos, também, em ´Flumen, fluminis`,
na sintomática ´Ode a Marcel Proust`, em ´Elegia`, no
´Fragmento para um réquiem`, em ´Espaço vazio` e, quase ao fim do
volume, em ´Fragmento de Heráclito `, cujos versos iniciais nos
segredam que
Todos os dias são iguais ? o grego
e o menino que eu fui sempre o souberam.
As linhas da mão revela também uma intensa reiteração
temática, pois a infância, a morte, o amor e a desolação existencial
estão presentes em quase todos os poemas do livro. Há momentos,
inclusive, em que esses temas são desenvolvidos dialeticamente, de
modo que a vida, enquanto pólo que atrai seu contrário, se
identifica com a morte, sua antítese, superando-se ambos os termos
em tensão através da mediação do amor, que os reconcilia na síntese.
Assim,
morto, és tão puro que te tornas menino.
Situação quase idêntica é a daqueles “potros
cavalgados por meninos”, os quais,
se agonizam com a lua, exaustos,
não se apagam das cousas, continuam,
como a infância no amor e o amor na morte.
Mais flagrante ainda como exemplo dessa conspiração
triádica seria aquela resignada e telúrica atitude de
esperar para o amor, roçando a morte,
em lencóis, massapês, tucuns de redes,
quando
O instante que de amar o que deixava
partir fez mais amor, fiel, consente
em ser soma de tudo, amor sem gente.
Vê-se, assim, o quanto ilumina e decifra o texto a
epígrafe de San Juan de la Cruz à quarta seção do livro: “y adonde
no hay amor, ponga amor, y sacará amor”. Embora inumeráveis ? e, às
vezes imperceptíveis ? , essas ´linhas da mão` nos levam sempre
àquela mágica e misteriosa região do ser na qual o destino (o do
poeta também) é traçado, como dizia o filósofo efesiano, por “uma
criança que joga dados”.
Tem razão Vilaça quando afirma, ainda no prefácio,
que “os últimos poemas de Da Costa e Silva são de uma dignidade
literária insuperável”. De fato, poemas como ´As linhas da mão`, ´A
Ricardo Reis, no mar da Galiléia`, ´A despedida da morte`, ´Sobre
meu túmulo`, os três sonetos inominados e, acima de qualquer outro,
´O menino a cavalo` não se escrevem, todo dia ou a qualquer hora.
Neles, o impulso elegíaco se conjuga à austeridade expressiva e à
riqueza da modulação rítmica para engendrar versos e estrofes
soberbos, como estes dois tercetos do último soneto:
A epiderme da vida me vestia,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou
um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.
Mas é em ´O menino a cavalo` que a Alberto da Costa e
Silva alcança o nervo da linguagem poética e de sua nobre
sensibilidade. O leitor que o confirme:
A mão de meu pai sobre o papel desenha,
quase num só traço, o menino a cavalo.
Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,
e vai sobre o papel o menino a cavalo
............................................................................
O rosto longo e só, rasgado pelas rugas,
o olhar a rever o que perpétuo tinha,
o que nunca me disse, em seu pensar cortado
do dia em que vivia (no seu convívio raro
com a cadeira de braços, o pijama, os seus pássaros,
a cinza e a rotina de estar morto, acordado),
no papel ele unia a mão que desenhava
à mão com que acenava ao menino a cavalo,
neste adeus em que estou, desde então, ao seu lado,
o menino que volta, a chorar, a cavalo.
E dizer, como o proclamam as vanguardas, que o verso
morreu...
[À Sombra de Orfeu, Rio de Janeiro, Editorial
Nórdica, 1984]
Leia a obra de Alberto da Costa e Silva |