Ademir Assunção
As tatuagens verbais de Cláudio
Daniel
Sua escrita incorpora uma certa
"brisa sutil" da poesia e das filosofias orientais, como o budismo e
o taoísmo, flerta com o simbolismo e o neobarroco, mas também revela
uma certa dose de tensão. É comum encontrar, entre imagens sutis, um
certo brutalismo, como nos versos "o fuji/ apunhala/ a névoa" ou "a
pele (pétala)/ brutalizada em grafite". É uma expressão de
desconforto com o mundo, tão avesso à poesia e tão propenso à
barbárie? Uma tentativa deliberada de equilibrar sutileza, sabedoria
e brutalidade?
Sim, já que a beleza e a crueldade fazem parte de nossa jornada no
mundo. Creio que essa tensão é colocada de modo mais evidente em
Yumê, minha segunda coletânea poética. Esse livro, que gosto de
imaginar como um catálogo de breves imagens, é organizado em séries
temáticas que falam da Água, da Noite, do Amor e do Oriente: o rio
de Heráclito se encontra com a borboleta de Chuang Tzu. Assim, por
exemplo, em Pequeno Sermão aos Peixes: “a/ água é luz, a água/ é
sêmen, prata, mercúrio/ espelho esférico de imagens trêmulas/ que
brotam, flutuam e cessam”. Tudo é sonho, na metafísica budista:
reflexo da lua no lago, larva que sai do casulo, coelho tirado da
cartola. Vivemos uma ópera ruidosa, cena circense ou mascarada
medieval, e por trás do pano está o espaço infinito, abolição de
nomes e formas, água de nenhum mar. Essa visão da realidade como
algo sujeito a mutações, temporário e insatisfatório, está presente
também no espírito barroco, que impregnou a cultura espanhola e, por
extensão, a latino-americana (embora a mescla de Góngora com
palmeiras, nudez de índias e tambores africanos tenha subtraído a
solenidade européia, trocada por uma dança sensual da Morte: é uma
festa, venha dançar com os esqueletos).
Há também em sua poesia a presença muito forte de imagens
estranhas e construções inesperadas. Em seu livro inédito Figuras
Metálicas, há textos como este: "Barítono de carapaça e gravata
quase lilás mergulha os olhos baços no copo de cerveja irlandesa
entre cotações do mercado financeiro. (Passa uma sombra magra de
seios fumantes.) Verde álcool, cogumelos e vozes graves de
semblantes que suicidam a noite estrelada". Isso vem de alguma
influência do surrealismo?
Acho interessante a proposta de romper, na escritura poética, com as
normas e limites de uma suposta "realidade" objetiva, incorporando
referências simbólicas e culturais, conteúdos e fatos de outras
"realidades", presentes em mitologias, filosofias, sonhos, poemas e
demais experiências. Como já fizeram, séculos antes de Breton,
pintores como Bosch e Brueghel ou escritores como Shakespeare, Dante
e Goethe (para não falar do Sousândrade do Inferno de Wall Street.)
Discordo, porém, de aspectos básicos da estética e do pensamento
surrealista, em especial no que diz respeito à escritura automática.
Minha poesia é planejada; calculo os efeitos, os recursos, a
linguagem, ainda que incorporando sugestões da intuição e do acaso.
Por outro lado, os surrealistas conservaram intactos o “verso”,
ainda que verso livre (unidade melódico-sintática do poema), a
gramática e a linearidade do discurso; todo meu esforço vai no
sentido oposto, ou seja, rumo à fragmentação da sintaxe e
desarticulação da lógica discursiva, através de outras formas de
associação entre as palavras. Claro que, em alguns textos, misturo
de maneira deliberada objetos banais (arame, garrafas, botas de
borracha) com imagens de jaguares e minaretes. Para quê? Para
provocar estranhamento e subverter a suposta "normalidade" do
cenário (e da escritura), numa espécie de ação de desmascarar o
cotidiano, mostrar seu absurdo, sua tênue fronteira com a "irrealidade".
São caricaturas, sátiras verbais, com todo o exagero sugerido pela
própria loucura do “real”. Com certeza, tenho outros pontos de
convergência e de divergência com o surrealismo, mas estes,
acredito, são os principais.
Sensualidade é outra marca visível em parte da sua escrita. Num
poema você compara o mar a uma "fêmea-possessa", depois a uma "leoa
furiosa" e, por fim, cria uma belíssima imagem em que a
"dança-escultura" das ondas ensina ao poeta a pulsação do poema e
seus "ciclos menstruais". Há algo de sensual no gesto de escrever?
Ou se trata de algo puramente racional?
A escritura é um ato prazeroso. Grafar, inscrever palavras no papel,
de certo modo, recorda o ato ancestral de gravar tatuagens ou
inserir adornos na pele, como notou Sarduy. Tocar o papel como se
fosse um outro corpo, violado pela escrita; usar a pele amante como
espaço para letras e números (com inevitável viés sádico) — esse
tema, na verdade, não é novo, faz parte talvez de alguma dimensão do
imaginário do poeta e foi abordado há alguns anos, com grande
beleza, no filme O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway. Há
também o aspecto obsessivo, compulsivo, que acompanha o ato criador
e a fruição erótica, motivo de diferentes leituras no campo da
psicanálise por Freud e Jung. Sobre o trabalho poético ser uma
atividade racional ou intuitiva, acredito que, no final das contas,
tudo é um jogo entre razão e sensação, logos e acaso. Não vejo
contradição entre o sentimento e o intelecto, pois nenhum trabalho
humano pode ser realizado sem a unificação de ambas as mentes, a que
pensa e a que sente.
Quando você entrou em contato com a poesia houve uma mudança em
sua vida?
Quando li as Flores do Mal, de Baudelaire, aos treze anos de
idade, na biblioteca de meu pai, onde me trancava para fumar
cachimbo escondido, descobri que as palavras não são apenas nomes
das coisas. Percebi que elas têm cor, som, sabor, aroma. Nesse
momento, tive a revelação de que a poesia é algo entre a pintura e a
música, uma biosfera com sua própria fauna e flora. A harpa estranha
das palavras, seu poder sutil, misterioso, de evocação, floresta
mântrica, me encantou, me encheu de um prazer quase sensual; embora
eu já soubesse, lendo os ensaios de Poe, que havia um logos oculto
na linguagem, que dava precisão ao impreciso e tornava concreto o
abstrato. Em meu poema Invenção do Riso Branco há vestígios
da fonte-nutriz, mãe generosa de peitos repletos, que é a estética
simbolista: “e/ essa trêmula mão/ alvíssima/ alvíssima/ (musselina)/
alvíssaras/ mas/ jorro insólito de pérolas/ antiga canção de
mandolina”. Com Baudelaire, tive a minha lição inicial de ritmo e
harmonia. Depois, passei a Mallarmé e ao poema espacial. Creio que
muito da geometria e da síntese verbal de meus poemas veio dessa
outra fonte, mãe austera de seios precisos, que é a Poesia Concreta.
Da mistura entre luxúria semântica e poética do faquirismo, vidência
de Rimbaud e jogos de poliedros nasceram os poemas de meu primeiro
livro, Sutra, que publiquei em 1992, aos 30 anos. Nessa
época, eu morava com Regina em um velho apartamento do Bexiga, e
trabalhava à noite como revisor no jornal Diário Popular.
Ouvia muito jazz, fumava como um louco e lia, fascinado, tudo o que
caísse em minhas mãos sobre o budismo. Fiz uma viagem ao mosteiro
zen Morro da Vargem, no Espírito Santo, lugar de rara beleza, em que
as nuvens, o relevo da serra e a mata atlântica formam um
cartão-postal do paraíso. Ali, tive algumas percepções que tentei
expressar em diversos poemas, como As Dádivas: “os dons/ da
água e do vento/ silêncio de tigres/ — o branco/ areais/ a areia sem
tempo/ — o branco/ primícias/ da sublime desmemória:/ vôo de
borboletas”. Eu já duvidava da arte como algo separado da vida e do
mundo. Soube que o fazer poético era uma forma de reflexão, mas
diferente da filosofia: “música do pensamento”, no dizer de Rilke. É
outra forma de razão, alegórica, que usa mito e símbolo, fábula e
paradoxo. Poesia é “artesanato furioso”, loucura da linguagem, mas
também ritual, epifania, vivência do Mistério. O que a poesia mudou
em mim? Mudou tudo. É uma espécie de religião, mescalina, obsessão
diária, que ocupa minha mente o tempo todo. Sem ela, eu seria mais
um advogado, motorista de táxi, dono de necrotério, escafandrista,
engenheiro ou vendedor de apólices de seguros.
O que você está buscando com sua poesia?
O que almejo é a partitura do bizarro: não as fáceis melodias
serafínicas, mas o choque da dissonância, uma arte de ruídos. Cada
poema funda sua própria sintaxe, mais analógica que gramatical, e
extrai das palavras o que necessita delas. Nenhum sentido é literal:
tudo são labirintos, jogos de armar, esfinges de anti-édipos. Não
creio em leitura definitiva, finalizada com um golpe de martelo. Em
poesia, o leitor é sempre surpreendido por outro aleph, outra
mutação do texto, que se reinventa a cada novo olhar. Em A Sombra
do Leopardo, meu terceiro livro, os poemas são construídos como
seqüências de breves metáforas, ou imagens sonoras. A ordem
simbólica, aliada à elipse e ao ritmo bárbaro, criam inusitadas
dinâmicas de leitura: “O/ verde,/ sua pele/ ácida. Tocar/ os poros/
do verde, florir/ metálico. Ouvir/ sua voz de asa/ e sombra./ Olhos,
faisões/ de cegueira./ Jóias de irada/ divindade./ Abelhas e
lagostas/ amam-se, odeiam-se,/ tulipas caem/ na goela/ do tempo”.
Neste livro, como em Yumê, as peças são agrupadas em séries:
os retratos e as secreções, os países e a história, o pavão, o fogo
e a morte compõem uma espécie de atlas ou enciclopédia de obsessões.
O reverso da alegoria, do drama simbólico, são os poemas finais do
livro, que abordam a tragédia da história, esse pesadelo do qual
James Joyce quis acordar. Mito, história e símbolo são formas
diferentes de se representar a experiência humana; e a poesia nasceu
como relato do amor e do medo, da morte e do além-céu. Nesse
sentido, a Teogonia de Hesíodo e os poemas homéricos são os
arquétipos de todo dizer poético.
Estamos vivendo numa época caracterizada por uma avalanche
vertiginosa de imagens e por uma gigantesca manipulação via
publicidade e meios de comunicação de massas. Até ideologias
políticas tornaram-se meros "produtos" na mão de marqueteiros.
Guerras são transmitidas ao vivo. A palavra, moeda de troca
cotidiana, tem seu sentido esvaziado cada vez mais. Como a poesia
pode reagir a esse ambiente? Ou ela tem que enfiar o rabo entre as
pernas e ficar resmungando pelos cantos?
Vivemos, sem dúvida, num tempo cruel, tempo de venenos e serpentes.
O que pode fazer o poeta nesse trágico labirinto de esfinges e
sibilas que recitam falsos enigmas e premonições do apocalipse? O
poeta, para mim, é um criador de realidades; pelas relações
inusitadas entre as palavras, ele articula novas formas de
pensamento e, logo, novos modelos de mundo. Esse é o potencial
subversivo da linguagem, é a sua ação política, digamos assim. O
artista questiona as formas viciadas de viver, sentir e pensar,
reflete criticamente sobre a lógica do poder estabelecido, e não se
pode cumprir esta missão através de formas estéticas convencionais.
É preciso criar sempre novos instrumentos de guerrilha cultural,
pois não é possível questionar estruturas sociais sem colocar em
xeque também o mecanismo do pensamento e a linguagem que são
produzidos por essas estruturas. Quando você utiliza formas de
escritura tradicionais, ainda que abordando temas “sociais”, não
estará fazendo nada além de reproduzir os modelos de idéias vigentes
na sociedade. Ao romper com esses padrões e propor outros modos de
comunicar idéias e sensações, o poeta não está conduzindo uma
insubordinação aparente, mas uma transformação profunda, que produz
novos conteúdos, numa rebelião contra o banal imediato e o
lugar-comum. Este é o papel da renovação estética: ser também uma
ruptura com padrões rotineiros de consciência. Claro, a poesia, por
si só, não irá transformar o mundo. Isto cabe à esfera da ação
política, e portanto à sociedade organizada em partidos políticos,
sindicatos, ONGs e outros agentes sociais.
Você se dedica também à prosa, com uma escrita bem distante do
realismo, que está em voga entre os prosadores atuais. Que tipo de
experiência você está buscando nesse terreno?
Escrevo um conjunto de prosas chamado Romanceiro de Dona Virgo,
composto de sete novelas breves. Uso a paródia, o pastiche, colagens
de timbres, dicções e recursos estilísticos, sobrepostos em camadas
de significados. Quis fazer uma escritura deliberadamente barroca,
sem qualquer pretensão de verossimilhança ou historicidade. Trata-se
de uma fusão carnavalizada de tempos, espaços e tropos, que
constróem uma realidade própria e autônoma, no campo fabulatório e
semântico; daí o artificialismo consciente da linguagem. Personagens
como Cruz e Sousa, Camões e Claudio Manuel da Costa misturam-se a
entes lendários ou fictícios, como Wang Wu, o Taoísta, ou Dom
Quixote de La Mancha, em tramas que ora recordam a novela policial,
ora a sátira picaresca ou o discurso metafísico. A síntese da
História "verídica" com elementos improváveis, fraudulentos e
inverossímeis sugere a hipótese de que toda “realidade” é no fundo
uma construção subjetiva; logo, tudo é literatura. Acredito que,
apesar de redigido em prosa, o Romanceiro de Dona Virgo é de
fato um longo poema narrativo. Com certeza, o realismo nunca me
interessou, como visão de mundo ou construção literária; é algo que
pertence ao século XIX, e que alcançou sua máxima realização com
Balzac e a Comédia Humana, embora tenha sobrevivido até a
década de 30 do século passado. Hoje, creio ser uma abordagem
deslocada, em termos estéticos e conceituais. Confesso que me
desagradam a representação figurativa, o discurso linear, o retrato
fotográfico de um suposto mundo objetivo, a construção de
personagens a partir da observação psicológica ou social rotineira,
enfim, tudo o que há de previsível na escritura. Prosadores que
sempre releio com prazer são Oswald de Andrade, Guimarães Rosa,
Clarice Lispector, Paulo Leminski e Wilson Bueno, criadores de
esmeraldas vivas. Dos autores jovens, há o escritor baiano João
Filho, que publicou seu primeiro trabalho na revista Coyote.
A tradução e a divulgação da poesia latino-americana têm sido
outras de suas atividades freqüentes. Como você compararia a poesia
produzida no México, na Argentina ou na Costa Rica com a produzida
no Brasil atual?
Acredito que a América Latina seja um leão de duas cabeças: duas
culturas, dois idiomas com o mesmo sangue, a mesma pulsação. Durante
muito tempo, ignoramos o que era feito na outra metade do
continente, assim como eles ignoravam o nosso trabalho. Felizmente,
esta situação começou a mudar, e hoje há um grande interesse, até
uma certa sedução de um pelo outro. Talvez pela influência da
cultura espanhola, da mística cristã de São João da Cruz e Teresa de
Ávila, o barroco está mais presente na lírica hispânica do que entre
nós, que recebemos influência mais forte da poesia (e cultura)
francesa e norte-americana (além da herança dos índios, negros e
portugueses). Hoje, o intercâmbio entre os dois idiomas começa a
produzir frutos, como a antologia de poetas brasileiros organizada
por Reynaldo Jiménez para a revista Tsé≈Tsé. De nossa parte, além da
histórica coletânea Caribe Transplatino, de Néstor Perlongher,
com traduções de Josely Vianna Baptista, convém citar os trabalhos
de Haroldo de Campos, Irlemar Chiampi, Horácio Costa e Jorge
Schwartz. Quanto a mim, publiquei traduções do cubano José Kozer (Madame
Chu & Outros Poemas), do uruguaio Eduardo Milán (Estação da
Fábula) e preparo Jardim de Camaleões — A Poesia
Neobarroca na América Latina, que será publicada neste ano pela
Iluminuras.
É comum ouvir poetas dizendo que poesia é para poucos. Por outro
lado, vemos uma enxurrada de poemas e poetas chatos pra chuchu, que
não conseguem despertar nem o interesse da gente, que é do métier,
quanto mais do público em geral. Poesia boa, necessariamente, tem
que ser para meia dúzia de gatos pingados? Ou há muita enganação no
ar, sustentada por lobbies da crítica universitária e do jornalismo
desinformante?
Acredito ser possível ampliar o número de leitores de poesia através
de uma reforma profunda no ensino de segundo grau, com ênfase na
formação em humanidades, que incentive os estudantes a conhecer
melhor a poesia contemporânea (inclusive aquela feita por autores
vivos). Além disso, creio que as secretarias municipais deveriam
adotar uma política cultural mais ambiciosa, privilegiando os cursos
livres em bibliotecas públicas, os recitais, conferências, debates
em escolas e outras ações. Por fim, uma conquista essencial seria
obter espaço para a poesia nas TVs educativas (uma vez que a rede
privada prefere exibir programas adequados ao vaso sanitário).
Agora, claro, existem poetas capazes de seduzir um público mais
amplo, como é o caso de Glauco Mattoso. E também um monte de autores
que não têm nada de interessante a dizer. Poetas chatos com
influência na universidade e na mídia não é coisa nova; isso vem
desde o tempo de Camões, no mínimo. Hoje, há esse coloquialismo
flácido, invertebrado e babaca que se limita a imitar (mal) Bandeira
e Drummond. Mas a valorização de tais autores, a meu ver, não
resistirá ao Tempo, que é, como diz Frederico Barbosa, o maior de
todos os críticos literários.
Virou chavão, para parte da crítica, repetir que a poesia
brasileira está em crise, que não possui força, que sofre angústia
da influência, que é mera repetição do passado. Você, que
recentemente organizou a antologia Na Virada do Século, junto com
Frederico Barbosa, o que acha desse tipo de pensamento?
Acredito que a poesia brasileira está mais viva do que nunca, embora
sua circulação seja restrita e o espaço na mídia cada vez mais
reduzido. Se não acreditasse na força e na vitalidade dos autores
mais jovens, não teria reunido, junto com Frederico Barbosa, 46
poetas do Pará ao Rio Grande do Sul em Na Virada do Século,
que aglutinou diferentes estilos, dicções e pesquisas de linguagem,
afinados com a idéia de invenção estética. Há autores trabalhando
com as mais variadas técnicas e recursos formais, sob o influxo do
Neobarroco, da Language Poetry, da etnopoesia e outras tendências
experimentais, e o resultado dessa miscelânea pode ser avaliado por
obras de alta consistência e seriedade como Polivox, de
Rodrigo Garcia Lopes, Corola, de Claudia Roquette-Pinto,
Jardim de Retratos, de Jussara Salazar, De Passagem, de
Ronald Polito, Trívio, de Ricardo Aleixo, e muitos outros
títulos e autores. Agora, sem dúvida, certos críticos preferem
fechar os olhos e dizer que não existe nada de novo sob o sol,
atitude que tem mais a ver com a política e a paranóia do que com a
poesia.
Agora, observando parte da produção poética atual,
coincidentemente a que tem mais prestígio entre a crítica e a
imprensa, é possível detectar uma linhagem de poemas muito parecidos
em sua dicção, de poetas diferentes. São poemas curtos, com linhas
curtas, levemente perturbados sintaticamente, de ritmo sincopado,
com cortes aparentemente abruptos que, muitas vezes, mascaram a
estrutura de uma única sentença simplesmente cortada em linhas. O
"procedimento" parece ser o mais importante e, após a leitura, fica
a impressão de que não se disse absolutamente nada. Será que não
existem outras maneiras de, como se tem repetido muito, "abalar as
normas constituídas do discurso"?
A construção poética baseada na justaposição de unidades mínimas é
uma tendência expressiva hoje, estimulada pela releitura de poetas
norte-americanos como Robert Creeley (antecedidos no tempo pelas
vanguardas da década de 20, e em especial Gertrude Stein, Louis
Zukofsky e Cummings). Porém, a meu ver, este não é o único caminho
para se abalar o discurso e a sintaxe. Há numerosas estratégias e
possibilidades de ruptura, incontáveis como as penas da cauda do
pavão. Um bom exemplo disso é a antologia Medusário,
organizada por José Kozer, Roberto Echavarren e Jacobo Sefamí, e
publicada no México pelo Fondo de Cultura Económica. Este livro
notável inclui autores como Coral Bracho, Marosa di Giorgio, Eduardo
Espina e diversos outros, pouco conhecidos no Brasil, que apontam
para veredas diversas e instigantes de criação literária. Para além
do Neobarroco, há poetas experimentais muito interessantes nas
gerações mais jovens, como é o caso de León Félix Batista, da
República Dominicana, que mescla poesia e prosa e desarticula a
sintaxe por meio de fortes imagens verbais fragmentárias. Isto para
ficarmos só no âmbito latino-americano. Enfim, cada poeta que
descubra o seu caminho pessoal, de acordo com a sua inteligência,
sensibilidade e capacidade de criação. Adotar este ou aquele
procedimento, por si só, não garante nada, e a fama é algo tão
efêmero como folhas ao vento. O que fica são as obras, não as poses.
O tema da relação entre vida e arte não está muito presente entre
muitos poetas atuais. Mesmo reconhecendo que o poema é algo
construído não podemos esquecer que ele é escrito por um(a) poeta.
Uma visão meramente estética, especialmente em tempos tão barra
pesada, faz sentido? Não se corre o risco de cair numa discussão
meramente técnica da poesia?
Os mortos não podem ler ou escrever poesia (embora alguns cadáveres
sejam críticos literários de prestígio). Logo, é impossível separar
arte e vida: apenas os vivos (e, dentre estes, os mais vivos)
são capazes da criação estética, do laborioso engenho com as
palavras. Do mesmo modo, razão e emoção andam sempre juntas, como a
luz e a sombra. A inteligência funciona de modo integrado com os
sentidos, formando uma unidade cognitiva. Não acho possível um poema
ser apenas racional, ou apenas sensorial: ele é vital, uma vez que
reflete a maneira como o poeta percebe e se relaciona com o mundo,
através da linguagem.
Entrevista publicada na edição nº 5 da revista
Coyote (outono/2003)
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