Junot Silveira
O relógio da vida
27/10/2002
“Até logo” é o que se dizia comumente
quando um conhecido, um amigo, um parente se afastava do outro.
Assim era que, com certeza plena que em breve voltariam a se
encontrar, que a volta dos ponteiros do relógio não abria um vale,
não construía um abismo, não criava uma montanha intransponível, não
levantava uma muralha. Os ponteiros do relógio, geral e
regularmente, só andam para a frente, só caminham para adiante,
mostrando e demonstrando que não há obstáculos, não enfrentam
empecilhos que os levem a caminhar para trás em marcha à ré, em
retrocesso. Eles podem andar fora do ritmo, lenta ou velozmente,
porém correndo na sua andança ou retardando na sua jornada dentro da
regra, marcando o tempo só caminham para a frente.
O relógio, como a criatura humana,
pode ter seus defeitos. Pode andar atrasado dez minutos, 20 minutos,
uma hora no decorrer de um dia. Ou emperrar no tempo quando fica
parado, esperando conserto. Não há mistério nisso. Atrasar, retardar
a marcha, paralisar não constitui nada de anormal. É que aparece
algo no seu mecanismo que somente é notado pelo relojoeiro, o
técnico, o profissional que pode consertar, reparando qualquer
defeito. E reparado, retorna ao seu andar, retorna à sua marcha
dentro do ritmo normal ou não, perfeito ou mesmo defeituoso e de uma
forma ou de outra só vai para a frente. Marca, apenas, um segundo de
tempo no momento presente e a marcha para a caminhada geral.
A vida humana também é assim, tem o
mesmo passo e a mesma forma de avançar para a frente. De criança a
adolescente, de jovem a velhice, com saúde ou enfermidade. E não há
remédio, não há milagre que dê uma volta para produzir um retrocesso
no tempo. Pois o tempo anda, quem tem energias para viver, vai dos
10 aos 20, dos 30 aos 60 dos 60 aos 100 anos, assim por diante. Mas
entre o relógio e a criatura humana há grande diferença.
A tendência do relógio é mais do que
envelhecer rapidamente por dentro e por fora. É um estilo cair de
moda e ele ser posto fora de uso. É uma máquina enferrujada e ele
deixa de ser útil, sem sentimentos e sofreres. Não passa de um
objeto fácil de ser substituído. Já o homem e a mulher não são bem
assim. O tempo pode passar, os anos correrem, e eles resistem
durante longo período. Renovam-se no organismo e eles resistem
durante vários anos. Remoçam-se no organismo, no temperamento, nos
gestos, nas atitudes, e até na face, no nariz, na boca, nos olhos e
em quase todo o corpo.
Um dia, porém, também deixam de
existir. O coração pára para sempre, os olhos fecham para a
contemplação de tudo e o cérebro deixa de funcionar. Porém o homem e
a mulher, como artigos pessoais e especiais, sempre serão lembrados
pela sua fisionomia, pelo seu sentimento, pelos seus gestos e
atitudes na memória de muitos, bem diferentes, portanto, dos
relógios que marcam as horas mas não assinalam a saudade.
Junot Silveira
foi professor, jornalista, cronista e editor de A TARDE dominical.
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