Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria


 


Moacyr Félix canta versos de indignação


(in Jornal da Tarde, 03.04.1999 )


 



Em o poeta escolhe o caminho do desabafo e constrói um manifesto pela vida e pelo homem frente à corrente desumanização


“A memória do homem só é o homem quando esquecida no recanto mais obscuro do seu corpo e de sua alma”
 

Esta não é só uma constatação de um poeta que, aos 73 anos de vida, ainda se indaga e se vê perplexo diante dos destinos incertos de um mundo sem valor a cultuar. É, no fundo, uma palavra de dor de um poeta que apaga os olhos ao tal fenômeno da globalização que não respeita nada, ninguém. Pelo contrário, invade as pessoas e transforma o homem em nada.

O livro Introdução a Escombros, de Moacyr Félix, é um grito de indignação diante de realidades que não mudam. E aos 73 anos, essa visão do futuro do homem se torna mais amarga, porque não há como ser diferente. A cada minuto, o homem e a vida mergulham mais na escuridão. Os valores hoje são outros. Inútil pensar ainda em transformar as coisas. Elas chegaram ao seu limite e, agora, é só esperar a explosão.

Não é à toa que Moacyr Félix chama seu livro de diálogo-desabafo. É possível que o poeta não esteja falando sozinho. Tomara que seja assim. O poeta escolhe o seu caminho: a poesia deixa de ser poesia e passa a ser um manifesto pela vida e pelo homem, diante da desumanização do ser humano, “coisificado nos atuais andamentos de globalizações na História”. É isso: o homem é uma coisa. A poesia é uma coisa. A mulher é uma coisa. As plantas, os bichos, os destinos, a palavra – tudo se transformou numa coisa.

Os olhos do poeta estão voltados para a morte. Ele observa que cada vez mais aprende a ouvir o verde e cada vez mais aprende também a escutar tudo o que cada vez mais dolorosamente morre. E a estas alturas da vida, há lugar ainda para perguntar: “Ah, meu Deus, o que é a dialética?” Não há razão para responder. A indagação morre em si mesma. “Nestas avenidas ando como num dromo egípcio / ladeado de esfinges que me olham e que ninguém vê”, diz o poeta diante das violências contra a vida, tendo como arma de defesa apenas a palavra num tempo inútil.

Os poemas decorrem como um romance para que os escombros sejam bem explicados. Um romance com início, meio e fim. O poeta, inicialmente, reproduz algumas notícias que revelam os rumos do mundo e particularmente do Brasil, o grande país do futuro que não tem futuro nenhum, senão o descaso dos imperadores de plantão. São informações sobre miséria. E nisso o Brasil deve se orgulhar de estar sempre nas primeiras colocações, detentor de medalhas grudadas com alfinetes no peito por aqueles que decidem por nós, já que o país perdeu sua honra: “Mais devagar, meus senhores,/ isto é um processo histórico:/ vocês não inventaram coisa alguma!”, afirma o poeta que, no fundo, conhece bem o fim dessas histórias.

É aí que a poesia e o poema podem se transformar e deixar de ser poema e poesia: “Numa época/ em que a cultura não é mais/ nem monarcas nem tetrarcas/ nem mocinhos de gravata/ borboletas/ a enfiar Pound nas alparcatas/ do erudito espiroqueta/ existe sempre uma hora/ em que devemos dizer:/ Basta, meu velho, o rei está nu!” O rei está nu, mas acredita que não. Acredita que está bem vestido para esse banquete de muitos desatinos. O rei gosta de rir. E adora o poder.

O que vale em Moacyr Félix é essa veemência que se encontra em toda sua obra, como no recente Singular Plural, que reuniu parte de seus poemas da vida inteira. Trata-se da poesia da indignação, especialmente quando quase todos perderam o poder de se indignar. Diante de quadros assim, o poeta afirma que as balas que mataram Essenine e Maiakóvski estão nas suas têmporas, “motor e coração do meu silêncio e da minha fala, da minha alegria cinza, em meio a estes tragicizantes e adiados enterros do ser humano gerado pela civilização do lucro”.

Certamente os tecnocratas da emoção dirão que discursos assim não cabem mais. Os tecnocratas da vida sempre dizem alguma coisa. Especialmente os tecnocratas da poesia. Quanto ao poeta, ele ainda arrisca: “Se eu posso fazer a minha morte, por que não adubo a criação de um novo dia com a cinza desses códigos e dessas filosofias e dessas éticas que ainda não incendiei?”

Cabe a ele mesmo responder. No entanto, a resposta não é necessária. O que vale é a palavra, o grito de indignação, o grito mudo que percorre as bocas cortadas. Ao poeta não cabe resignação por nada. E deve ser assim mesmo. Como ele diz: “Vida, peça-me tudo, menos que eu envelheça como este jarro de flores no canto da sala.”



INTRODUÇÃO A ESCOMBROS, de Moacyr Félix. Bertrand Brasil, 208 págs.,

 

 

 

 

 

19/07/2005