Rodrigo Alves
Entrevistado: José Castello
[in Jornal do Brasil, 10.07.1999]
"O contato com os escritores pode enriquecer a leitura"
Depois de 20 anos trabalhando com
jornalismo literário, José Castello resolveu trazer à tona
lembranças que estavam guardadas na gaveta. Ele foi além dos limites
da reportagem e mostrou a face escura de autores como Clarice
Lispector, Nelson Rodrigues, Manoel de Barros e José Saramago. O
resultado está em Inventário das sombras (Record, 308 páginas, R$
28), onde Castello conta os detalhes dos encontros que teve com 13
escritores e dois intrusos: o jornalista João Rath e o artista
plástico Arthur Bispo do Rosário."Escolhi nomes pelos quais tinha um
interesse especial", diz Castello. "O que me interessava eram os
aspectos que normalmente são descartados pelo mercado", explica.
Para ele, o livro foi a oportunidade de revelar um lado que jornais
e revistas mantêm escondido. "Em minha experiência como repórter, vi
que grande parte das coisas mais interessantes ocorre
marginalmente", lamenta. "No livro tive total liberdade, me
dedicando somente àquilo que me interessava".
- Em que momento você percebeu que tinha
material para publicar o livro?
- A idéia era fazer alguma coisa sobre os artistas que podem ser
chamados de malditos. O título original era Inventário das
maldições, e eu não me limitava a escritores, entravam músicos,
pessoas de outras áreas. Aos poucos comecei a perceber que a idéia
de ser amaldiçoado era muito limitada e às vezes ficava muito
forçada quando aplicada a certos artistas. O que me interessava não
era a imagem clássica do maldito, mas os aspectos que normalmente
são descartados pelo mercado, pela mídia. Concluí que não eram só os
malditos que estavam fora. Havia artistas que não podem ser chamados
de malditos, mas que não são entendidos pela mídia. Então desisti da
idéia da maldição e fui procurar uma palavra mais geral. Foi então
que cheguei na sombra, é a idéia de pegar os escritores por seus
lados mais obscuros, com menos glamour.
- E por que você resolveu se concentrar nos
escritores?
- Os capítulos com escritores estavam rendendo mais. E não é
coincidência, já que eu trabalho há quase 20 anos no jornalismo
literário. Então resolvi tirar músicos, pintores - com exceção do
Arthur Bispo do Rosário. Ficaram só os escritores com quem eu tive
algum contato pessoal mais intenso.
- Entre eles, quais foram os mais marcantes?
- É muito difícil dizer. A Clarice Lispector me marcou muito. Eu
estive com ela já no fim de sua vida, doente, solitária, perturbada.
Sempre gostei muito da literatura dela e depois passei a gostar mais
ainda. O Nelson Rodrigues era um sujeito que eu respeitava, mas
depois de conhecê-lo fui realmente entender sua grandeza. Com o
Saramago aconteceu algo semelhante. Tinha uma relação de leitor com
ele. Foi depois de conhecê-lo que eu entendi entendi porque ele é um
sujeito que ganha o Nobel.
- A aproximação com o Nelson Rodrigues gerou
fatos curiosos, como os telefonemas que ele fazia para você.
- Aquilo foi uma experiência muito perturbadora. Eu fui fazer um
perfil dele para a Veja. A reportagem saiu, até aí tudo bem. Só que
a parte mais interessante aconteceu depois, e nunca saiu publicada.
Na nossa experiência de repórter vemos que grande parte das coisas
ocorre marginalmente.
- A divulgação desse lado marginalizado pode
fazer com que as pessoas encarem a obra do escritor de uma maneira
diferente?
- Tenho certeza que sim. É claro que você pode ler e se apaixonar
por um escritor sem nunca ter lido uma entrevista dele. Mas eu
sempre achei que a aproximação com os escritores enriqueceu ainda
mais a leitura que eu tinha da obra. Estou convencido que essa
separação da obra de um lado e o autor do outro - que predomina
neste século - é uma visão castradora, ao contrário do que
normalmente se pensa. Isso não é uma teoria que eu levantei,
descobri por experiência própria.
- Algumas entrevistas parecem ter sido
conseguidas com muita dificuldade. Como foi a luta para entrevistar
o Manoel de Barros, por exemplo?
- O Manoel de Barros é um exemplo perfeito do que eu acabei de
comentar. Ele se recusou porque tem o hábito de dar entrevistas por
escrito. Levei mais de um ano tentando entrevistá-lo. Você imagina
um Manoel de Barros perdido no meio do pântano, com a vida no meio
de vacas e passarinhos. Quando finalmente consegui chegar a Campo
Grande - depois de uma longa negociação - tomei um baita susto.
Encontrei um homem finíssimo, ouvindo música clássica e tomando seu
uísque, numa casa toda fechada. Depois, conhecendo-o melhor, voltei
a ler a poesia dele. E ela se mostra ainda mais sofisticada do que
eu imaginava.
- E a viagem para Paris, ao castelo do Alain
Robbe-Grillet?
- Essa foi muito legal. Ele foi um grande agitador, um
revolucionário que demolia padrões. E de repente eu encontrei um
Robbe-Grillet já velho, isolado do mundo, dentro de um castelo no
meio de uma floresta, completamente dominado pela mulher, vivendo
uma vida monótona, cuidando de plantinhas, serrando banquinhos. É o
oposto do que o mito sugeria.
- Por que você resolveu incluir o Arthur Bispo
do Rosário, mesmo com um perfil diferente dos outros?
- Quando resolvi ficar só nos escritores, tirei o capítulo do Bispo.
Mas um dia comecei a mexer no computador e fiquei relendo trechos
dos capítulos que eu rejeitei. Quando bati no do Bispo, foi tão
marcante que me veio uma tristeza por deixar aquilo de fora.
Consultei algumas pessoas e todas me disseram que, se fosse bom, não
teria problema incluir. Então coloquei no fecho. Antes dele vem o
capítulo do João Rath, jornalista que nunca foi escritor, mas foi a
pessoa de imaginação mais fértil que eu conheci em toda minha vida.
Isso tem a ver com o tom do livro. As pessoas me perguntam se é uma
reunião das minhas entrevistas, eu digo que não é. É um livro
completamente híbrido, sem gênero definido. E se é assim, nada
melhor do que terminar com algo surpreendente e fora do lugar.
- Com toda a sua experiência, como você está
vendo o jornalismo literário brasileiro hoje?
- Não estou muito entusiasmado. É chato falar isso, porque parece
que eu estou criticando os profissionais. Não é isso, conheço muita
gente muito boa que está tentando fazer jornalismo literário de
primeiríssima qualidade. Mas as informações que eu tenho são de que
as condições são péssimas e os jornais não estão apostando. É um
paradoxo, porque o mercado editorial brasileiro não pára de crescer.
CLARICE LISPECTOR
Chego ao edifício em que Clarice Lispector mora, na Rua Gustavo
Sampaio, no Leme, e me identifico. Ainda tenho a sensação de que sou
um invasor. (...) No elevador, trato de ensaiar as palavras que devo
usar para agradecer, mas quando ela abre a porta do apartamento
emudeço. Encontro outra vez um grande silêncio, que agora está
dentro de mim. Vejo uma mulher de turbante, mal vestida, quase
negligente. O batom, escandaloso, não segue bem a linha dos lábios.
A pele é branca e adoentada, leitosa, como se estivesse desbotada. É
uma mulher alta, ou pelo menos que me olha de cima. Fica parada
esperando que eu diga qualquer coisa. Eu digo: "Temos hora marcada".
Ela responde: "Eu dei ordem ao porteiro para não deixar ninguém
subirrr", e lá estava a voz do telefone, incorporada numa mulher, e
arrastando sua cauda de erres. "Mas, já que você subiu...", ela se
corrige, e há novo silêncio, completando assim: "Então entre". Não
é, evidentemente, uma escolha. Ela não quer se aborrecer, não tem
forças para brigar, e então me recebe. Entro.
MANOEL DE BARROS
Ainda desconfiado, toco a campainha. Manoel, ele mesmo, vem me
atender. É baixinho, sim, mas gorducho, com o ar bonachão, e uma
certa sofisticação contida, uma nobreza que me desarma. Eu esperava
um homem encurvado com calças arregaçadas; sou recebido por um
sujeito que veste impecáveis calças sociais, camisa de linho, óculos
modernos. Ele mora numa casa de arquitetura arrojada, ainda que
discreta, espremida em espaços estreitos e bem planejados. A
natureza, que eu supunha farta e caótica, é substituída pelo
paisagismo. Árvores de espécies diferentes se enfileiram ao longo da
parte interna do muro, impecáveis como talheres perfilados num bufê.
O sol só pode entrar pelas frestas estreitas que os arquitetos lhe
deixaram. Os jardins, murados com esmero, têm terra seca e bem
tratada. O pantanal, com seus exageros, sua inconstância, seu
horizonte vazio, está muito longe dali. Não vejo, na verdade,
qualquer sinal dele. (...) Manoel, aos oitenta anos, é um gentleman
que toma uísque importado, veste roupas vincadas, cita autores da
moda, diz piadas convenientes e se esconde em gentilezas.
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