João
Batista de Oliveira Filho
Comentário:
“Corrós de açude”, “Estudos e catálogos”, “PSI, a penúltima”...
Desde
menino, vejo e ouço coisas do tipo: “Cada doido com sua mania”.
Me pergunto: - Cada mania num terá o seu próprio doido?... Histórias,
cantorias, bonecos de barro, madeira, fibras vegetais... nascem no
dia-a-dia nesse mundão de deuses. Uns respeitam esses ditos e criações
do povo. Outros, nem tanto. Aqueles acolá vão além: dizem que
esse “saber” é simplista, tosco.
E haja discriminação ao que não é erudito ou acadêmico, até
ser “descoberto”, por quem? - por um erudito ou acadêmico que
através de uma tese, desenvolvida após anos de estudos – é
apresentada à sociedade culta numa roupagem, quanto mais complicada
melhor! Quando vejo algo assim o que digo? - Tosca simplificação,
compadre.
Sabe
o que é o caboco sentir umas coisas esquisitas e perceber não se
tratar de gripe, dor de barriga, reumatismo coisa e tal? E depois de
muito matutar, chegar a duas quase-certezas: primeira - a dor é
grande, pesada; segunda – não se trata de algo físico, não dá
pra medir ou pesar! Por encabulecimento, ignorância, sei lá - às
vezes o caboco cala, às vezes não. Um dia, pensando a respeito,
tenta externar, através da palavra, o que o corrói por dentro,
percebendo que as palavras conhecidas são insuficientes pra dar,
sequer uma noção! Nessa luta entre o sentir e o não exprimir,
compara, cria, perde o medo de ser tolo, solta-se ao vento que o
leva aos braços da linguagem por construir. A dor que deveras
sente, passa a ser do tamanho do mar e tão pesada quanto a serra
vizinha. Mas por maior e mais pesada que seja, inda assim cabe no
universo de uma lágrima - sem força pra escapulir do canto do olho
e deslizar pela face do vivente. Ao utilizar tal linguagem, se sente
parte desse processo criativo. Aí é difícil parar. Mesmo as
coisas mais insignificantes do trabalho adquirem outras conotações,
sequer imaginadas! E o que dizer das alegrias que pareciam tão
pequenas, tão pobres: cantigas de roda, adivinhações, a vida... A
vida?! Sim, a vida que chega e vai com as marés, com as estações
seca e chuvosa. Sua vidinha, quem diria, passa a ser mais que um
instante, nessa dimensão mágica: prenhe de encantos, surpresas,
possibilidades, promessas...
Por
que tudo isso? A questão é: gosto de matutar sobre as coisas.
Principalmente benquerenças. E dessas, das preferidas – o
versejar. Por falar nisso, dia desses, tomei conhecimento d’uns
textos que primeiramente me deixaram encabulado. Alguns deles
dispostos em forma de versos. Outros, em forma de prosa, mas prosa
com música, ou seja, versos também. Por fim, topei com algo
diferente. Me lembrou adivinhação. Quando parecia que eu ia
entender, o sentido me escapava. Mas mesmo nesse tipo de texto, dava
pra ouvir uma musiquinha zunindo nos ouvidos ao zanzar pelas
linhas...
Com
relação a “Da caixa postal aos corrós de açude: uma visita
ao poeta Ascendino Leite”, não tive nenhum problema com
entendimento. Até quando passei de banda da mensagem original do
autor, honestamente, não senti falta. Foi uma viagem maravilhosa,
com um toque de realismo fantástico (pitada de sal, que nenhum bolo
de puba pode prescindir), onde o humor, as frases bem construídas não
dispensaram a presença sutil da poesia em festa de casamento - da
prosa ágil com a prosa densa -, onde o autor parecia não somente
seguir ao encontro de um amigo, o poeta Ascendino, mas sim, fazer
também uma viagem ao encontro de si, qual menino em busca de uma
botija entupida de alfenins, mariolas, algodão-doce, espiquíngles
(nada a ver com picles!).
Já
que cê diz para não ter dó do seu lombo, confesso que em nenhum
momento consigo sentir “Estudos e catálogos – mãos”,
como prefácio de um livro, por melhor que seja, a não ser de
autoria do próprio Soares Feitosa! Explico: nesse texto, um viajar
mais prolongado, mais perspectivas, abordagens de assuntos múltiplos
- percebo convergência para o mundo do prefaciador e não para a
obra prefaciada de outro autor.
Até
o momento em que escrevo esses comentários, dos textos de SF em
prosa poética, é o que mais me encanta, inclusive por possibilitar
a abertura de um número maior de portas e janelas, por onde
reencontro pessoas, lugares, costumes, ofícios...
...
Uma ferra de gado: uma novilha mal amarrada. No exato instante em
que o ferro em brasa tocou num lado da novilha, o chiado do couro
queimado, o esturro da rês, o grito de homem, o barulho do osso
quebrado. Gado e homem marcados. O primeiro a fogo. O segundo a
coice. A rês teve a marca esmaecida, com o tempo. A marca indelével
em meu Avô, coxo pelo resto da vida (embora isso não o tenha
impedido de voltar a montar a cavalo e a ferrar gado)... O barulho
da faca sendo amolada, o choro do porco, a pancada na cabeça, o
dobrar dos joelhos, o último grito, a facada certeira no coração,
a vasilha aparando o sangue... Os bilros: balé das bordadeiras da
minha terra... A divisão de ofícios por gêneros, não de importância,
mas pela magia das mãos...
Psiu!
Falta algo, não? Não, não esqueci de “PSI, a penúltima”.
Cheguei, inclusive a mandar alguns versinhos, meio que brincando,
dessa personagem ímpar da obra do poeta. O próprio SF, num e-mail,
ao ler os versinhos, sugeriu: “... vá devagar com a
Comadre!...” Tentando defender a cria, compadre? Tem jeito não:
as crias não são nossas realmente. Podem até precisar de nós pra
vir ao mundo, depois disso: pés, veredas, encruzilhadas, poeira ao
longe.
Já
vi coisa doida
Já
li coisa batuta
Já
vi coruja esperta
Mas
nunca soube de história de raposa
Tão
biruta
Já
vi água vir de cima
Dos
lados e até de baixo
Tromba
d'água, força bruta
Mas
nunca soube de história de raposa
Tão
biruta
Cá
pra nós, meu amigo
Sem
as notas esclarecetórias
Padre,
ao invés de vinho, benze cicuta
Mas
nunca soube de história de raposa
Tão
biruta
É uma leitura densa.
Sem as notas de esclarecimento, eu estaria num mato sem raposa,
digo, sem cachorro. É mais que um texto difícil. É pra ser
conquistado. (E ao escrever isso, me vem à memória outra raposa, a
de Exupéry, quando diz ser necessário ritos, tempo – para que
possa ser cativada). Li diversas vezes. Ora em voz baixa, ora em voz
alta. Discuti a respeito com minha esposa. Fui estabelecendo laços
com a narrativa, referências... Não foi amor à primeira vista.
Sentimento que se consolida com o tempo. Amor maduro.
Vez por outra, frutos
dessas grotas, várzeas, caatingas, sertões... despontam uns
cabocos, que por arte do destino, capricho da natureza, ou vontades
de ferro, inda não bem compreendidas - trazem em si, igualmente
marcas de ferro em brasa -, a mágica herança popular, acrescida da
sabença dos bancos de escola. Mais difícil ainda pros entendidos
classificar o resultado dessa mistura doida! É preciso “carma”,
num ter avexame pra melhor apreciar o ofício desses poucos, que
começaram a viagem muito lá pra trás, percorrendo antigas veredas
conhecidas dos nativos, negros em fuga, quilombolas, tropeiros,
menestréis... passando por não poucas chibatadas, que lhes
enrijeceram ainda mais os lombos. Gente assim, do porte de João
Cabral, Ariano Suassuna... e numa vereda próxima, desponta outro
caboco - é o Soares Feitosa -, acompanhando d’um cururu
arteiro, distribuindo versos a mancheias. (batista
filho/DF set/2004).
Sobre
Joelhos & Mel
Estando eu na Ilha dos Mutuns, delta
parnaibano, sucedeu ir passar uns dias num povoado, Cal, que fica
numa ilha vizinha, por nome Grande de Santa Isabel. Destino certo: a
casa de minha madrinha, cujo pai, João, primo de minha mãe Dadinha,
foi me buscar no lombo do Branco (que de branco não tinha nada),
cavalo cinzento salpicado de manchinhas cor de carvão, mais bonito,
até então, nunca visto. Entre uma ilha e outra, no trecho mais
estreito, um igarapé, que bicho-gente transpunha por sobre uma
ponte de dois paus e bicho-bicho, no caso, cavalo cinzento salpicado
de manchinhas cor de carvão, arreios tirados, atravessou nadando.
Arreado o danado outra vez, e num toca que chega, em meio ao areial
e cajueiros sem conta, chegamos, por fim, quando a boca da noite
engolia os últimos suspiros do sol. Depois do asseio, atendendo ao
chamado de minha madrinha, fui jantar. Nesse ponto, tem sempre algum
gaiato que pergunta: - E madrinha: tem nome não? – não, não
tem. Madrinha é madrinha. Só! Bem, nem tanto: houve uma que
atendia por nome, nome de flor, mais que flor, Rosa, sem jardim, sem
igreja, só careceu duma fogueira e nós ao seu redor, repetindo três
vezes: - “São João disse, São Pedro confirmou, serás minha
madrinha (serás meu afilhado), porque São João disse... e São
Pedro confirmou”. Vez por outra, quando lembro dos que se foram,
inda me pego dizendo – “bença, madin’a Rosa”.
Reatando o fio do novelo, digo do jantar (entre pessoas que não
conhecia bem, com uma única exceção), em meio a tanta coisa que
eu gostava: tapioca, macaxeira, cuscuz (de milho e de arroz),
manteiga de nata, café, leite, queijo, requeijão... pra meu pesar,
madrinha, logo ela! me perguntou se queria suco de murici... Fosse
de manga, caju, bacuri, laranja, limão, cajazinha, ah, como eu
teria gostado! Mas de murici, que sempre detestei?! Inda não tinha
aprendido a dizer “não”. E me vi naquela enrascada: um copão
de alumínio, dos grandes, acima do meio de desgosto, bem à minha
frente. Encabulado, via um tantão de coisa boa: tapioca, macaxeira,
cuscuz (de milho e de arroz), manteiga de nata, café, leite,
queijo, requeijão, farinha de puba... Farinha de puba!
Envergonhado, sem saber o que fazer, disse que gostava mesmo era de
farinha de puba no suco. Coloquei uma colherada, mais outra, mexi,
mexi... E a farinha foi inchando, inchando... À proporção que
aquela gororoba inchava, qual maré enchente, que primeiro lambe a
parte mais baixa dos barrancos, retrocede um pouquinho, e avança
mais e mais, até preencher por completo o leito dos igarapés e rio
– as lágrimas dentro de mim se avolumavam. D’um olho, o
primeiro pingo no copão de alumínio. Mais outro. Outros mais. Maré
cheia. Minha madrinha e a parentada, aflitas, indagavam o porquê de
tanto choro. Só consegui falar - “Mamãe, mamãe, quero mamãe!”
Minha mãe não tive naquela noite não, porém, João me prometeu e
cumpriu: dia seguinte, o sol bocejando, seguimos de volta pro
aconchego de mamãe, na Ilha dos Mutuns. Faz tempo: anos!... mais de
quarenta.
Soares
Feitosa, mel de engenho com farinha, gosto demais! Sempre gostei de
mel, melado, no tacho, antes de dar o ponto da rapadura, com um pedaço
de cana, previamente raspado, molhar naquela mistura, e quando
conseguíamos pegar com nossas mãos de criança, puxa que puxa,
puxa-puxa, que delícia!
...
Bem, depois de ler “Joelhos & Mel”
uma cacetada de vezes, digo: gostei. Gosto de mel, melado, no
tacho... muito embora, depois de muito escarafunchar - puxa-puxei
mais dúvidas que certezas!... sabe como é... maré enchente... “Mamãe,
cadê você?”
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