José Saramago
Fortuna crítica: Luciana Stegagno
Picchio
SARAMAGO: Momento por todos
esperado
in Jornal A Tarde
05.12.98
Ainda que este
universo lusófono contasse com grandes tradições literárias tanto em
Portugal como no Brasil e com uma nova impetuosa tradição de
escritores africanos de expressão portuguesa. Esperávamos este
momento há tempo. Esperamos que acontecesse para o velho rapsodo
Jorge Amado e para poetas de elite como João Cabral de Melo Neto.
Mas sobretudo para um escritor como ele, José Saramago, no qual há
vários anos vivíamos o candidato mais legítimo, mais prestigioso,
mais nosso: e pelo qual sofríamos esperando a cada outubro, como
quem aguarda com angústia confiante a chegada de sua bagagem na
esteira rolante do aeroporto, sem que ela nunca desponte.
A decepção
agridoce, para nós italianos, do ano passado, quando Dario Fo
ganhara na linha de chegada logo de José Saramago, nos deixara uma
grande margem de esperança. A história do Nobel nos ensinou pelo
menos, como já na época do prêmio para Octavio Paz, a jogar com as
probabilidades. Apesar de seu corpo ágil e longilíneo de adolescente
e o sorriso de quem, aos 76 anos, pensa em um futuro operoso e
sereno do lado de Pilar, a jovem mulher espanhola que o acompanhará
a Estocolmo, mostrando para o mundo como pode ser bonito um casal de
intelectuais, Saramago em sua longa vida teve, como todos,
facilidades e decepções. Sobretudo de seu país.
Comunista
militante, nunca faccioso, sempre crítico, nunca trânsfuga, tivera
que esperar o fim do salazarismo e a Revolução dos Cravos do abril
de 1974 para poder despontar com pleno direito na cena literária
portuguesa e internacional. E fora logo um sucesso, como de quem, na
sombra da espera, tivesse afiado seus instrumentos. Viera antes a
poesia, com os Poemas possíveis (1966) e Provavelmente alegria
(1971), que, na distância de ano, revelam hoje toda sua carga humana
e profética: “Só direi,/Crispadamente
recolhido e mudo,/que quem se cala quanto me calei,/não poderá
morrer sem dizer tudo”. Depois apareceram as primeiras coletâneas de
crônicas: Deste mundo e do outro (1971), A bagagem do viajante
(1974), como provas de redação que contivessem já em seu casulo
todos os motivos da narrativa futura. Em seguida o teatro (começando
com A Noite, 1979), que hoje nos parece obra de um autor “outro”,
tanto discursivo, referencial e polêmico quanto a prosa de invenção
é misteriosa, alusiva, poética. A motivação do Nobel fala de um
Saramago “que com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e
ironia torna constantemente compreensível uma realidade
fugidia”. E talvez este seja o melhor rótulo para uma obra que,
apesar de minuciosamente ambientada numa época e numa ideologia (a
Lisboa inquisitorial do começo do século XVIII, a Lisboa das
origens, ainda dividida entre mouros e cristãos, os anos do
franquismo e de seu contágio ao Portugal salazarista, a Palestina de
uma Vida de Jesus ao lado do Homem), nunca aparece como mera
revisitação do fato histórico, mas sua parábola, pretexto para a
interpretação de um hoje que filtra o passado com o alheamento
comovido e irônico do depois.
O novo
Saramago, um intelectual já amadurecido que vive desde sempre em
Lisboa, mas que fora do círculo dos amigos de trabalho e de café
poucos conheciam, irrompe de repente na cena literária portuguesa em
1980, com um romance singular que o coloca de imediato no primeiro
plano entre os narradores nacionais. E é aquele Levantado do chão,
no qual pela primeira vez aparecia, numa saga camponesa de sabor ao
primeiro olhar ainda realista, a sua organizadíssima cifra
estilística. O “discurso oral” de Saramago, aquelas suas páginas
lotadas de signos, sem maiúsculas e pontuação, era de fato capaz de
reproduzir poeticamente, em som antes até do que em letras, uma
história nacional e individual; as vicissitudes de três gerações de
camponeses do Alentejo, as quais, através da luta de classe,
levantando-se do chão, verticalizando-se no seu reconhecer-se
enquanto homens, assurgiam como protagonistas de uma história que
até aquele momento fora apanágio de seus patrões. A fama
internacional virá logo em seguida, em 1984, com aquele Memorial do
Convento, que permanece ainda hoje como sua obra mais famosa e da
qual ele sairá para uma viagem de escrita, para uma aventura
narrativa que no-lo restituirá escritor sem mais limitações
regionais: um dos mais significativos narradores do nosso tempo.
O Memorial
conta a construção, nas primeiras décadas do século XVIII, do
Mosteiro e da Igreja de Mafra, erigidos com extraordinária
magnificência nos arredores de Lisboa, por vontade do soberano
absoluto D. João V. Romance histórico na minuciosa descrição da
sociedade portuguesa, cortesã e popular, do começo do século, na
suntuosidade barbaresca dos autos da fé promovidos por uma
inquisição ainda imperante, torna-se romance social na evocação
daquelas multidões de operários, carregadores braçais, canteiros,
que foram os construtores materiais do templo. Mas torna-se romance
de realismo fantástico na invenção dos personagens, primeiro entre
todos aqueles de Blimunda, filha de marrana dos olhos claros e do
belo nome germânico que não por acaso um músico como Azio Corghi
depois escolheu como protagonista de sua recriação musical do
romance.
Deste momento
em diante, a inspiração de Saramago torna-se urgente. O ano da morte
de Ricardo Reis (1984), que ambienta em uma Lisboa atingida pela
vizinha guerra da Espanha a permanência na cidade de um heteronômio
de Fernando Pessoa, sobrevivido por um ano à morte do poeta, talvez
seja a mais poética, comovida homenagem à memória de quem hoje é
considerado o maior poeta moderno português.
Assim como A
jangada de pedra (1987) representa a saborosa e polêmica profissão
de fé antieuropeísta do português Saramago, a História do cerco de
Lisboa (1989) é uma sua jubilosa “correção” da história no nome da
liberdade da interpretação. Mas o Saramago mais próximo de nós e
para nós mais universal é sem dúvida o último. Aquele que, com o
sofrido e humaníssimo Evangelho Segundo Jesus (1991), agüentou a
incompreensão na pátria, escolhendo desde então o caminho do exílio
em Lanzarote, nas Canárias. E mesmo aquele do qual, após o
voluntário afastamento de Portugal e de sua “realidade sonora”, com
a conseqüente imersão num universo da
língua espanhola, todos tínhamos temido uma redução da sua
sensibilidade “auditiva”: indispensável, nos parecia, para a criação
daquela “literatura oral” da qual até aquele momento se substanciava
a sua criação poética. Mas Saramago enxergou mais longe do que nós.
E com as projeções brancas do seu romance Ensaio sobre a cegueira
(1995) antes, e depois com o “burocrático” Todos os nomes (1997),
soube imergir-nos em rarefeitas atmosferas de pesadelo e sonho.
Se a praxe
acadêmica nos sugere por enquanto de defini-las kafkianas, no futuro
talvez estas atmosferas sejam diretamente ligadas a ele, à sua
fantasia, à sua humanidade, à sua capacidade de “ver” do que
naturalmente de “ouvir”, naquela sua peculiaríssima recriação
auditiva da realidade circunstante. Saramago gosta da Itália, onde
tem muitos amigos, onde suas obras foram traduzidas até antes do que
em outros países, onde recebeu os primeiros doutoramentos ad honorem
e os primeiros prêmios literários. E para nós este prêmio longamente
anunciado e finalmente concedido é como um Nobel para
um escritor nosso. Traduzido do italiano para esta edição por Silvia
La
Regina, professora e ensaísta, este artigo foi publicado no jornal
italiano La Repubblica e posteriormente, numa outra tradução, no
Jornal de Letras de Lisboa.
[Nota de A Tarde: Luciana Stegagno
Picchio, a mais importante luso-brasileira da Europa, autora, entre
inúmeros outros estudos, de Histórias da Literatura Brasileira (Rio,
Nova Aguilar, 1997), escreveu este artigo no dia em que foi
anunciado o Prêmio Nobel para José Saramago, amigo de muitos anos]
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