Aníbal Beça
Fortuna crítica: Oscar D'Ambrósio
As cores escondidas dos poemas de Anibal
Beça
"A música
assemelha-se à poesia: em ambas há encantos sem nome que nenhum
método ensina, e que só podem ser alcançados por mãos de mestre".
Essas palavras de Pope (1688-1744), em Ensaios sobre a crítica,
reforçam três textos elogiosos sobre a obra Suíte para os Habitantes
da Noite (Paz e Terra, 238 p., 1995), VI Prêmio Nestlé de Literatura
Brasileira na categoria Poesia, de Anibal Beça.
No prefácio do
livro, Marcus Accioly, sensível poeta e membro do júri que premiou a
obra, destaca os elos dos poemas do poeta
amazonense com a noite e com o pós-moderno, chegando a considerá-lo
um "épico moderno que, contendo o lírico, alcança a essência do
dramático". De fato, lírico, épico e dramático convivem em
surpreendente harmonia ao longo dos poemas.
No posfácio, o
poeta Zemaria Pinto considera poesia a manifestação de uma crise, ou
seja, um "constante questionamento" que se realiza nas
possibilidades lúdicas da linguagem. Assinala características do
neobarroco na obra premiada e aponta como o inconsciente e a
desrazão fazem presente sob diversas formas: desde a recorrência do
tema noite até a presença da lua e suas múltiplas facetas.
Finalmente, em
resenha publicada no jornal O Escritor , da União Brasileira de
Escritores, em maio de 1996, a crítica Beatriz Helena Ramos Amaral
destaca "o rigor do músico erudito, a habilidade do artesão, a
ousadia virtualística do solista e a elegância de um regente cônscio
do seu ofício"presentes em Suíte para os Habitantes da Noite. Anibal
Beça é merecidamente homenageado pela habilidade na condução de
"propostas melódicas, rítmicas e expressivas".
Para tentar
acrescentar algo aos elogios desses competentes críticos ao trabalho
de Anibal Beça, é melhor seguir outro caminho. Já no próprio título,
composto de três elementos, há algo a acrescentar.
LEITURAS
"Suíte"tem duas
acepções. A primeira é "uma série de peças instrumentais escritas no
mesmo tom e derivadas de danças". Portanto, torna-se difícil
argumentar que o mesmo tom permeie os poemas do livro. Além disso,
nem todos os títulos dos poemas provêm de danças.
A segunda
acepção aponta para a "união de fragmentos musicais extraídos de uma
obra teatral, coreográfica e lírica". Parece ser mais
coerente com o conteúdo do livro. Afinal, os poemas têm como ponto
de partida a maior de todas as peças de teatro, a maior das
coreografias e a maior ópera: a vida.
Quanto ao uso
do vócabulo "habitantes", indicia uma generalidade. Não serão
enfocados apenas seres humanos, mas todos aqueles que vivem à noite.
Isso inclui pessoas, animais, sombras e sons. Nada escapa ao olhar
aguçado do poeta. Não deixa a realidade escapar entre os dedos e
também não ignora as emoções e sentimentos de todos aqueles que
existem concretamente ou podem existir abstratamente no ambiente
noturno.
Finalmente a
noite. Trata-se do campo de trabalho do poeta. É o universo do caos,
do inconsciente e das paixões. Possibilita encontros, desencontros,
ilusões e desilusões. Viver à noite é deixar o inconsciente aflorar,
passando a ver o que poucos vêem e descobrindo nuanças onde a
maioria só vê trevas. A noite, para Anibal Beça, não é o local onde
não se vê, mas sim onde só os sábios podem ver melhor.
Como o cego advinho grego Tirésias, o poeta, justamente por também
trabalhar no escuro, à noite, vê melhor e conduz o leitor à
consciência da relatividade da vida.
Portanto, o
título de Beça aponta para uma reunião de impressões (poemas =
suítes) extraídas dos participantes (moradores = habitantes) do
inconsciente (universo das essências = noite). Sendo assim, os
gêneros musicais apontados nos títulos dos poemas (chorinho, valsa,
lundu, serenata, blues, toada, merengue, tango e milonga, entre
outros) são as diferentes formas de expressão de seres ou emoções
que têm na noite seu ponto de expressão mais alto.
A partir dessa
visão do título, evoco o teórico maltês Edward de Bono, que, em Seis
chapéus (Editora Vértice, 1986), cataloga, com todas as limitações
possíveis desse tipo de análise, as principais características do
comportamento humano em seis grupos e identifica cada um com uma
cor. É enriquecedor verificar como essas diferentes visões de mundo
convivem com tranqüilidade nos poemas de Beça.
EXPLOSÕES
Comecemos pela cor vermelha. Equivale a uma personalidade explosiva,
emotiva, que diz tudo aquilo que acha e que pensa. É o caso de
ritmos como o merengue , o samba e o carimbó. O poema XIX da parte
intitulada Intermezzo (Carimbó para gambás, tambor de onça e
clarineta) exerce justamente essa função. Basta ler os primeiros
versos:
"Meu galo se alaga
no lago da noite
meu galo de gala
meu galo de sonho
meu galo guerreiro
pousado de pé
de bico calado
a crista arriada
repousa o guerreiro
caído num galho
sonhando com luzes
de novas ribaltas
batalhas em rinhas
duelos de faca
em campos de liça
torneios de canto
e trompas de caça.
Há justamente a
presença das brigas de galo, duelos de faca e liças, universos
típicos da cor vermelha.
O segundo grupo
de atitudes corresponde ao amarelo. Inclui as personalidades
positivas e cheias de vida e otimismo. É relacionado às
pessoas que sempre acreditam que existe uma solução, mesmo nas
piores dificuldades. Identifica-se ao xote, presente no poema XIX,
também no Intermezzo (Xote com acompanhamento de sanfona, zabumba e
triângulo):
"Trova e treva iluminam-se
para violar o leito da donzela
e o aprendiz da garoa
estiola-se no gesto
de gota e silêncio."
E na segunda
estrofe:
"Sem embargo dessa treva
a ablução é celebrada
no cântaro selenita
ao avesso do labirinto."
Mesmo na
escuridão, há ablução, ou seja, o ritual da purificação através da
água, indicando que sempre há como se limpar das trevas
noturnas internas.
A cor negra é a
terceira. Relaciona-se aos comportamentos pessimistas e às contínuas
lamentações. Existe o prazer, mas é comumente associado à dor. Um
exemplo é o tango. Ocorre no poema XL (Tango à maneira de Masoch) da
parte intitulada Piu allegro. Inicia-se com a declaração de amor
("ainda sim te amo") no final de seis tercetos. Na última estrofe, a
confissão final:
"resta o ato em que me completo
porto oportuno do gozo
ferrão de vespa na pele da paixão."
Há prazer, mas
também dor masoquista.
O branco
caracteriza-se pela capacidade de raciocinar, equilibrando o
otimista e o pessimista, ou seja, respectivamente, o amarelo e o
negro. É o caso das pastorálias, principalmente no poema XVI do
Intermezzo. Este permite bem mais do que as duas leituras que o
título (Pastorália com duas leituras para solo de avena) indica.
Duas estruturas paralelas se relacionam gradativamente, verso a
verso, criando jogos sonoros e de sentido que encantam o leitor,
mostram como o poder da razão está justamente em superar os extremos
e buscar o equilíbrio, pois o texto amarelo da direita fala em "um
sol veste orgasmo" e o negro da esquerda, em "sereno adormeço".
Assim, lendo-se os dois poemas que surgem das pastoral, é possível
encontrar o equilíbrio.
CRIAÇÃO
O comportamento
criativo predomina na cor verde. Caracteriza-se pela capacidade de
gerar polêmica e de surpreender. Foi o que ocorreu com a criação da
música dodecafônica ou dos recursos que a música por computador
podem oferecer.
O poema XLI
(Variações para música dodecafônica), da parte intitulada Più
allegro, mostra justamente técnicas de construção e deconstrução de
palavras oriundas do concretismo que encontram analogias com a
música dodecafônica.
Em ambos os
casos, há variações sobre o mesmo tema, ocorrendo o prazer estético
pelo diálogo entre semelhanças e diferenças sonoras e, no caso do
texto escrito, semânticas.
Finalmente o
azul, a cor do equilíbrio. Trata-se da pessoa com capacidade de
decisão para saber escolher o que e quando fazer, verificando qual
das outras cores, ou seja, comportamentos, deve predominar em cada
ocasião. É o caso da balada. O poema XLV
(Balada como/vida para acompanhamento de cítara e tabla, dançada e
cantada por muitas vozes à maneira dos mantras) é o único da parte
Finale, com o subtítulo Più soave.
Apresenta uma
prostituta velha, um operário, um professor, um garçom, um bêbado,
um mendigo, um motorista, um travesti, um poeta, um músico, um
policial, um estudante e um cheira-cola expondo seis versos
iniciados com "Uma vida é só uma vida". Ao final, todos dizem:
" Uma vida é só uma vida
só uma vida é vivida
melhor se for dividida
e tudo mais é só
e tudo mais é
e tudo mais
e tudo
e"
De fato, o
segredo da poesia, como já ensinava Fernando Pessoa, também
homenageado por Anibal Beça com um poema, está em ser todos e nenhum
ao mesmo tempo, pois somente dividindo-se seria possível encontrar o
ponto que nos une. Ao terminar com uma conjunção aditiva (e),
revela-se o desejo de diálogo infinito do ser humano, sempre
buscando novas fronteiras.
Portanto,
mergulhado na essência dos moradores da noite, Anibal Beça faz sua
suíte. Retira da grande ópera humana os melhores momentos e compõe
músicas/quadros/poemas repletos de erudição e sensibilidade. Há
neles talento de compositor e sentimento humano, numa mistura feliz
de drama a Manuel Bandeira e rigidez a João Cabral de Melo Neto.
Assim como
esses dois expoentes máximos da literatura eram parentes, criando
obras díspares, mas igualmente geniais, Beça vence o desafio
proposto por Bono. Veste os seis chapéus coloridos de forma
intercalada e na hora certa, gerando um livro camaleônico em que
cada poema é um novo desafio e surge com uma nova cor, um novo ritmo
e um novo sentido.
PRIVILÉGIO
Valéry
(1871-1945) já disse que "...em poesia, trata-se antes de mais nada,
de fazer, com a própria dor dos habitantes da noite, ritmos
musicais"e reúne suas impressões poéticas em uma suíte para ser lida
e relida, ouvida e repetida, como as profecias metafóricas de
Tirésias ou os oráculos misteriosos da Pítia de Delfos. Decifrar
tais desígnios exige a paciência oriental de pronunciar um mantra.
Esse é o
desafio ascético e estético que o poeta amazonense impõe, com
perícia, aos leitores, provando que sua poesia não é para ser vista
e rapidamente esquecida, mas para ser ludicamente degustada, como um
bom vinho, ou pacientemente estudada, como um enorme quebra-cabeças.
Penetrar nela
já é um prêmio. Ter acesso ao número de Ariadne que descortina a
saída do labirinto que cria, um privilégio. Espero que
tenhamos a capacidade de fazê-lo antes que o minotauro do
inconsciente nos devore e nos prive da capacidade de usar com
arbítrio os seis chapéus de Edward de Bono.
Os poemas de
Anibal Beça são um passo para que isso aconteça, pois seus
oraculares poemas contém chaves para penetrar no neobarroco
pós-moderno ditado por uma era de neomegaglobalização praticamente
indefinível na qual poucos, muito poucos, conservam a poesia viva.
Anibal Beça é um desses privilegiados.
Oscar D'Ambrosio é articulista do Jornal da Tarde,
membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da UBE.
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