Alfredo Fressia
Uma viagem pela literatura
Rodrigo Petronio percorre 11 autores em
ensaios
de fácil leitura e inteligência aguçada
Transversal do
tempo
Rodrigo Petronio
Fundação de Cultura Cidade do Recife
190 págs.
Pedidos: (0xx81) 3224.3196
Em certo texto sobre
El Ensayo, o argentino Adolfo Bioy Casares constata que esse gênero
literário, em princípio e em tese nascido com Michel de Montaigne
"em março de 1571", possui tantos antecedentes na história literária
(e filosófica) que se justificaria a frase lapidar de Francis Bacon,
escrita poucos anos depois dos Essais de Montaigne: "A palavra é
nova, mas a coisa é velha". Como Bacon só falava em "meditações
dispersas", o argentino preferiu esta definição do que seja um
ensaio, de Edmond Gosse: "O ensaio é um escrito de moderada
extensão, geralmente em prosa, que de um modo subjetivo e fácil
trata de um assunto qualquer".
Definição bonita,
muito "escolástica". E incompleta. Tudo que ela diz é verdade, mas
não é toda a verdade. Sem dúvida, o gênero transcorre em escritos
"de extensão moderada". Também é um fato que os ensaios em verso não
fizeram "escola" (recordam-se as versificações inglesas do século
18, Essay on Man ou Essay on Criticism de Alexander Pope). Também é
verdade, e ali reside a grande originalidade de Montaigne, e que
marcou o gênero para sempre, que o ensaio discorre "de um modo
subjetivo": "Je suis moi-même la matière de mon livre" é a frase
chave dessa presença da subjetividade na organização livre das
idéias, ainda que elas se destinem, como em Bacon, a "provar" uma
tese. Um ensaio sói dizer tanto da matéria abordada como do homem
que a aborda, e o faz sem máscaras nem voltas. O ensaísta estrutura
seu discurso a partir da única palavra definitivamente mágica do
dicionário: Eu.
"Interdisciplinar",
livre, digressivo sem ser errático, o ensaio pede mais do que um
tema em prosa num espaço limitado e criado por uma subjetividade.
Pede persuasão. E a persuasão inclui em si mesma uma longa série de
estratégias de convencimento (de autoridade) onde comparecem, entre
outras, a sensibilidade de uma sábia captatio benevolentiae, a
erudição, a versatilidade das idéias, a elegância. No "ensaiar", no
tentar, "fortuna e jogo são essenciais ao ensaio" diz prudentemente
Theodor Adorno (em El ensayo como forma, contido em Notas de
Literatura, Madri, 1962). Isto é, ensaiar é "revisar" (sic), as
teses podem contradizer-se e qualquer rigidez ideológica ou
militante (próxima à idéia de "oratória" de Croce) resultará
estranha ao gênero.
A série de dez
ensaios de Tansversal do tempo de Rodrigo Petronio (São Paulo, 1975)
obedece alguns deles mais, outros menos a estas características
(que, diga-se de passagem, o leitor espera de antemão). Os temas
abordados são literalmente "vários e variados", e remetem todos a
onze autores extraídos de um cânone tradicional, a saber: Lucrécio,
Jorge Manrique, Montaigne (questão de honra para um ensaísta?), Luis
de Góngora, Giambattista Vico, Voltaire, Fernando Pessoa-Alberto
Caeiro, Proust e nosso Pedro Nava (aqui unidos pelo tema da
memória), Francis Ponge e Ezra Pound. O percurso de Petronio
respeita a ordem diacrônica, mas a unidade do conjunto, sendo de
ensaios, radica mais nas obsessões do autor que na mera sucessão
cronológica.
E por isso nada há
de inopinado nem de paradoxal na ponte que este livro estabelece com
os poemas do autor reunidos em História natural, de 1999 (únicos
editados até agora). A obsessão do tempo e da história, com esse
"duplo" que é a única garantia da reflexão ("espelho"), comparecia
então em versos como estes: "(...)O tempo/ traz de volta do futuro a
nova/ arena e o novo ciclo", ou "Que o mundo, como uma caixa/
duplicada em si mesma, contém/ outros possíveis, tangendo/ a
dissonante lira dos tempos/ sobrepostos(...)". Admitamos: são versos
belos, talvez de reminiscências borgeanas, e dá prazer (prazer da
ficção crítica?) constatar a unidade que estabelecem, a seu modo,
com os ensaios do autor de três anos depois.
No Prefácio de
Transversal do tempo, Dirceu Villa frisa a elegância e a erudição
como duas características centrais dos ensaios de Petronio. É uma
verdade, e ambas características fazem parte do tecido de
estratégias persuasivas do autor. Aliás, não são características
cuja presença surpreenda numa literatura como a brasileira, onde o
ensaio ocupa um espaço protagônico (ao ponto que a sua obra maior,
Os sertões, tenha surgido, e partilhe por isso a natureza de uma
variante do ensaio). Mas elas surpreendem, sim, num autor jovem e de
formação universitária. Porque é preciso admitir que a academia
brasileira nem sempre se preocupou com a "elegância" do idioma. Em
nome talvez de certa idéia (às vezes ficcional) do que sejam o rigor
e a precisão mas quem disse que um real "rigor" e uma real
"precisão" não constituem objetivas estratégias estéticas? ,
autorizam-se com freqüência discursos precários. E é também um fato
que a "elegância" no manejo da língua é uma aquisição que exige
tempo, anos. Por outro lado, a "idade" (como elemento retórico,
mencionado como argumento, e em tanto acúmulo da chamada
"experiência") resulta ser uma estratégia nada secundária entre as
técnicas persuasivas. Ora, Petronio é jovem. Dizem os humoristas que
a juventude é um mal remediável. Seja, e também a "idade", como
convicção retórica, é um "bem" persuasivo de que Petronio ainda não
dispõe (ao menos não suficientemente). E é isso o que justifica a
extrema erudição exibida pelo autor. Imensa. Se de fato ela não
"pesa" na leitura é porque o autor se cuida do abuso (remete por
exemplo as citações bibliográficas a uma discreta posição no fim do
livro, ou é sagaz em não exigir que o leitor esteja a par desse
universo bibliográfico, mormente o da literatura latina). Dar
"naturalidade" ao saber é uma virtude da pedagogia e um brilho raro
da inteligência. Petronio tem essa virtude.
O cânone literário
escolhido pelo autor a série dos onze autores estudados provém
de uma tradição (eurocêntrica, dirão alguns) que, em geral e em
princípio, coincide com o cânone estabelecido pela alta modernidade,
aquele estudado entre nós por Leyla Perrone-Moisés no (esplêndido)
livro Altas literaturas, de 1998. Na fruição e na liberdade do
ensaio, o autor fica isento das possíveis preferências dos leitores
(por que este autor e não aquele?). Por um lado, Petronio avisa que
discorrerá sobre autores que freqüentam sua "cabeceira": gustibus,
sabidamente, non est diputandum. Por outro lado, cada ensaio acaba
justificando o porquê da escolha: essa é a graça, claro. Ainda assim
o autor deve preparar-se para que lhe perguntem (aviso: o farei na
entrevista que segue) por que especialmente Lucrécio freqüenta a sua
"cabeceira" (e não Virgílio, por elementar exemplo). Ou, mais
delicado, por quê, com a exceção do brasileiro Pedro Nava, nenhum
latino-americano entrou na série estudada. Escritos e publicados
nesta periferia do ocidente (São Paulo, ano 2002), por que muitas
vezes os textos evitam um locus mais explícito?
É evidente que o
autor estabelece uma relação que excede os laços meramente
intelectuais com esses autores. Por assim dizer, ele ama essa
tradição, e não está disposto a que eles permaneçam como meros
"cacos" (sic) no vale-tudo da (até há pouco chamada)
pós-modernidade, aquela que em parte suscitou os "estudos
culturais", de estragos conhecidos, vastos, lamentáveis.
Mas a pergunta
permanece. Uma série de ensaios com as qualidades destes de
Transversal do tempo não devia ter incluído também temas e
autores deste continente? Qual era mesmo a originalidade de estarmos
longe dos centros hegemônicos? E as outras que porventura tenhamos?
É pergunta que se
faça, depois do prazer de se ler a Transversal? Justamente sim, e
será a primeira. Prometo.
Promessa é dívida
(e, no caso, dúvida): Por quê, com a mencionada exceção de Pedro
Nava, não há latino-americanos, incluídos os brasileiros, nos teus
ensaios de Transversal?
Esse é um fato que
me incomoda também, e a crítica é bastante pertinente. Creio que
essa lacuna continental se deva a motivos de várias ordens. O
primeiro é técnico. Para o propósito geral do livro, que se pretende
um livro de ensaios sobre autores que vão de Lucrécio, século 1, a
Pound, século 20, devemos convir que há muito mais a história do
velho mundo do que da América. Por outro lado, há motivos também
pessoais. Como você disse, eu amo essa tradição. E acredito que boa
parte do seu valor escapa a esse aspecto estritamente ideológico,
marcadamente eurocêntrico, que você notou. Essa questão é muito
delicada, e não sei se é possível desenvolvê-la aqui. Talvez eu
tenha até de maneira inconsciente feito a escolha com o objetivo de
criticar indiretamente algumas interpretações culturais,
sociológicas e desconstrutivistas que grassam em terras brasileiras,
e que eu considero em sua maioria bastante equivocadas e
retrógradas, em se tratando da nossa realidade. T. S. Eliot disse
certa vez que Dante elevou a poesia a um ponto onde ela nunca tinha
chegado e ao qual provavelmente nunca mais retornará. Acho difícil
ver nessa asserção uma simples boutade ou o cabotinismo de um poeta
católico. Tampouco ela é a estratégia de um caipira oportunista do
Mississipi que aspirava ser integrado ao grande patrimônio artístico
europeu. Só quem não conhece literatura, finge conhecer ou está
interessada em usá-la como ornamento de sua vaidade e como pretexto
de seus pressupostos teóricos discutíveis é capaz de reduzir a
questão a esses termos. Para quem se preocupa com a arte poética, é
impossível terminar o último canto do Paraíso sem perceber que algo
de muito sério está acontecendo ali. Temos que ter humildade para
reconhecer que nossas premissas ideológicas, sejam elas inspiradas
teoria que for, não suportam o peso esmagador daquela poesia. Além
do quê, até mesmo os críticos dessa tradição canônica européia (a
própria Leyla Perrone-Moisés, por exemplo) estão hoje em dia revendo
muitas das coisas que diziam décadas atrás. Um outro motivo é o
seguinte: por mais que o conceito de Ocidente seja uma abstração sem
muito valor empírico, há alguns aspectos quase intransponíveis. Um
deles é a língua. Tenho muito interesse pela literatura e a arte da
Índia. Também sou obcecado pela música, o teatro, a tapeçaria e as
artes plásticas de algumas regiões do Sudeste Asiático. Imagino que
alguns dos melhores artífices do planeta estejam lá. No entanto,
como eu posso sequer falar desse tipo de arte? Pressupõe um mínimo
de conhecimento antropológico e lingüístico sem o qual tudo o que
dissermos é um devaneio. Ao passo que um poema de Manrique é
praticamente cristalino aos ouvidos de qualquer leitor de poesia dos
dias de hoje. Enfim, eu não quero ser e não sou porta-voz de nenhum
cânone. Acredito que todos os valores são construções históricas,
localizadas e em transformação. Só acho que ainda se repete à
exaustão um relativismo que caracterizou o século 20, sem perceber
que boa parte desse conjunto de idéias está com a data de validade
vencida. É urgente pensar a situação atual em outra chave, que ainda
não sei qual é, mas imagino que não seja a mesma que pretendeu
suplantar alguns valores estruturais óbvios da poesia em troca da
supressão temporária do nosso complexo de inferioridade. Isso só
serve para esconder a lama dos nossos sapatos, não ajuda em nada, é
um entorpecente que inebria com uma grandeza artificiosa. Seremos
anões em cima de pernas-de-pau. À revelia de tudo isso, planejo
reunir alguns textos sobre poetas brasileiros que admiro em um
volume reservado especialmente a isso. Quanto aos
hispano-americanos, são tantos e tão bons, que precisariam de um
espaço especial. Devem entrar em um novo livro de crítica que estou
confabulando, cujo título provisório é As artes do conceito. Esse é
o motivo casual e último dessa malfadada ausência. Agora, um adendo:
esse negócio de dizer que sou erudito é balela sua. Erudição é uma
coisa muito séria, tributo de pessoas muito sábias e eminentes. Eu
sou apenas um poeta que fala de literatura, um leitor entusiasta de
Octavio Paz e Lezama Lima. Você é que está tentando captar a
benevolência do leitor para a minha causa.
Conversamos
alguma vez sobre a sua paixão e a minha por Lucrécio, que acabou
entrando nas nossas obras poéticas aliás, sem que então
soubéssemos um do outro. Você dá as devidas explicações no seu
ensaio, mas adiante-nos: o que é que o Lucrécio tem?
Lucrécio é um autor
magnífico. Eu sou fascinado por relatos cosmogônicos, e o De Rerum
Natura é um dos melhores do gênero. O que mais me interessa nele é
uma visão imanente e material do universo, dos nossos afetos e
faculdades, frutos do que ele chama de simulacros. Há momentos de
muita beleza, quando ele trata do infinito, por exemplo. Ele concebe
um tipo de infinito discreto, não extensivo. É como se o universo
fosse finito no número de seus elementos, mas infinito na potência
de subdivisão de cada um deles, o que se liga à sua concepção de
átomo. É uma definição da matéria semelhante à que Zenão de Eléia
propôs para o tempo, na famosa — e engraçada — fábula de Aquiles e
da tartaruga.
Por que se lê
Góngora em 2003? E por quê, além do ensaio sobre ele na sua
Transversal, você está dedicando uma tese universitária a ele?
Lezama Lima disse em
algum lugar que a claridade é um valor burguês. Enquanto vivermos em
uma sociedade plutocrática e funcional, preocupada com a
exterioridade das coisas, que está o tempo todo exigindo utilidade
dos objetos culturais e sempre querendo transformar todas as obras
do espírito em instrumentos de propagação do que quer que seja, a
obscuridade de Góngora terá sua atualidade assegurada — pela
negativa. Ele é um ótimo antídoto contra as coisas que mais execro:
o populismo e a publicidade. Uma bela aventura nos meandros e
subterrâneos do Sentido e um elogio do puro Intransitivo. Acredito
que Góngora inaugura uma das correntes da alta modernidade, e a
partir dele podemos pensá-la em uma perspectiva secular. Isso nos
poupa do erro de transformar o moderno em modernismo e este, em
modismo, como sói acontecer em um país que tem uma inclinação
natural para a superficialidade. É também um autor com pouquíssimos
estudos em língua portuguesa. Espero contribuir um pouco para a sua
compreensão.
Comente para nós
a definição que Ortega y Gasset dava do ensaio: "Estas Meditaciones,
exentas de erudición (...) no son filosofía, que es ciencia. Son
simplemente unos ensayos. Y el ensayo es la ciencia, menos la prueba
explícita".
Se não me engano o
próprio Ortega y Gasset diz: um livro de ciência é antes de tudo um
livro. O excesso de protocolos teóricos que se desenvolveu no meio
intelectual de tempos para cá deu ao debate um caráter um tanto
forense. Eu acho isso ruim. Há uma ansiedade grande em demonstrar a
propriedade dos conceitos e em legitimar uma opinião com a opinião
de outros autores, o que, diga-se de passagem, é uma tautologia. No
fundo, se pensarmos friamente, esses são resquícios de uma visão
autoritativa do saber, cujo valor de verdade está ligado à
autoridade de quem o produz, de onde se produz e daquilo que lhe dá
fundamento. Isso é complicado. Sei que o trabalho da erudição não
pode se dar ao luxo de prescindir das provas, mas também não pode
fazer delas a sua razão de ser. Tenho minhas dúvidas se o mais exato
é necessariamente o mais justo. Mesmo a idéia de ciências humanas é
muito discutível. Dizer que o estudo da literatura é uma ciência é
um bom subterfúgio para se livrar dela sem remorso. O ensaio deve
ser mesmo uma ciência sem provas. O que me interessa nele é que há
um predomínio da narração sobre a demonstração, não é necessário
recorrer o tempo todo àquilo que os antigos chamam de exempla,
exemplos, para ilustrar e defender a sua argumentação. Isso lhe dá
uma grande elasticidade, e talvez por isso ele seja um gênero que
possibilite tanta liberdade. No ensaio é a consciência do ensaísta
que protagoniza a cena e o enredo tecido pelos fatos, idéias, obras
e autores. Está preocupado em levantar hipóteses e conjecturas,
tecer relações entre as coisas, estabelecer genealogias e vincular o
poema a uma tradição poética. Não pretende defender uma tese. Isso
faz dele um espaço sui generis do pensamento. Os erros são muitos,
incontáveis. Às vezes beiram a inconseqüência. Mas temos que correr
o risco. E esperar para ver se algum de seus lampejos, por força do
hábito, ganha a dignidade daquela outra ciência, oculta, que é a
base de toda a educação do gosto e tem como única finalidade a
aquisição da nossa própria consciência em movimento.
ALFREDO FRESSIA nasceu em Montevidéu, em 1948.
Reside em São Paulo desde 1976. É poeta, em língua espanhola, e
crítico, colaborador das revistas virtuais Agulha e Banda hispânica,
correspondente cultural do jornal El País de Montevidéu.
Leia Rodrigo Petrônio
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