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Marco Lucchesi


 


Edição celebra 50 anos da obra Moacyr Félix


Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Sábado, 26 de setembro de 1998


 

Quero dar as boas-vindas a Singular Plural, deste grande poeta civil que é Moacyr Félix, com o seu legado de inquietação e esperança.

Singular Plural, obra poética reunida, guarda profundas e avassaladoras forças de ordem cósmica, de que a revolução é um momento poderoso, de largas repercussões míticas e poéticas, tal como seria para um Ernesto Cardenal, começando pelo Big Bang e terminando na revolução da Nicarágua. A liberdade. As estrelas.

Por isso mesmo, injusto seria reduzir a obra de Moacyr a um bem acabado projeto extraliterário, visando a paisagens outras, em benefício de uma instância política redentora. Desleitura maior não se poderia fazer. A tradição literária é central em Moacyr Félix. Lendo Singular Plural deparamo-nos com a sua perfeita legibilidade. Transparência. Atualidade. Poeta civil, mas igualmente lírico. Deparamo-nos igualmente com a história, escrita com o sangue dos vencidos, irrigando as artérias do tempo.

Como é bem sabido, Moacyr Félix e Ênio Silveira iriam escrever um dos capítulos mais expressivos de nossa cultura, desde o movimento seminal Violão de rua, lançando poetas e consagrando outros, além da Revista Civilização Brasileira, quando o Brasil ainda ousava pensar seus próprios destinos. Não se pode falar dos tempos recentes sem recorrer a Ênio Silveira, homem de longas visadas, notáveis acertos e erros fantásticos. Melhor o clarão de um erro formidável do que as migalhas de um acerto obscuro.

Moacyr, bem se vê, não passou ao largo da história. Fez e sofreu história. Com a beleza radiante de sua poesia mediu forças com os poderosos. Tal como ainda hoje faz e sofre a história - para retomar uma expressão de Marx - nesses tempos de refluxo das utopias. Donde a presença de Singular Plural na mais invejável contra-mão da história (que muitos julgam terminada).

Moacyr Félix é um lírico, apenas lírico, terrivelmente lírico, absurdamente lírico, tão distanciado das práticas epigoniais, dos que recortam sílabas e números, num álgido processo laboratorial, ao cabo de cujas combinações o poeta sai de mãos vazias: jogos-verbais, poemas-piada. E mais não sabem dizer. Moacyr precisa dizer. Tem pressa de dizer. Quer dizer. Homem do mundo. À medida de um Lorca. De Um Neruda. Vejam as memórias do poeta chileno: amor, exílio, liberdade - palavras igualmente caras ao coração de Moacyr, ao velho coração tão jovem de Moacyr, lírico, terrivelmente lírico, absurdamente lírico, como um Vinícius. O coração pulsando. As veias abertas.

Vejam Dante, que mesmo no "Paraíso", na iminência de contemplar o mistério, longe de todas as feridas, de todos os contrastes, não deixa de pensar na utopia. O Sol e as estrelas, movidos pelo amor. Ora, Moacyr Félix (eliminada a dimensão cristã), com ele compartilha a mesma ira, a mesma razão apaixonada.

Tomo dois exemplos de leitura. Primeiramente Neste lençol, considerado por Drummond como dos mais belos poemas eróticos em língua portuguesa, e suas maravilhosas ressonâncias de Pasternak, de O Cântico dos cânticos, do Cântico espiritual de João da Cruz, do Marienbad, e de toda uma rede altamente complexa do eros, com uma delicadeza, uma verdade, uma abrangência praticamente inexistentes em certos poemas pretensamente eróticos. Mas em Neste lençol encontramos o mundo, o corpo dos homens, o corpo da história, o corpo da utopia. O microcosmos e o macrocosmos coincidindo. O sangue. O tempo. O sêmen. O Paraíso. Um afresco da história do mundo.

Ou, finalmente, o poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade. Em "Recado ao poeta e seus problemas" encontramos a suma da poesia de Moacyr Félix, a expressão lírica e a expressão civil, amplamente conjugadas, em voz alta, com as repercussões cósmicas bem conhecidas, de que a utopia é capítulo, comparecerem aqui, ao lado de uma indignação quase frankfurtiana, diante de um mundo em decomposição, desprovido de memória, sem coragem de enfrentar o futuro.

Mas o que me comove em Moacyr Félix será talvez sua parte menos clara, menos estudada, as formas do ainda não, uma sentida nostalgia das coisas, que lhe servem como fantasmas. Comove-me o Moacyr das sombras, da morte, lutando para estar vivo, como se fosse tocado pelas tenazes da melancolia, no exílio de agora, exilado de todos, de si mesmo, buscando razões mais fortes, mais densas e mais iluminadas para seguir, sem desesperar das coisas e dos seres. Como Hart Crane e a Ponte. Como Iessiênin e o Hotel Inglaterra.

Recordo, nas memórias do poeta Biagio Marin, um episódio ocorrido em Roma, com Scipio Slataper. Uma jovem florista, encantada com a personalidade de Slataper, oferece-lhe, inesperadamente, em plena rua, um buquê de violetas, a que Slataper grosseiramente repudia. Marin reclama do amigo aquele não aos deuses, sua obstinada vontade de caminhar sempre, de jamais se abrir à revelação dos anjos, enquanto Slataper afirmava a necessidade de prosseguir além do belo, para não se perder no fluído das possibilidades e não trair compromissos. Ora, onde se localizaria Moacyr Félix, na recusa dos anjos ou na celebração da vida? Vejo-o plena, e intensa, e dramaticamente ocupando os dois lugares, recusando as flores e, ao mesmo tempo indo arrancá-las, desesperadamente, das mãos da florista, num gesto de profunda e maravilhosa redenção, de si mesmo, dos homens, pois a revolução e as flores não formam senão o grande e luminoso jardim do futuro. Ainda podemos falar de Blanqui? Da eternidade pelos astros? De flores e abismos?

SINGULAR PLURAL
Moacyr Félix
Record, 398 páginas

Marco Lucchesi é escritor, publicou recentemente Bizâncio (Record)

 



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30/11/2006