O realismo literário nasceu à luz de um escândalo. Após os
seis anos em que passou escrevendo Madame Bovary, Gustave
Flaubert foi levado aos tribunais por ter conspurcado a
moral pública e os bons costumes franceses do final do
século XIX com uma personagem cheia de volúpia e ódio. Muito
antes, no século XVI, Pietro Aretino causava furor com seus
Sonetos Luxuriosos e tinha de se mudar, fugido, de Roma para
Veneza. Nosso Gregório de Mattos também barbarizava numa
Bahia provinciana no século seguinte e recebia a alcunha de
"Boca do Inferno". Mas esses fatos que parecem ter sido
guardados num baú de antiguidades literárias não estão tão
no passado quanto se imagina. O caso do poeta e professor
Oswaldo Martins, que ganhou repercussão na imprensa nacional
esta semana, faz pensar que a história não esquece tão fácil
assim de seus moralismos e hipocrisias.
Oswaldo foi demitido da Escola Parque, no Rio de Janeiro, há
um mês, por ter sido descoberto como escritor de poesias
eróticas. Oswaldo tem quatro livros publicados. "Minha
literatura nunca foi segredo para a escola. Eu sempre enviei
para eles a atualização do meu blog e mesmo meus livros",
afirma o professor que mantém no endereço um pouco de sua
produção literária. Depois do ocorrido, uma enxurrada de
comentários lotou uma das postagens com mensagens de apoio.
Professores de outras instituições, alunos e amigos
mostravam-se solidários a ele e contrários ao que havia
acontecido. Toda essa história poderia passar como um caso
primário de confusão entre o eu-lírico do poeta e o autor,
que é também um educador. Mas é mais do que isso.
"Acredito que é há uma compreensão frágil até do que é a
própria literatura, há uma distorção implicada aí, porque o
espectro de leitura do brasileiro ainda é muito estreito",
diz. Pesquisas recentes do Instituto Pró-livro, com coleta
de informações coordenadas pelo Ibope, revelam que a média
anual de livros lidos no país passou de 1,8 ao ano para 3,7.
O mercado registrou também no ano passado um crescimento
nominal de 4,62% nas vendas de livros, o que significa 329
milhões de exemplares vendidos e a impressionante cifra de
R$ 3,013 bilhões. Analistas acreditam que grande parte se
deve a uma série de ações voltadas para a difusão do livro e
promoção da leitura.
"Embora o Brasil esteja lendo mais, ainda há uma leitura
superficial que se faz do mundo e da escrita; mostra uma
visão persistente muito romântica e parnasiana da
literatura, algo que tem de se adequar a moldes. É, na
verdade, uma completa falta de capacidade de entender que
existe mais do que erotismo ali. Esse erotismo está a
serviço de outra questão, está combatendo os processos de
morte, reafirmando a vida", pontua o professor. Junto a ele,
outras vozes engrossam o coro dos que apostam numa proposta
erótica para expressar-se literariamente.
Erotismo
O escritor Glauco Mattoso, autor de mais de 3 mil sonetos, é
mestre em abordar em seus escritos tudo o que há de
escatológico, grotesco e violento na sociedade, escancarando
muito de suas disposições próprias sadomasoquistas e outras
taras sexuais. Para Glauco, o higiênico - com tudo o que
envolve, os odores corporais, a micção e a defecação - ainda
é tabu na sociedade. O aparelho genital, relacionado a esses
processos de higiene, está também ligado ao sexo, o que
invariavelmente acaba fazendo a atividade sexual ser
encarada como algo sujo, pecaminoso. "Isso faz parte da
cultura humana. Na sociedade tecnológica, a gente apenas
tenta disfarçar esses tabus", afirma. E completa: "O que eu
faço na minha literatura é uma denúncia da violência, mas
estabeleço um caráter muito ambíguo, existe uma dubiedade
forte, porque a literatura permite isso e termino por mexer
com as pessoas".
Ao invadir a seara dos tabus, medos e preconceitos humanos,
a própria literatura se questiona sobre seus limites -
fortemente marcados pela subjetividade. Em entrevista por
e-mail, a autora de Diana Caçadora, Márcia Denser, aponta
delimitações que tentam clarear um pouco mais essa linha
tênue entre o erótico e o pornográfico. "O pornográfico tem
como objetivo manipular e excitar o leitor propositalmente,
o erótico não. O pornográfico não tem qualidade estética, o
erótico é seu oposto, assim é que: o erótico areja, o
pornográfico aumenta a sujeira. E o leitor sensível intui
isso, ainda que não saiba explicar racionalmente", afirma.
Palavra
O bíblico Cântico dos Cânticos, do Antigo Testamento, com
sua forte carga erótica, já evidenciava que o tema tem
estado presente nas criações humanas há muito tempo. "O
social puro não funciona na literatura. É preciso ir para o
psicológico e aí entra também o erótico", analisa o cearense
Nilto Maciel, autor de contos e novelas eróticas no final
dos anos 1970. A lista de autores e livros eróticos,
satíricos é imensa e encontra representantes em todas as
escolas literárias. Mesmo a Inquisição, com sua repressão
vigorosa, não conseguiu podar a subversão da palavra
escrita.
Oswaldo lança seus livros pela 7Letras, uma editora de médio
porte que nos últimos anos vem se especializando na
publicação de poesia. Já são 231 títulos no catálogo. Uma
diversidade representativa que não poderia deixar de
contemplar o tipo de literatura de Oswaldo. "Nunca
poderíamos ter a menor idéia de que uma coisa tão absurda
fosse acontecer com ele. Até porque a poesia que ele faz não
é pornográfica, fescenina como outras que temos", diz o
editor Jorge Viveiros de Castro. "É uma reação completamente
descabida porque as pessoas não conseguem enxergar que
existe arte dentro dessa vertente. Pena é um trabalho como o
dele só ter tido grande repercussão depois disso", conclui.
O professor e poeta Oswaldo Martins não parou de ensinar em
outras escolas depois do caso. "A discussão aqui é sobre
pessoas que não souberam ler. Precisamos nos perguntar se
vamos sobreviver à mediocridade, porque afinal o que
queremos é um País melhor, com mais leitura, com mais
compreensão da vida", diz. E a batalha por sua proposta
artística continua - mergulhando no erotismo, sim, mas
também na música e nas artes plásticas. É uma dedicação que
dura em média quatro anos para considerar um livro pronto.
"A palavra tem a capacidade não só de incomodar como de
mudar sua cabeça, sua visão de mundo, a palavra é
transformadora, alquímica, catalisadora", afirma Márcia
Denser.
QUEM É OSWALDO MARTINS
Oswaldo Martins nasceu em Barbacena, MG, em 1960. Formou-se
em Letras na PUC-Rio. Mestre em Literatura Brasileira pela
UERJ, faz doutorado sobre a poesia erótica de Aretino. É
professor de 2º e 3º graus. Publicou os livros desestudos
(2000), minimalhas do alheio (2002), lucidez do oco (2004) e
cosmologia do impreciso (2008), todos pela Editora 7Letras.