Abilio Terra Junior
A mulher e o mar
Ela fugia. Fugia
de si mesma. Os seus cabelos esvoaçavam de encontro ao vento. Os
seus pés afundavam na areia úmida, a cada passo. Corria sem rumo.
Tropeçava e rolava entre as espumas e sentia o gosto salgado da
água, seus cabelos já ensopados, e a dor da pele que raspava na
areia crespa e grossa.
Em nada pensava,
ou melhor, seus pensamentos corriam com tal rapidez que não se
fixavam em nada. Tantas cenas desconexas, perdidas no tempo de uma
vida conturbada e veloz. A sua roupa colada ao corpo mostrava as
suas formas sensuais e belas, que se atiravam através das linhas do
seu vestido, aos olhares sedentos de quantos passavam por ela.
Deixou que a sua
urina se misturasse à água salobra, com seu forte aroma marinho.
Sentia um gozo indistinto e difuso, que arrepiava a pele do seu
corpo, desde o couro cabeludo até as suas exuberantes pernas
queimadas pelo sol. Cenas eróticas se mesclavam com outras em sua
mente.
Agora, buscava
apoio nas suas coxas firmes e se sentava na beira da praia, e sentia
prazer enquanto as pequenas ondas acariciavam o seu sexo, e o
penetravam com a maciez de um amante amadurecido.
As cenas
voltavam e se superpunham umas sobre as outras. A faca, dura e seca,
que penetrava na carne. Quantas vezes? Muitas, não se lembrava ao
certo. O grito, a surpresa. Depois o gemido, depois o som rouco do
respirar ofegante, que fraquejava, pouco a pouco, e, depois, o
silêncio.
E o sangue
escorrendo, embebendo o lençol, o colchão, pingando no assoalho, e
formando uma poça que crescia, crescia cada vez mais, até ocupar
quase todo o quarto. E a perplexidade, minutos ou horas com os olhos
fixos em um ponto vago no espaço longínquo. A boca seca, os músculos
tensos, a faca na mão, ensangüentada.
Depois, correu
ao banheiro, vomitou e evacuou tudo o que continham suas entranhas.
Começou, então, a tremer e a suar, descontroladamente. Via aquele
corpo, o seu amante. Via as cápsulas jogadas no tapete, o pequeno
saco de cocaína, vazio.
E lembrava-se,
então, de como estavam loucos, de como fizeram sexo durante muito
tempo, com muito prazer e muita dor. E de como, de novo, ele a
violentara, como um louco, e, de novo, a espancara, com violentos
socos no seu rosto e no seu corpo, e com chutes no seu ventre, nas
suas costas, na sua virilha. E, depois, dormira como um demônio
apaziguado.
E de como ela
ficara sentindo lancinantes dores por todo o seu corpo. E um
profundo cansaço na sua alma. Aquele cansaço, deprimente e
angustiante, de quem já não acredita em mais nada. Em uma vida que
perdera todo o sentido, um trabalho enfadonho e sem perspectiva.
Sozinha, com a sua filha e o seu filho, as suas crianças que tanto
sentiam a falta do pai, que lhes abandonara há três anos, e que
procuravam se contentar com o pouco que a sua mãe conseguia
realizar, com o seu minguado salário.
E, de como ela
se apegara aquele homem, como a sua única tábua de salvação... E, de
como, também, aquele amor foi perdendo o seu sentido, a cada golpe,
a cada esquecimento, a cada momento de desprezo e de frustração.
E, de como,
hoje, sem saber como, fora tomada por um ódio insuportável, como se
fosse explodir. E, de como cada célula do seu corpo gritou com
horror e revolta, e a sua mente vibrou como um sino tocado por um
martelo incandescente, surgido das profundezas do inferno.
E, de como seus
olhos se incendiaram, a sua face tremeu como se sacudida por uma
febre fatal. E, então, tudo desabou sobre ela de uma só vez . A sua
vida marcada por tanta humilhação, desonra, surras, abandono,
desprezo, mentiras, calúnia, abusos, rotina, amargor, dor. Quanta
dor! Sentiu, naquele tenebroso momento, que só havia um meio de
escapar daquela dor que lhe rasgava a alma em milhões de minúsculos
pedaços, e que a deixava inteiramente alucinada!
Com gestos
mecânicos, abriu, a custo, a bolsa surrada, e de lá do fundo trouxe
a faca retilínea, afiada e pontiaguda.
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