José Saramago
José Saramago, nosso Nobel!!!
entrevistado pela Playboy brasileira
"Ser-se comunista é um estado de espírito.
(...) Sou comunista. (...)
[Mas] São os fatos que mostram:
setenta anos de construção do socialismo
na União Soviética não chegaram para fazer comunistas."
"Meu avô,
analfabeto, homem simples,
sem nenhuma das sofisticações da civilização,
foi de árvore em árvore, abraçou-se a cada uma delas,
chorando. Ele adivinhava que não voltaria."
"Não
escrevo mais que duas páginas por dia.
Ao fim da segunda, paro, mesmo que pudesse continuar.
Parece pouco, mas duas páginas por dia,
todos os dias, ao fim do ano são quase oitocentas."
O cidadão
português José de Sousa Saramago é um daqueles casos nada comuns de
alguém que, já na idade madura, deu uma guinada radical na vida.
Vinte anos atrás, estava ele, cinqüentão, solidamente estabelecido
em Lisboa e num segundo casamento; vivia de traduções e tinha atrás
de si uma breve experiência como jornalista. Nas horas vagas,
administrava uma discreta carreira literária, iniciada na juventude
com o romance Terra do Pecado, interrompida em seguida por quase
duas décadas e desdobrada, a partir de 1966, numa dezena de livros
que não chegaram a fazer barulho, a maioria deles coletâneas de
poemas e de escritos jornalísticos. Nada permitia supor que José
Saramago viria a se tornar quem hoje é: às vésperas de completar (no
mês que vem) 76 anos de idade, um romancista lido e admirado em todo
o mundo, traduzido para 21 idiomas e insistentemente apontado, desde
1994, como um dos favoritos para ganhar Prêmio Nobel de Literatura,
tradicionalmente anunciado no mês de outubro e que seria o primeiro
concedido a um autor de língua portuguesa.
Pois foi aí, já
quase sexagenário, que a vida de José Saramago - menino pobre que
não teve um livro antes dos 19 anos e que na juventude trabalhou
como mecânico de automóveis (embora não saiba dirigir) - se pôs a
trepidar, num benfazejo terremoto que em pouco mais de uma década
haveria de redesenhar a sua paisagem existencial. Aos 57 anos, para
começar, ele finalmente decolou como escritor ao publicar o romance
Levantado do Chão. Aos 64, encontrou o que acredita ser o seu
definitivo amor em alguém 28 anos mais jovem, a jornalista sevilhana
María del Pilar del Río Sánchez. Aos 70, transplantou-se das margens
do Tejo para uma ressequida ilha vulcânica espanhola onde não corre
um ribeirão sequer e toda a água tem que ser tirada do mar,
Lanzarote, a mais oriental das sete Canárias, com 50 000 habitantes
e 805 quilômetros quadrados.
Ali, numa casa
que vem a ser a primeira e até agora única propriedade desse
persistente militante comunista, foram escritos seus livros mais
recentes, Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes, além dos diários
intitulados Cadernos de Lanzarote, encorpando uma obra na qual já se
destacavam os romances Memorial do Convento, O Ano da Morte de
Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
No Brasil, onde o melhor de Saramago já foi publicado, apenas este
último título vendeu 85 000 exemplares.
A virada na
vida do escritor foi engatilhada de maneira acidental, em 1975,
quando, demitido do cargo de diretor-adjunto do Diário de Notícias
ele decidiu não procurar emprego, abrindo assim espaço para que a
sua criação literária deslanchasse em regime de dedicação exclusiva.
José Saramago,
que tem uma filha, Violante, bióloga, de seu primeiro casamento, e
dois netos, Ana e Tiago, já era autor consagrado em 1992, quando o
ateísmo contundente de O Evangelho Segundo Jesus Cristo desaguou num
episódio de censura que acabou determinando a sua mudança para
Lanzarote, onde se instalou em fevereiro de 1993. O editor sênior
Humberto Werneck, de PLAYBOY, lá esteve para entrevistar o escritor
e conta:
"Branca, com
dois pavimentos, a casa de José Saramago se chama exatamente isso,
'A Casa', conforme se lê junto ao portão de entrada. Fica no número
3 da Rua Los Topes, numa esquina da minúscula cidade de Tías, mas
pode ser que o visitante tenha dificuldade em encontrá-la, pois o
dono de A Casa, tendo lido sobre a história do lugar, decidiu
restabelecer a sua antiga denominação, hoje inteiramente esquecida,
Las Tías de Fajardo.
"Os carteiros
de Lanzarote já se conformaram com a esquisitice, e não é impossível
que o mesmo acabe acontecendo com os demais lanzarotenhos, sobretudo
se o ilustre forasteiro vier a ganhar o Prêmio Nobel. Já são
provavelmente maioria os nativos capazes de reconhecer aquele senhor
alto, desempenado e sobrancelhudo, com óculos grandes demais para o
seu rosto e cabelos grisalhos que escasseiam no alto e abundam, um
tanto alvoroçados, na parte de trás da cabeça. Saramago ganhou faz
um ano o título de 'filho adotivo' da ilha e só não é 'o' escritor
de Lanzarote porque lá vive o romancista espanhol Alberto
Vásquez-Figueroa, com quem fez camaradagem.
"Reservado,
porém afável, de pouco riso mas longe de merecer a fama de
mal-humorado que o persegue, José Saramago acumula as
características a princípio excludentes de homem a um tempo caseiro
e viajador: duas vezes por mês, em média, ele abandona a paisagem
lunar de Lanzarote para atender a compromissos profissionais, sempre
em companhia de Pilar del Río, hoje a sua tradutora para o espanhol
e revisora das antigas traduções.
"Quando está na
ilha, o escritor pouco sai de sua casa, plantada num jardim
atapetado de picón, cascalho fino de origem vulcânica de cor preta
ou tijolo escuro. A vegetação esparsa inclui duas oliveiras que o
escritor quis ter ali por serem as árvores de sua infância na
Azinhaga, povoado da região portuguesa de Ribatejo onde nasceu,
filho de pais camponeses muito pobres, e onde viveu até mudar-se
para Lisboa, aos 2 anos de idade.
"Num dos cantos
do jardim há uma piscina (coberta, por causa do vento forte) com 7
metros e meio de comprimento, que o escritor atravessa pelo menos
trinta vezes todos os dias - uma das explicações para a excelente
forma física em que se encontra a apenas quatro anos de tornar-se
octogenário. O mesmo se diga, aliás, da bela e simpática Pilar del
Río, que aos 47 anos, mãe de um rapaz de 21, Juan José, que mora com
o pai em Sevilha, não aparenta mais que 35.
"Marido e
mulher têm, cada qual, seu escritório, e o de Saramago, no segundo
piso, deixa ver o mar. As edições portuguesas e estrangeiras de seus
livros espremem-se numa estante com quatro prateleiras e bom metro e
meio de comprimento. Numa fotografia, uma tabuleta em francês
provoca o ateu empedernido: "Dieu te cherche" - Deus te procura.
Nesse escritório (onde foram gravadas, em três rodadas, as 7 horas
desta entrevista), usando um laptop Canon acoplado a um monitor
Samsung, Saramago escreve pela manhã e no final da tarde a sua quota
diária de literatura, nunca mais de duas páginas, ao som de Mozart,
Bach ou Beethoven, e responde a algumas das cartas, cerca de 100, em
média, que lhe chegam todos os meses de vários cantos do mundo.
"Depois do
almoço, já embarcado no hábito espanhol da siesta, ele cochila ou
apenas relaxa na sala, no andar térreo. Nesses momentos nunca lhe
falta a companhia da fauna canina doméstica: o cão d'água português
(espécie de poodle) Camões, a yorkshire Greta e o poodle Pepe. À
noite, na cozinha, vai repetir-se um ritual: sentam-se os três
diante de seu dono, que, faca na mão, distribui rodelas de banana.
Pepe foi batizado pelo escritor na esperança de que não sobrasse
para ele próprio esse apelido a que, na Espanha, praticamente todos
os Josés se acham condenados. Camões assim se chama porque apareceu
na casa no dia de 1995 em que Saramago ganhou o Prêmio Camões,
concedido anualmente pelos governos de Lisboa e Brasília a um
escritor de língua portuguesa e que já distinguiu os brasileiros
Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz e Antonio
Candido. Camões adora livros: comeu duas biografias do presidente
sul-africano Nelson Mandela, em diferentes línguas, e ultimamente se
dedicava a roer as bordas de um grosso álbum de pinturas de Goya.
"Ao contrário
de outros autores lusitanos, Saramago exige que seus livros sejam
publicados no Brasil exatamente como saíram em Portugal, sem
concessões destinadas a facilitar o entendimento do leitor
brasileiro. Na transcrição desta entrevista, PLAYBOY não chega a
adotar a ortografia vigente em Lisboa, mas busca não abrasileirar a
fala do escritor. Como, ó pá, ninguém é de ferro, algumas palavras
ganharam 'tradução' entre colchetes."
PLAYBOY - Aos 70 anos, o senhor
veio parar nesta ilha, com outra língua, outra cultura. É um exílio?
SARAMAGO - A palavra é demasiado
dramática. Se estou aqui, isso se deve a uma decisão absurda,
estúpida do governo [português] de então [chefiado pelo ex-primeiro
ministro António Cavaco Silva], em 1992, quando um subsecretário
[António Sousa Lara] de Estado da Cultura - imagine, da Cultura... -
decidiu que um livro meu, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não
podia ser apresentado como candidato ao Prêmio Literário Europeu,
porque, segundo ele, ofendia as crenças religiosas do povo
português. Fiquei bastante desgostoso, indignado - e foi nessa
altura que a minha mulher me disse: "Por que nós não fazemos uma
casa em Lanzarote?"
PLAYBOY - Por que Lanzarote?
SARAMAGO - Nós tínhamos estado aqui no
ano anterior e gostamos muito. Mas quando minha mulher sugeriu
fazermos a casa, reagi como seria natural: "Pilar, por favor..." Mas
ao cabo de dois dias eu estava a dizer: "Essa idéia afinal de contas
não é má..." São duas reações masculinas típicas. Quando a mulher
diz ao marido: "E se nós fizéssemos isto assim, assim?", em geral
ele responde: "Não, que idéia!" A segunda reação é dizer, 24 ou 48
horas depois, como quem condescende: "Olha que essa tua idéia afinal
de contas não é tão má..."
PLAYBOY - Uma mudança como essa traz
problemas de adaptação...
SARAMAGO - Sim, mas adapto-me muito
facilmente a situações novas.
PLAYBOY - E é chegado a experiências
tardias na vida, não?
SARAMAGO - Tenho que reconhecer que as
coisas boas da minha vida aconteceram um pouco tarde. Quando publico
o Memorial do Convento, em 1982, estou com 60 anos, e com 60 anos o
escritor normalmente tem sua obra feita. Não é que não continue, mas
a parte central da sua obra já está feita. Eu tinha alguns livros,
mas é com o Memorial do Convento que tudo ganha outra força.
PLAYBOY - A sua estréia foi lá atrás,
aos 25 anos.
SARAMAGO - Tenho um livro que foi
reeditado agora - o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso
-, um romance que publiquei em 1947. Chama-se Terra do Pecado. Não
está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um
outro livrinho [o romance A Clarabóia], que está por aí, mas,
enfim...
PLAYBOY - Não será publicado?
SARAMAGO - Em vida minha, não. Depois,
se quiserem...
PLAYBOY - Do que se trata?
SARAMAGO - É a história de um prédio
onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma
clarabóia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está
mal, mas não quero que publiquem.
PLAYBOY - Depois de Terra do Pecado o
senhor ficou quase vinte anos sem escrever. O que houve?
SARAMAGO - Se eu tivesse tido êxito com
aquele primeiro livro... Mas também seria difícil esperar que
tivesse. Vivi sempre muito isolado, nunca pertenci a grupos
literários, pelas próprias condições sociais em que vivia, sem
grandes meios. Sou uma pessoa que não passou pela universidade,
portanto não criou amigos nessa roda que se supõe ser de
intelectuais. Vivi sempre assim, à margem.
PLAYBOY - A sua formação literária foi
um pouco errática, não é?
SARAMAGO - Nem sequer errática [ri]...
Eu diria condicionada pela minha situação material. Depois da
instituição primária, entrei no liceu [ginásio], onde estive só dois
anos. A família não podia levar-me até o fim do curso. A partir daí
estive numa escola industrial e tirei o curso de serralharia e
mecânica. E aos 17, 18 anos fui trabalhar numa oficina de
automóveis, onde estive por dois anos.
PLAYBOY - O que fazia lá?
SARAMAGO - Desmontava e consertava
motores, regulava válvulas, condicionava, mudava juntas de motores.
Agora, o que há talvez de importante aí é que nesse curso industrial
havia uma disciplina de Literatura, coisa um pouco estranha, e que
me abriu o mundo da literatura.
PLAYBOY - O seu primeiro livro foi mal
recebido?
SARAMAGO - Não. Mas é um livro entre
muitos, não tem muita importância. Naquele impulso ainda escrevi A
Clarabóia. Não sei se naquela altura tive consciência de que não
tinha grandes coisas para dizer e que, portanto, não valia a pena. O
melhor que me aconteceu foi ter uma vida suficientemente larga para
que aquilo que tinha que chegar chegasse.
PLAYBOY - Dá a impressão de que o
escritor tem um manancial que pode ser explorado seja na juventude,
seja na idade madura. Pode-se dizer que está jorrando agora uma
coisa que ficou represada?
SARAMAGO - Se esse manancial existia,
pelo menos eu não tinha consciência dele. Nunca fiz uma lista de
assuntos e disse: "Vou fazer tudo isso". Cada vez que acabo um
livro, fico sem saber o que vai acontecer depois. Cheguei ao ponto a
que cheguei dando um passo de cada vez, e esses passos não estavam
planeados. Agora, isso tem outra vantagem: me dá uma sensação de...
não quero dizer de juventude, mas de...
PLAYBOY - ... vitalidade.
SARAMAGO - Talvez de uma capacidade
imaginativa que pode não ser muito comum quando se chega à idade que
tenho. Provavelmente é isso que me leva a dizer: "Que sorte eu tive,
de tudo o que tinha a fazer de mais importante estar a fazê-lo nesta
fase da minha vida". Porque se tivesse feito aos 50 anos,
provavelmente agora não tinha mais nada para dizer. Se nós
tivéssemos a certeza de ter uma vida longa, talvez valesse a pena
guardar para a parte final dela aquilo que temos realmente para
fazer. É a circunstância em que nós nos achamos que nos obriga a
decidir, e há dois momentos importantíssimos na minha vida. Um é o
aparecimento da Pilar. Foi um mundo novo que se abriu. O outro foi
em 1975, quando era diretor-adjunto do Diário de Notícias e, por
causa de um movimento que se pode chamar de contragolpe [político],
fui posto na rua.
PLAYBOY - O que foi que houve?
SARAMAGO - No dia 25 de novembro de
1975 há, de uma parte dos militares, uma intervenção que suspende o
curso da revolução [a chamada "Revolução dos Cravos", que a 25 de
abril de 1974 pôs fim a 48 anos de ditadura salazarista] tal como
ela se vinha desenvolvendo e que põe um travão àquilo que estava a
ser o movimento popular. Foi o primeiro sinal de que Portugal iria
entrar na "normalidade". O jornal pertencia ao Estado e os
responsáveis, então, demitem a redação e a administração. E aí é que
tomo a decisão de não procurar trabalho. Tinha muitos inimigos e não
era fácil que fosse encontrar trabalho. Mas nem sequer tentei.
PLAYBOY - Inimigos no mundo
jornalístico ou no mundo das letras?
SARAMAGO - Inimigo nas letras eu tenho
é agora. Naquela altura eu não era ninguém.
PLAYBOY - O senhor se considerava um
jornalista ou um escritor?
SARAMAGO - Nunca me considerei um
jornalista. Porque entrei nos jornais sempre pela porta da
administração, nunca pela porta da redação. Nunca fiz uma
entrevista, uma reportagem, nunca escrevi uma notícia. Também é
certo que não me considerava tão escritor assim, porque aquilo que
tinha feito não me dava um estatuto de escritor. No fundo, era
apenas alguém que estava à espera de que as pedras do puzzle do
destino - supondo-se que haja destino, não creio que haja - se
organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria
pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho". Tinha
uma idéia vaga, queria escrever um livro sobre a vida dos
camponeses. Comecei a pensar o que faria sobre o lugar onde nasci,
mas as circunstâncias me levaram para o Alentejo [região a leste de
Lisboa]. Fui para lá em 1976, fiquei semanas ouvindo pessoas,
tomando notas, e isso veio a dar no livro Levantado do Chão, que se
publicou em 1980.
PLAYBOY - O que pretendia quando
começou a escrever? Fama? Dinheiro?
SARAMAGO - Eu não queria nada. Queria
apenas escrever. E quanto a isso de querer ser rico, eu nem agora
penso em ser rico.
PLAYBOY - O senhor não está rico?
SARAMAGO - Não. Ao olhar para estas
paredes, diga: "Estão feitas com livros". Não tenho bens de outra
natureza. Se quisesse ser rico, tinha permitido que se adaptasse o
Memorial do Convento a uma novela brasileira.
PLAYBOY - Houve uma proposta?
SARAMAGO - A [falecida atriz] Dina Sfat,
em Lisboa, disse-me: "Queremos fazer o Memorial do Convento". Eu
disse nessa altura: "Não tenho qualquer razão para querer ser rico".
Evidentemente que se dirá hoje: "Ah, mas você vive bem". Vivo
relativamente bem. Mas isso não é como resultado de um projeto para
enriquecer.
PLAYBOY - O senhor recusou a proposta
de Dina Sfat mas aceitou outra, para adaptação cinematográfica de A
Jangada de Pedra.
SARAMAGO - Esse foi um caso em que eu
cedi. Mas não cedi a nada senão à simpatia da própria pessoa [a
professora húngara Yvette Biró, da Universidade de Nova York]. Ela
mostrou um interesse tão grande, de uma forma tão inteligente... O
guião [roteiro] está feito, ela está à procura de um produtor,
parece que está bastante adiantado - mas a verdade é que não dou
seguimento a nada, como se no fundo quisesse que tudo isso
abortasse. Há outras situações, como, por exemplo, a que se refere
ao Ensaio sobre a Cegueira. Oito produtoras norte-americanas e uma
inglesa estão a ler o livro. Já disse ao meu agente: "Deixa-os lá
fazer propostas, mas não será adaptado o livro".
PLAYBOY - Nem se for uma proposta
extremamente tentadora?
SARAMAGO - É preciso pensar sobre o que
produtores norte-americanos fariam de um livro como esse.
PLAYBOY - O que eles fariam?
SARAMAGO - Aproveitariam o que no livro
há de mais exterior, que é a violência e o sexo. E aquilo que é
importante, a interrogação sobre como é que nós nos comportamos, que
uso fazemos da nossa razão, que cegueira nossa é essa que não é dos
olhos mas do espírito, que relações humanas são essas a que chamamos
humanas e que de humanas têm tão pouco. A lição que o livro pretende
dar desapareceria completamente.
PLAYBOY - Mesmo nas mãos de um cineasta
sensível, um Antonioni?
SARAMAGO - Bom, há dois ou três nomes
que provavelmente me fariam pensar duas vezes. A verdade é que os
grandes realizadores [diretores] desapareceram. Os realizadores,
hoje, são meros funcionários que fazem aquilo que os produtores
mandam. Costumo resolver isso dizendo que não quero ver a cara das
minhas personagens. Pois se nem eu as descrevo...
PLAYBOY - Mas o senhor deve ter imagens
na cabeça quando escreve.
SARAMAGO - Não tenho ninguém na cabeça.
Sento-me diante do computador com a idéia de uma história que quero
contar, mas não necessito inspirar-me em figuras reais.
PLAYBOY - É verdade que todos os seus
livros partiram de um título?
SARAMAGO - Foi assim praticamente com
todos. Foram títulos dados, não sei por quem, não sei por quê. O Ano
da Morte de Ricardo Reis nasceu em Berlim. Eu tinha ido aí com uns
quantos escritores e num fim de tarde, cansado, deixo-me cair na
cama - e nesse momento caem-me do teto, quase, estas palavras: "O
ano da morte de Ricardo Reis".
PLAYBOY - E O Evangelho Segundo Jesus
Cristo?
SARAMAGO - Esse nasceu de uma ilusão de
óptica, em Sevilha. Atravessando uma rua na direção de um quiosque
[banca] de jornais e revistas, naquele conjunto de títulos e
manchetes pareceu-me ler "O Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Continuei a andar, depois parei e disse: "Isso não pode ser" - e
voltei atrás. De fato, não havia nem evangelho, nem Jesus nem
Cristo. Se eu tivesse uma boa visão, se não fosse míope,
provavelmente esse livro não existiria. O Ensaio sobre a Cegueira
nasce num restaurante. Estou sentado, à espera de que me sirvam, e
nesse momento, a propósito de nada, penso: "E se fôssemos todos
cegos?"
PLAYBOY - É verdade que Todos os Nomes
nasceu no Brasil?
SARAMAGO - Nasceu quando fui receber o
Prêmio Camões [em janeiro de 1996]. O avião já estava descendo em
direção ao aeroporto de Brasília - e de repente passa-me pela cabeça
isto: "todos os nomes". Nada disso é definido, aparece como idéias
vagas que passam, e algumas delas foram para mim tão claras, ou pelo
menos tão insinuantes, que me permitiram dizer: "Isto significa
qualquer coisa". Custa trabalho encontrar, depois, um caminho para
chegar aonde eu quero. Todos os Nomes, por exemplo, foi bastante
complicado e provavelmente não existiria se não tivesse coincidido
com a procura dos dados da vida e da morte do meu irmão [Francisco
de Sousa]. Eu queria saber as circunstâncias da breve vida desse meu
irmão, tem que ver com um livro para o qual tenho já muito material
recolhido, que é uma autobiografia...
PLAYBOY - O Livro das Tentações?
SARAMAGO - Sim. Uma autobiografia que
vai só até os 14 anos.
PLAYBOY - Não é curioso o senhor ter
começado pelo pecado Terra do Pecado - para cinqüenta anos depois
chegar à tentação?
SARAMAGO - Não, mas são outras
tentações. Se é uma autobiografia que vai até os meus 14 anos, que
tentações podem ser essas? Não as tentações da carne, nem as do
poder, da glória, não. Nasce uma criança, e o mundo todo, que está
aí para ser conhecido, é como uma tentação. Ora bem, esse irmão mais
velho morreu com 4 anos quando eu tinha 2. Se vou escrever um livro
sobre a minha vida, tenho que falar nele. Não sabia praticamente
nada dele, então pedi um certificado de nascimento - e aí é que
começam as surpresas: a data da morte não está lá. Do ponto de vista
burocrático, meu irmão está vivo...
PLAYBOY - Para quem não acredita na
vida eterna, hein?
SARAMAGO - Realmente, não acredito na
vida eterna, embora vá inventando formas de dar-lhe alguma
eternidade à vida. Quando invento [em Todos os Nomes] uma
conservatória [arquivo do Registro Civil] onde estão todos os nomes
e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de
dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe
permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez
escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro
totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me
leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie
de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e
que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com
atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não
têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não
escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu
não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve
ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o
lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me
preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações,
interrogações...
Nota do Jornal de Poesia:
A Playboy é uma revista de mulher-pelada — nada contra
mulher-pelada! muito pelo contrário. A minha impertinência contra
essa tal Playboy é porque ela faz questão de carregar o pesado
estigma de ser a revista mais séria e a das melhores entrevistas de
toda a imprensa brasileira! Parabéns, Playboy! [E, das peladas, só o
fino!] Isto faz a diferença!
|