Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

Aníbal Beça


Brasa adormecida
 

Dizer que o Brasil é um país de poetas é mais que uma tautologia. Virou tema de poema na conta affonsina com seus 999.999.999 poetas, e objeto de ensaio, sobre a expressão amazonense, em que Marcio Souza afirma: “em Manaus, há um
poeta em cada esquina.”

Tomei ao acaso as citações dos dois escritores Affonso Romano de Sant’Anna e Marcio Souza, mais pela afinidade de pensamento ao sabor do comentário de ironia sardônica. Retórica comum aos dois. Sabe-se que trabalharam juntos na Biblioteca Nacional e até fundaram uma revista dedicada às coisas da poesia: “Poesia Sempre”. Hoje não se deve convidá-los para a mesma récita. Coisas do nosso paroquialismo cultural.

Na verdade, as diatribes da grei dos incensados, a roupa suja da lavanderia globeleza, dos que são irradiados pelo circuito Rio/Sampa, não interessa mais realce, e nem será nosso objeto aqui. Desafinamos do coro provinciano.

Causa estranheza, o fato de sermos um país de poetas e, ao mesmo tempo, um grande muro de lamentações, de Norte a Sul, com tanto chororô dos bardos brasileiros. Dos novos e dos calejados. Tem queixa para todos os lados e para todos os gostos. Uns dizem que foram expulsos dos suplementos literários, que perderam o espaço para medíocres escritores norte-americanos e franceses, em sua maioria. Apontam uma acachapada e vergonhosa postura colonizada. Invocam até a figura de Platão, que expulsou os poetas de sua República. As queixas também resvalam nas editoras, com sua política editorial sempre fechada à poesia. Alicerçada na famigerada desculpa de que poesia não vende.

Como não vende? Será mesmo verdade que poesia não vende? Ou estamos diante de uma falácia mercadológica? Pressupõe-se que todo poeta é um consumidor de poesia. Ora, se somos um país de poetas, o gênero nunca devera estar em crise. Mas a realidade espelha máscara nada atraente. A coisa é feia, mesmo. Creio que foi o poeta Donizete Galvão quem revelou a equação: “os novos poetas não querem ler poesia, querem escrever poesia.”

Uma frase aparentemente simplista, mas só aparentemente. Se a perscrutarmos ouviremos ressonâncias nada agradáveis. Quem sabe, uma recomendação semelhante àquela de Bandeira: .”...melhor é tocar um tango argentino....”

É verdade, os pulmões da poesia, no final do milênio, estão encardidos de tanta fumaça nefasta. Pelo que se vê e se escuta, sua morte é iminente. Será? Creio que não. Essa morte anunciada é bem antiga. E a poesia, contra tudo e contra todos, resiste. Mesmo enferma de tantos males: o afastamento da gramática poética, a frouxidão dos versos, a licensiosidade modernosa, o desaparecimento da palavra em troca a muletas visuais, os excessos ditos pós-modernos (viche!). Esses dogmas em nome de uma vanguarda que tanto mal fez a, pelo menos, duas gerações.

Salvados desse flama concreta, desse incêndio insidioso, resta-nos o rescaldo. As sobras são poucas, e apontam para uma postura mais consentânea, com muito trabalho e sem amadorismos. Afinal, se de fato fazemos parte dessa indústria cultural temos que enfrentá-la em pé de igualdade e com o mesmo liquidificador com que ela nos espreme para o suco da tribo.

Tenho apreciado belas manifestações, saídas a serem seguidas em todos os quadrantes do país. Caminhos para a popularização da poesia. E a palavra de ordem tem sido a diversificação. Nada de novo sob o sol. Mas um retorno saudável à poesia falada.

Sou daqueles que se ressentem do desaparecimento dessa prática. Cresci ouvindo e dizendo poesia. Tempo que pontificavam um Rogaciano Leite, um Ascenço Ferreira, um Farias de Carvalho, Carlos Pena Filho entre outros, Brasil afora. Que, poetas e atores, faziam fila nos cursos de Pedro Bloch, e se encantavam com Rodolfo Mayer, Sergio Cardoso, Paulo Autran, Madame Morinneau e outros. Vibrei quando Thiago de Mello regressou do exílio e foi logo fundando o jogral “Companheiros do Amanhã” e, hoje, com o seu jogral formado por crianças de sua Barreirinha.

Todos tínhamos, de cor e salteado, ao menos 5 poemas. Íamos de Castro Alves, Bilac, Jorge de Lima, passando por Bandeira com “Vou me embora pra pasárgada”, Augusto dos Anjos, Vinicius e Cecília.

Acompanhei a cruzada, na década de 70, do poeta catarinense Lindolf Bell. Vejo que seu esforço não foi em vão. Em todas as capitais há apresentações de poetas e atores lendo poesia. Elisa Lucinda, Geraldinho Carneiro no Rio; Cláudio Willer em S. Paulo movimentando as casas de cultura; em Pernambuco os armoriais aedos de Ariano Suassuna; no Ceará os fermentadores do pão Luciano e Virgílio Maia, mais Jorge Tufic e Adriano Espíndola. No Amazonas as seções de leitura da Editora Valer e no Centro Cultural Palácio Rio Negro com os poetas Dori Carvalho e Tenório Telles.

E na internet? Ah, amigos, isso é assunto para outro artigo. Os poetas tomaram de assalto o espaço sistêmico. São os cyber-poetas. E o comandante-mor, o poeta Soares Feitosa, com seu belo Jornal de poesia, abraçando mais de 2.000 poetas, brasileiros, portugueses, e de fala espanhola.

Por fim, destaco a atividade mais audaciosa. Os lançamentos de Cds de poetas dizendo sua poesia. E aí destaco, pela qualidade da poesia, e pelo tratamento fonográfico excelente, os trabalhos de João de Jesus Paes Loureiro, num canto emocionado à sua Belém, compartilhado com o compositor Salomão Habib; o poeta e jornalista José Nêumanne, revelando-se também como bom intérprete de seus cantares de Barcelona-Borborema, e Luiz Bacellar com “Quatros Movimentos” cantando a Manaus de ontem e de hoje.

A brasa pode estar até adormecida, mas aqueles que se dispuserem à soprá-la saberão que a chama da poesia jamais se apaga.
 

 

 

José Saramago, Nobel

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Jorge Tufic