José Paulo Paes
Tempero do exotismo
Num artigo publicado nos Studi di
Iberistica (1987) da Universidade de Nápoles, questionava Wilson
Martins o alcance, quando não a utilidade mesma das traduções de
autores brasileiros aparecidas na França e em outros países da
Europa. Para o crítico, o caráter de todo esporádico e aleatório
dessas traduções só fazia acentuar “a enorme distância entre a
leitura deste ou daquele autor, ao acaso das edições e das modas, de
um lado, e de outro, a leitura no interior de um ´sistema
literário`”. Daí não estranhar que, à falta de uma visão de
conjunto, por sumária que seja, da nossa cultura, o público
estrangeiro costume ler “os livros brasileiros como representativos
de uma cultura exótica”.
Imagino tenha sido para alertar os leitores italianos contra
semelhante erro de perspectiva que, na sua introdução a Le Linee
della mano, antologia poética de Alberto da Costa e Silva organizada
e traduzida por Adelina Aletti e Giuliano Macchi, julgou Luciana
Stegagno Picchio necessário advertir, a eles habituados “à turgidez
tropical, ao aspecto mais vulgarizado da literatura brasileira”, de
que iriam encontrar nesse livro algo bem diverso, qual fosse um
lírico “contido, sutil, filtrado”.
A edição feita por Schweiwiller
“All’insegna del pesce d’oro” (Milão, 1986) na sua “Collana
luso-brasiliana” recolhe 40 dos 69 poemas constantes de As linhas da
mão (Rio-S.Paulo, Difel/INL, 1978), volume que reunia toda a obra de
Alberto da Costa e Silva até a data, ou seja, os cinco livros que
iam de O Parque (1953) a As linhas da mão (1977). A esses 40 poemas
foram acrescentados 9 outros tirados de A roupa no estendal, o muro
e os pombos (1981), a mais recente coletânea do poeta. Com isso, o
leitor italiano pôde ter em mãos uma boa amostragem que, por
bilíngüe, talvez o estimule a cotejar de quando em quando o texto
traduzido com o original, menos para comprovar a competência do
trabalho tradutório, do que para aspirar, um pouco que seja, o
perfume para ele irremediavelmente “exótico” da última flor do Lácio.
Num texto prefaciatório à edição Difel
da poesia de Alberto da Costa e Silva¸assinalava-lhe Antônio Carlos
Villaça a filiação, cronológica se por mais não fosse, à geração
“que começou a criar e a publicar entre l950-l960.” Vale dizer, a
geração de Ferreira Gullar, Mário Faustino, Carlos Nejar e outros,
geração que se dividiu entre a persistência de certos módulos
temáticos e formais de seus predecessores de 45 e os primeiros
experimentos da poesia concreta. Embora não se tivesse mostrado de
todo imune ao experimentalismo ? como o dá a entender o cuidado com
a fisiognomia tipográfica de poemas como “Um artesão” e “Giro”, ? o
temperamento essencialmente lírico, ou melhor, elegíaco de Alberto
da Costa e Silva o vocacionava antes para uma dicção cuja gravidade
rememorativa iria encontrar, nas formas tradicionais da lírica de
língua portuguesa, o seu veículo de eleição. Mas é bem de ver que,
mesmo quando recorre a formas como o soneto, o poeta não se deixa
pear por coerções de rima ou métrica, com o que o seu verso nada
perde de sua fluência nem mecaniza sua musicalidade. Do ponto de
vista da dicção, é instrutivo observar a mudança ocorrida de O
parque para os livros subseqüentes. Naquela obra de estréia já
definia Alberto da Costa e Silva os seus temas preferidos: a
preocupação da morte, as mais das vezes centrada no sentimento da
perda do pai; a nostalgia da infância, vinculada de perto ao tema
anterior pela circunstância de que, para o poeta, “a morte retorna
as cousas da infância tangível”; o culto do sonho e da memória, tão
bem explicitado numa “Ode a Marcel Proust”. Esses temas se
consubstancializavam numa linguagem que, pelo gosto do vago, do
outonal e do noturno, faz por merecer o rótulo de neo-simbolista e
dá a supor um eventual influxo de Rilke, cuja popularidade nos anos
50 se traduziu entre nós pelo que se poderia chamar de “mania da
morte”, uma palavra de presença quase obrigatória nos poemas da
época. Que, no caso do autor de Le linee della mano, não se tratava
de simples adesão a uma moda transitória e sim de uma preocupação
mais permanente e mais profunda, demonstra-o a ininterrupta linha de
continuidade entre os seus primeiros poemas e a sua produção
ulterior. Ao longo desse percurso, entretanto, Alberto da Costa e
Silva foi ganhando em concretude o que perdia de vaguidade.
Em O parque, os nomes dados às coisas
palpáveis não levavam até elas: levavam para longe delas, para um
além metafórico que as desmaterializava, que as convertia em
fantasmas de si próprias. A partir de O tecelão e As cousas simples,
que se seguiu ao livro de estréia depois de um silêncio editorial de
16 anos, as referências à realidade vão-se precisando, vão-se
adensando, vão-se cotidianizando. O poema de abertura desse segundo
livro, “De pé na varanda recordando”, fala-nos menos da infância em
geral que de uma infância específica passada num típico ambiente de
fazenda brasileira, entre tosquia de carneiros, folhas de mamoeiro,
odor de mangas, cilhas de cavalo. O quanto essa retomada de contacto
com a espessura e o peso das “cousas simples” enriqueceu a arte do
poeta é fácil de ver na beleza e precisão de imagens como “bilha, um
sol / fresco de água e terra . Tal retomada não só não o impedia de
continuar versando sua temática saudosista-elegíaca como até servia
para dar a ela maior poder de convencimento, por estabelecer uma
tensão entre o físico e o metafísico, a intensidade do prefixo meta-
tornando-se tanto maior quanto mais rico fosse o campo nocional do
físico.
A riqueza da dialética entre físico e
metafísico, concretude e abstração, regional e universal, pode ser
mais bem apreciada nos poemas em que Alberto da Costa e Silva
rememora a sua infância rural. Ainda que nascido em S.Paulo, passou
ele a meninice ? de onde procede o principal filão temático da sua
poesia ? no interior do Ceará. Mais tarde, a carreira diplomática,
com obrigá-lo a correr mundo e distanciar-se ainda mais do seu chão
de infância, só lhe fez crescer a nostalgia. Daí a rara força
expressiva de peças como “As cousas simples”, “Rito de iniciação”,
“A travessia do Rio Volta”, Paisagem de Amarante”, “Diálogo em
Sobral”, “A bem-amada”, “Um sobrado em Viçosa”, nas quais a memória
se empenmha em recuperar imaginativamente o pretérito para
presentificá-lo em poesia. Presentificação cujo ápice está
certamente em “O menino a cavalo”, um dos poemas finais de As linhas
da mão e, sem favor, um dos mais bem logrados jamais escritos, em
seu gênero, na língua portuguesa.
Transposta agora para o italiano, a
lírica de Alberto da Costa e Silva, por força da refração
tradutória, passa a ter acentuados os seus valores de
universalidade, na medida mesma em que perde o suporte lingüístico
no qual foi concebida e que por si só a regionalizava. Mas nem mesmo
assim perde ela de todo a sua marca de origem. Como toda tradução
digna do nome, a de Adelina Aletti e Giuliano Macchi, longe de
incorrer na falácia de querer parecer, não uma versão, mas um texto
originariamente escrito em italiano, soube preservar aquele quid de
estranheza capaz de inculcar na sensibilidade do leitor a noção de
estar ele adentrando outro mundo que não o do seu vernáculo. Quando
mais não fosse, a irrupção, no texto italiano, de designações como “manghi”,
“jaqueira”, tamarindo”, “goiaba”? para citar apenas o exemplo do
poema “Rito di iniziazione”, onde não obstante “cresciúma” foi
inexpressivamente vertida por uma simples “erba” ? dão-lhe um mínimo
de exotismo útil. Exotismo que nada tem a ver com o pitoresco de
exportação, mas decorre antes do compromisso com a nomeação
absoluta, com a perfeita coincidência entre o nome e o ser a que os
poetas, demiurgos do verbo, sempre aspiraram.
Leia Alberto da Costa e Silva
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