Astrid Cabral
Babel Contemporânea
Não foi por acaso que Nilto Maciel
intitulou Babel sua última coletânea de contos, aliás, nada é por
acaso no livro. A referência ao mito bíblico deve-se tanto à
variedade de linguagens narrativas adotadas pelo autor, quanto à
idéia de destruição implícita no cerne delas - seja a destruição
física, relativa à doença e à morte, seja a moral decorrente, da
perda de inocência ou de paz interior.
A coletânea em seu conjunto
revela-nos um autor perplexo face ao desafio de reelaborar um mundo
em decomposição, não o remoto e ignoto babilônico e sim o próximo e
familiar de nossa contemporaneidade. Muitas são as rupturas e
brechas da crise atual pelas quais Nilto Maciel incursiona a fim de
captar o universo em fragmentos que nos rodeia. Porém, ao manipular
a complexa matéria prima de fatos e seres, o autor sempre se mantém
com as rédeas nas mãos. Graças à notável consciência literária faz
de cada investida uma aventura lúcida, guiada pela sensibilidade e
pelo domínio verbal. Exemplo de sua capacidade de desempenho é o
conto “Uns seios”, onde procede à releitura da obra-prima machadiana
“Uns braços”. O novo título logo assinala a atualização do motivo
erótico, atualização que permeia toda a narrativa pela substituição
de hábitos e cenário (enquanto Inácio lê o folhetim da “Princesa
Magalona”, Pedrinho assiste à televisão, etc). Entretanto, o grande
trunfo de NM não está nas alterações circunstanciais, e sim na
linguagem. Mantendo a maior fidelidade ao relato original, ele
substitui o linguajar analítico e lento do século XIX, cheio de
considerações pontilhando o desenrolar da trama, por outro sucinto,
rápido e dinâmico, marca registrada do século XX. Digamos que o
conto machadiano, ambientado em 1870, é sabiamente passado a limpo
na ótica e no ritmo deste fim de século.
Ao longo de Babel, o leitor se
defronta com enorme variedade de motivos e temas, bem como de
tratamentos formais. Há contos que enveredam pelo viés de largo
espectro sociológico, apresentando irretocáveis cenários de
botequim, onde comparecem vários personagens atuando em pequenos
papéis, e a ação decorre pela interação da equipe (veja-se “As
pontas da estrela” e “Jingle bells”). Dentro dessa vertente
criativa, destaca-se o conto “Masmorrer”. Tem-se aí o desdobramento
de um painel de extrema crueldade e violência sobre presidiários a
morrerem numa masmorra, conforme anuncia o título codificado.
Lançado mão do grotesco como recurso expressionista, NM constrói uma
metáfora/denúncia do desumano sistema penitenciário vigente no país.
Os seres humanos que aí se amontoam acham-se mutilados, desprovidos
de integridade. São por isso mesmo designados por traços metonímicos
que os reduzem a estereótipos (Grandalhão, Ruivo, Cabeça Chata,
Baixote, Sarará, Golias). O conto retoma o tema trágico do famoso
romance medieval da Nau Catarineta - onde a situação limite da fome
extrema impõe o sacrifício de um indivíduo em prol da sobrevivência
coletiva. O relato se desenvolve em textos fragmentados mostrando
cenas de antropofagia e carnificina. A visão mórbida e alucinante
apreende o caos isomorfizando-o por meio de uma escrita obsessiva,
onomatopaica, delirante. Em alguns momentos a linguagem parece
carrear uma enxurrada inconsciente desatando-se em ímpeto de vômito.
Outras narrativas construtoras de
painel social são “O pio da cauã” e “Tony River”. A primeira
focaliza as relações entre índios e invasores. O anacronismo dos
fatos históricos aí relatados (datam de 1607) se anula em vista de o
confronto étnico permanecer o mesmo em muitas regiões brasileiras.
Já em “Tony River” NM se volta para a dessacralização do mundo
moderno (uma igreja vira “boite”) e a americanização dos costumes e
pessoas (Antônio Siqueira passa a Tony River e os banheiros
substituem cavalheiros e damas por “ladies and gentlemen”). Nesta
narrativa o final se incumbe de apontar a superficialidade da
transformação urbana pela emergência de um fantasma que traz à tona
o arcaico da sociedade rural brasileira.
Entretanto, na maioria dos contos, prevalece o enfoque mais de
“close up” que de “long shot”. São estórias que verticalizam
problemas, concentrando-se em poucos ou um só personagem. Entre
eles, os contos de fundo erótico, narrados em primeira pessoa (“O
primeiro homem” e “Prelúdio para a morte de César”), exploram com
sutileza a intimidade de duas adolescentes. “Avisserger Megatnoc”
(tradução gráfica de Contagem Regressiva) apresenta um homem maduro
que, valendo-se do anonimato garantido por máscara, vai em busca de
reconquistar a juventude durante o Carnaval. Porém, em vez disso, se
depara com uma revelação traumática na própria família. O
desmascaramento, deflagrador do “pathos”, remete ao inesquecível
conto “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio. Contudo, no
contista/cronista carioca a surpresa final tem ressaibos
naturalistas, e em Nilto Maciel o que ressalta é a mudança de
costumes, devidamente sublinhada no subtítulo ciceroniano: “O
tempora, o mores”.
Assumindo a narrativa do ponto de
vista dos personagens, NM consegue excelentes resultados. Veja-se a
inesquecível cena de “A noite das garrafadas”, filtrada pela
emocionada lembrança de um menino, e onde cada pormenor justifica-se
funcionalmente como indispensável à construção de um universo
pessoal. O mesmo ocorre com “Rotação”, enigmático retrato de uma
seita clandestina, obtido através da recordação, embrulhada em
brumas, de uma criança.
Dois contos se destacam na vertente introspectiva: “A perseguição” e
“O julgamento”. No primeiro, tem-se um elemento episódico mínimo e o
desenvolvimento de natureza emocional conduz a um desenlace ambíguo,
deixando ao leitor preencher as lacunas com suas hipóteses. É um
conto em aberto, como “As pontas da estrela” e “A vida eterna de
Luís Lamento”. Quanto a “O julgamento”, soma-se ao viés psicológico
o tom irônico. Pode-se aí detectar a vigência de duas vozes: a
lírica, no monótono que domina a primeira parte ( “E eu, que fiz eu,
que não me lembro?”) e a dramática, no diálogo da segunda parte
(“Que desespero é esse, Manuel? Acalma-te. Aquieta-te”.) A religião
surge no relato com a função distorcida de camuflar o sentimento de
culpa (Manuel com a mulher foram os únicos a aplaudir com entusiasmo
a Revolução), culpa covardemente rejeitada (“O que fizeste, durante
toda a vida, foi por culpa dos outros”).
Há ficcionistas que se comportam
como verdadeiros historiadores da vida privada. Que nem cientistas
sociais, observam a vida tal qual é, sempre atentos e fiéis a dados
óbvios, comprovados ou comprováveis. Outros se lançam pelos campos
da fantasia sem os freios do plausível, e têm por meta revelar a
face oculta da lua e do mundo através de parábolas. Nilto Maciel se
insere nas duas tendências, debruçando-se pelas sendas do verossímil
e do inverossímil. Se, nos contos até aqui comentados ou referidos,
prevaleceu o quadro realista, preso a contingências factuais, em
outros NM surpreende pela ousadia imaginativa. Tome-se “O mundo
estaliano”. Através do discurso de um tirano megalomaníaco
(Stalin?), o autor constrói a parábola do extermínio da liberdade,
projetando um caos futuro a partir de sintomas atuais. Em “Três
Botões”, a fantasia desata-se em aventura lúdico-cibernética, o
passado grego irrompendo na pós-modernidade. Já em “O inventário de
Quinca Manco”, dá-se a associação do realismo detalhista à situação
fantástica. De um lado, NM baixa sobre o mundo material um olhar de
extrema exatidão, ao alistar os bens do defunto, de outro o
personagem contracenante, Chico Maneta (um estropiado como o
protagonista) surge na abertura do conto anunciando a morte de
Quinca Manco, para em seguida ser dado como falecido há doze anos e
visitar o defunto na condição de fantasma. Ao criar “O verdadeiro
Mangarobeira”, o autor toma como ponto de partida para elaboração da
farsa dados históricos tradicionais e referências aparentemente
fidedignas. No entanto, o relato satírico avança, pautado em
afirmativas hilariantes pela pseudo-seriedade, e se encerra com
“Não, não riam, que a História não é para ser caçoada, é coisa muito
séria”. Vê-se como a História do Brasil, durante a ditadura militar,
ganha através da paródia o retrato de um líder paradigmático, muito
mais eloqüente que os papéis dos arquivos oficiais.
Aberto a múltiplas tendências, NM
ora reverencia a tradição literária consagrada, ora se lança na
experimentação lingüística e estrutural. A consciência da palavra -
ressalte-se a condição de poeta do autor - atravessa a coletânea
inteira. “Quem tiver ouvidos, ouça” gera-se em torno das mil e uma
associações do vocábulo “lobo”. O conto “O egoísmo de Newton
Appletree” propõe, juntamente com o perfil do escritor como ser
singular e solitário, seu auto-retrato disfarçado sob a
transformação do seu próprio nome, remetendo o leitor distraído ao
físico inglês que descobriu a lei da gravidade à sombra da macieira.
Esse ludismo no trato com as palavras desponta aqui e ali. Em “O
Primeiro Homem”, o cão é designado inocentemente pelo pai como
“Moleque”, e profeticamente pela mãe como “Moloque”, instaurando o
“foreshadowing” para o desenlace.
Quanto à experimentação
estrutural, o melhor exemplo está no conto Babel. Tem-se nele duas
estórias paralelas que afligem o narrador: uma que ocorre no plano
do presente e cuja progressão conduz à morte do filho recém-nascido;
outra que ressuscita uma recordação da infância e leva à morte de um
peru de estimação chamado Babel. O processo narrativo dá-se de modo
fragmentado e entrelaçado. O autor ora desenvolve um fio, ora outro,
numa operação em trança. Porém a incomunicabilidade e a aparente
desconexão sugeridas pela mística Babel são aqui anuladas, no
momento em que as duas estórias terminam por convergir no lugar
comum da morte. Permanece, porém, a sugestão de um duplo holocausto
mítico: o peru entregue aos pais para o banquete e o filho
arrebatado à revelia, expondo sua própria impotência face ao divino.
Para encerrar, insistimos em dizer que a grande variedade de
linguagens e de temas, que povoam Babel, reflete, não só a
inquietação de seu criador em busca de caminhos, mas também as
crateras do mundo contemporâneo, abalado por sismos e cataclismos de
toda ordem.
Leia a obra de Nilto Maciel
|