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Nelly Novaes Coelho

 

A Poesia Como Experiência Fundadora do Real
 

 

Discretamente atraente aos olhos e convidativos às mãos (pelo pequeno formato do volume e maciez da capa ao contato), "Com as Flores do Salgueiro" surgiu no apagar das luzes de 1995, em meio a um quase silêncio da crítica. O que é normal em se tratando das relações da poesia (ou da cultura em geral) com os multímídia que, em nossos dias, tem o poder de consagrar ou destruir "valores" da noite para o dia. Poder, por vezes diluidor, que ofusca e não deixa ver o que fica na sombra, mas que afinal não impede por muito tempo, aos leitores ou observadores atentos, de descobrirem, para além dos "holofotes" , os valores onde quer que eles surjam. As mais das vezes, essa descoberta demora, mas com o tempo chega...

A poesia de Albano Martins é das que, entre nós vem sendo lentamente descoberta, como autênticas vozes do nosso tempo: vozes da linhagem dos que "fazem do texto o objeto-do-desejo" (Italo Calvino) ou entendem a poesia, não apenas como "invenção lúdica", "exercício de linguagem" ou mero fantasiar em jogos verbais, mas como manifestação da otredad (Octavio Paz), como invenção da palavra, fundadora do Real, ou como "interrogação do real" (na definição de Antônio Ramos Rosa, um dos mestres da poesia portuguesa atual).

Lidos nessa perspectiva, os "haikais" de "Com as Flores do Salgueiro" se nos revelam como verdadeira decantação da arte poética do autor: poemas-sínteses, não só do rigor formal que desde sempre a singularizou, mas principalmente da problemática latente ou patente em sua criação desde as primeiras horas: a consciência do Poeta como voz mediadora entre os homens e os valores autênticos da vida (daí a ânsia de re-ligação eu-natureza que a Palavra luta para nomear) e o erotismo, vivido como força primordial que se confunde com a força original da terra-mãe.

Nesse sentido, é de se notar que a ansiada re-ligação homem-natureza que singulariza a poesia contemporânea, não se confunde com a lírica volta ao mundo natural (ansiada pelos românticos). Ela não visa propriamente um encontro, mas antes, a paixão de uma busca, — a da palavra da Poesia no encalço de um novo Real, através da reimersão do eu no todo, no mundo primordial — das sensações, percepções emoções e experiências inaugurais, que o avanço dos "tempos civilizados" deformou ou destruiu e que a Poesia deve resgatar, em meio ao caos.

Talvez possamos dizer que essa "visão unitiva" (Kazantzákis), esse impulso de re-ligação / re-integração, de busca e de urgência de nomeação do oculto, é dos fenômenos mais evidentes e atuantes nas raízes da literatura e da Arte contemporâneas. Ou ainda, que é um dos mais significativos paradigmas emergentes do pensamento-século XX. Neste nosso mundo fragmentado (em que os homens estão à deriva), talvez a busca mais imperiosa para e eu (para o nós) seja a de uma experiência fundadora como essa (limítrofe à experiência religiosa ou à erótica), capaz de nos re-ligar a todas as coisas, ao universo todo e assim redescobrirmos o sentido último da vida (há muito perdido!).

A essa nova-arcaica tarefa do poeta, é que se referem as epígrafes com que abrimos esta nossa leitura da poesia de Albano Martins, e que escolhemos como "fio de Ariadne" para não nos perdermos nos labirínticos caminhos de seu universo poético. "Percibo el mundo y te toco / sustancia intocable..." "Somos ainda o limiar — espessa / nuvem embrionária".

Como disse Eduardo Lourenço: "São os poetas que criam o lugar onde devemos encontrá-los." (in Vocação do Silêncio). Mas como a descoberta desse "lugar" depende do olhar-do-leitor, bem sabemos que raramente os "encontros" coincidem. Enfim, dentre os muitos "lugares" propostos pela multívoca poesia de Albano Martins, escolhemos o dessa "re-ligação" eu-mundo, através da experiência poética, — jogo tenso entre o real concreto vivido e a Linguagem; experiência dinamizada, como dissemos, por forças eróticas e telúricas, que se fundem numa aventura existencial que envolve o eu-outro; ou melhor, que envolve a totalidade do indivíduo num contínuo corpo-a-corpo com a vida e com palavra nomeadora.


SECURA VERDE: a experiência inicial
 

O impulso de re-ligação no sentido de vivenciar por dentro o mundo exterior, manifestado por Albano Martins já em seu livro inicial, publicado em meados do século, "Secura Verde" (l950).
 

"Não queiram descobrir por que razão me agarro tanto às coisas

aparentes [...] Trago a seiva dos troncos no meu corpo e, como

eles, estou preso ao chão. [...] Sigo a evolução natural das coisas

[...] Cumpro meu destino como qualquer fonte e os meus passos

são os de qualquer bicho. Estou preso ao teu sangue por lei

natural, não por capricho." (grifos nossos)
 

A auto-identificação eu-natureza, explícita nesse "Poema vegetal", ainda se dá mais ao nível da razão ou da vontade decisória, do que por impulso existencial. Pelo confronto entre o tom imperativo-afírmativo dessa poesia primeira ("Não queiram", "me agarro", "Trago", etc.) e a "serenidade zen", que (como veremos adiante) impregna a comunhão poeta-mundo, nos "Haikais" de seu último livro, podemos avaliar o percurso vencido pelo poeta nestes quarenta e cinco anos de corpo-a-corpo com a Poesia e com o mundo a ser nomeado, no encalço da fusão almejada (homem-natureza, eu-outro, experiência-linguagem... ). No quase meio século que medeia entre os dois livros, muita coisa mudou no mundo. Se não ao nível dos acontecimentos (que continuam a aprofundar o caos e a destruição), pelo menos ao nível do pensamento interrogante (que é o que dinamiza a poesia).

"Secura Verde" foi escrito e publicado no limiar da década de 50, em pleno caos-pós-guerra ou pós-tudo. Albano Martins era um dos jovens que, em Portugal (e no mundo todo) surgiam para a poesia, conscientes de que a palavra herdada se esgotara, que o mundo construído pela tradição naufragara e que deles, poetas, dependia que um novo mundo fosse vislumbrado e nomeado pelo poder da palavra. Mas onde os caminhos?
 

"Trago os olhos inundados de poeira. [...] Desenham-se contornos

imprecisos nos auges limitados do meu ser. ou ainda Abarco todo

o horizonte. Dentro de mim só há água, água estagnada"

.........................................
 

"Água", símbolo maior da vida, está estagnada. Tudo nessa poesia é estagnação. O momento não era de descoberta, nem de construção. Era o da espera, da expectativa, do espanto e também de uma obscura certeza de vida potente, mas ainda latente. A poesia da modernidade vivia "entre dois silêncios": o do mundo antigo destruído e o do novo ainda inarticulado. É nesse espaço intervalar que os novos poetas, nos anos 50, iniciam seu corpo-a-corpo com a poesia, agudamente conscientes das limitações que o próprio momento lhes impunha.

Já no título desse livro de estréia, Albano Martins sintetiza a natureza contraditória de sua poesia: a consciência do silêncio ou da aridez a que estava condenada a palavra poética e, ao mesmo tempo, o sentir da seiva estuante em suas veias de poeta, mas ainda incapaz de fazer "florir o deserto" (Eduardo Lourenço).
 

"É verde esta secura, como é verde a raiz duma planta que secou.

............................... Construo e destruo. Que importa, se eu sei

que destruí uma coisa morta?" ...................
 

Tempo intervalar em que a renovação se denuncia pela única via disponível: a destruição. Ou ainda, rompendo o silêncio, se anuncia pelo "grito" (a fala ainda inarticulada):
 

................ "no frio som transmitido um grito de águas paradas.

.......................... E um grito feito de sangue toldou a manhã

inteira. ........................ Meus versos, gritos do vento nas ramagens

são a minha própria alma angustiada a refletir imagens duma

lenda, em mim iniciada."
 

Embora buscando romper os limites do eu (para se integrar no todo a que pressente pertencer), o poeta permanece prisioneiro de si mesmo.
 

"Dentro de mim só há sombra. O que possa acontecer vai

rasgando espaços brancos nas fronteiras do meu ser."
 

O impulso para ultrapassar essas "fronteiras" é uma das constantes da poesia de Albano Martins e uma das lutas do poeta contemporâneo, para fugir à prisão do eu moldado pelas convenções e poder fazer-se voz do ainda desconhecido. Luta que parece ter sido a dos poetas de todos os tempos. Cada qual a seu modo e em resposta ao seu tempo, lutou (e luta) para re-nomear o mundo recebido como herança. A Poesia é impelida a ser um continuum como a própria Vida. Como numa corrida de revezamento, cada geração de poetas passa à outra o bastão da "busca" ou dessa consciência de que a forma mais alta de viver integrado em seu tempo e a de ser poeta. É ver além do que todos vêem; é existir no outro e através do outro; é ter a tarefa de re-nomear o mundo.

Não foi outra a consciência expressa por Fernando Pessoa (o eu que se multiplicou em tantos outros), quando no início do século (diante de um mundo que já começara a desmoronar e sentindo em si próprio a força de um Recomeço) disse em "Hora Absurda" (l9l3): "Chove ouro baço, mas não no lá fora. É em mim, sou a Hora."

Verso oracular (e profético) que, pelo avesso, repercute na voz de Albano Martins, quando (diante do desmoronamento definitivo do mundo antigo e num momento de inegável paralisia criadora) disse:
 

"Chove lá fora Há um silêncio enevoado e triste a saber a demora

sobre tudo que existe. ou ainda Sou um mundo fechado ainda por

abrir [...] Sou um navio preso à sua própria amurada."
 

dd>A "abertura" do eu ao mundo, a "viagem" a ser encetada pelo

poeta, aguardará longos anos em silencio.
 


CORAÇÃO DE BÚSSOLA: erotismo e memória mítica
 

Só em 1967, o poeta publica seu segundo livro, "Coração de Bússola", cuja epígrafe de abertura é uma frase de Kafka: "Uma gaiola partiu à procura dum pássaro." E com essa absurda inversão de elementos, o poeta sintetiza a problemática-nutriz do livro: o homem esvaziado, oco, consciente de sua espera expectante por uma plenitude de vida que não chega nunca. (Implícitamente, no subtexto, um Portugal esvaziado de sua energia vital, pelo dilaceramento das guerras coloniais dos anos 60 e por uma ditadura infindável.) Um vazio que, como "gaiola", estava à espera do pássaro (o poeta) que o enchesse de vida.
 

"A vida ssa invenção magnífica morte."
 

Nessa paradoxal afirmação da vida, tão própria do nosso tempo, transparece a permanente ameaça de morte que paira sobre ela, mas não chega a vencê-la, pois a força vital é indestrutível e tem, na voz do poeta, a garantia de sua perenidade.
 

"Do mais fundo da noite Chega até nós vibrante um frêmito de

rios subterrâneos que pedem uma voz para cantar. Para dizer que

amanhã haverá sol"
 

As metáforas são transparentes: rios subterrâneos (vida latente, oculta) e voz pra cantar o sol (a nomeação pelo poeta, dos novos tempos a chegarem). O poeta, em meio ao escuro ou em face de um horizonte fechado pela morte, tenta dar presença às realidades ocultas e às ainda imperceptíveis vibrações de vida. E canta:
 

"A alegoria duma primavera intensa hoje morta, vívida, sonhada

.......................... Uma festa marcada para o crepúsculo hoje,

amanhã, depois, e sempre adiada, nunca consentida e todavia

urgente, e todavia necessária."
 

Mas essa primavera, essa festa estão ainda suspensas no tempo vindouro e o poeta busca, no hoje, um "chão" que o sustente e o justifique como presença no mundo. Abrindo-se a um tu essencial, o poeta rompe os limites do eu e busca a si mesmo através do outro:
 

"Desenho no mapa o teu perfil de caravela cósmica. Viajo por

hemisférios tácteis ao encontro do lastro puro, do contraste que

me revele e justifique e baste."
 

A essencialidade dessa ansiada integração eu-tu está manifesta no poema.

Mas a natureza metafórica da linguagem impede a decodificação exata da presença a que se refere o "tu" evocado pelo poeta: a mulher amada? a nação mãe? ou a própria poesia? A memória erótica? à memória telúrica ou mítica? ou à memória poética? A vibração emotiva que percorre esse poema (e a maioria dos incluídos em "Coração de Bússola") pode ser sentida igualmente como erótica (integração como a vida através de Eros), como mítica-telúrica (integração na terra-mãe) ou como poética (a poesia como fundadora do real).

Note-se que, embora o campo semântico das metáforas usadas aponte para o Portugal mítico dos Descobrimentos ("caravela cósmica", "hemisférios"), nada impede que se possa sentir nesse "teu perfil", o da mulher amada, "lastro puro", que revelara o eu-poeta a si mesmo. A poesia é o espaço da ambigüidade, por excelência, daí que a leitura decodificadora da crítica jamais pode ser definitiva e fechada. Aqui, nosso "fio de Ariadne" é a ânsia de re-ligaçao eu-mundo, o que pode se dar através de qualquer das forças referidas. Inclusive o título do livro, "Coração de Bússola", está impregnado dessa duplicidade: o primeiro termo ligado a Eros, Amor e o segundo, à Portucalidade mítíca, — a que se engendrou com os Descobrimentos e hoje está minada pelo vazio, pela inação.
 

"A casa desabitada que nós somos pede que a venham habitar [...]

— até que uma aurora simples nos visite com o seu corpo de sol

desgrenhado e quente [...] até que as palavras de pedra que

arrancamos da língua sejam aproveitadas para apedrejarmos a

morte."
 

Da própria dureza do viver, será arrancada a força que vencerá a morte. Força essa que é paixão e, como tal, se funda (ou confunde) com a vibração erótica que impregna essa poesia e que, constantemente, se associa à memória mítica da terra-mãe.
 

"Os barcos ancorados dos teus ombros soltam amarras do meu

corpo. Mas quem parte sou eu, eu que tenho a alma estrangeira e

coração de bússola."
 

"Barcos", "amarras", "bússola" são símbolos claros da epopéia dos descobrimentos e que, por analogia, apontam aqui para a grande aventura interior a ser realizada pelo poeta, — "alma estrangeira" a ser descoberta por ele mesmo, como os antigos navegadores descobriram as terras estrangeiras. Através de Eros? Através da Nação-origem? através da Poesia? O "Coração de Bússola" pode levar a cada uma delas. Por outro lado, como dissociarmos mulher e nação, nesse poema?

Mas, na verdade, não é essa identificação o que mais nos importa destacar na poesia de Albano Martins, e sim a grande força de vida que a impregna, minando, inclusive, os muros da estagnação ou da morte. Força que será aprofundada ou decantada de livro para livro, pela crescente consciência do poeta em relação à sua tarefa de reinventar o mundo, a partir da visceral experiência de um corpo-a-corpo com a Vida, o Amor, a Dor, a Morte, o Sonho ... na concretude do cotidiano, com seus pequenos nadas, suas grandezas e misérias.

Um corpo-a-corpo que não se dá apenas entre um simples eu e o mundo, mas que intermediado ou iluminado pelo "outro" coexistente no poeta, pela "otredad" (Octavio Paz) que abre o diálogo no poema e alarga para o eu as perspectivas de visão.
 

"Abre-te, sésamo dos meus dias, pulso das minhas veias dilatadas

sobre o corpo do tempo, concha da alegria. Estou ainda aqui

esperando a minha praia, o azul que me complete, um barco de

espuma, um naufrágio dentro do meu sangue."
 

Mesmo com o risco de empobrecermos (ou mesmo banalizarmos) o poema, não podemos nos impedir de identificar, nesse eu-que-fala, uma das faces do poeta: a do homem, daquele que se sabe eu-instrumento ou eu-corporal (prisioneiro da materialidade) evocando o outro, o poeta, o eu-agente, eu incorporal (o que ilumina o real, aquele que vê além das aparências). É através desse outro ("Abre-te sésamo") que os "tesouros" intuídos pelo eu limitado ("Estou... esperando") poderão ser alcançados. Mas o momento ainda é de espera e no poema seguinte o outro (o poeta) responde ao apelo que lhe foi feito:
 

"Sobe: até o cimo da manhã É lá que deves esperar-me, grande

intervalo de silêncio musicado e fresco, até que eu me liberte do

terror das palavras sedentárias e aprenda, irmão mais novo dos

insectos, a linguagem perfumada das flores."
 

Aderido à presença material das coisas ("irmão mais novo dos insectos", linguagem perfumada das flores"), o poeta tenta romper os limites das palavras já ditas, paradas no tempo ("palavras sedentárias"). O título do poema "Silêncio Intacto", já aponta para o cerne de sua problemática: o momento intervalar (entre o silêncio e a fala essencial) vivido pela poesia, em confronto com a consciência da alteridade do poeta, da "otredad", como Octavio Paz define aquele "outro" que o poeta sabe existir em si mesmo e que Freud descobriu no inconsciente (e Lacan redescobriu), ao alargar a presença do homem a si mesmo.

É essa consciência da alteridade do poeta (e de sua tarefa de fundador do real) que, na matéria poética, se amalgama com a energia erótica e com a comunhão telúrica. Em maior ou menor grau de intensidade essas constantes se manifestam na palavra de Albano Martins, desde a poesia inicial até a mais recente. Na coletânea Vocação de Silêncio, publicada em 1990 (poemas de 1950-1985), o cruzamento dessas linhas-de-força fica bem evidente, principalmente nos grupos de poemas intitulados: "Em Tempo e Memória" (l974); "Paralelo ao Vento" (l979), "Aproximações ao Real" (l980), "Complementos de lugar" (l981), "A Margem do Azul" (l982), "Remos Escaldantes" (l983), "Vertical" o desejo" (l985) e "As Vogais aliterantes" .

Impossível percorrer toda a poesia do autor, nos limites deste ensaio, assim nos concentraremos em três livros, a nosso ver, exemplares, do amâlgama das referidas linhas-de-força: "Rodomel Rododendro" (l989), "Uma Colina para os lábios" (l993) e "Com as Flores do Salgueiro" (l995) que sentimos como um ponto de chegada de determinado percurso poético encetado pelo autor.


RODOMEL RODODENDRO: o poeta se faz caminho
 

Iniciando a caminhada em pleno "crepúsculo" (o dos "deuses" que o nosso tempo destruiu), o poeta avança, mergulhando cada vez mais no magma poético e acaba por vislumbrar nova "aurora". Indo "ao encontro da foz", reencontrou "a nascente" (tema recorrente em sua poesia).

Da primeira à última linha dos cinco fragmentos desse denso poema-em-prosa, o fluxo das palavras rola, anhelante, espesso, arrastando-nos, como leitores, na febre de suas emoções. Uma rara experiência de leitura (só alcançada em altos momentos de Arte), que o crítico brasileiro, Antônio Roberval Miketen, expressou com clareza:

"Quando leio as palavras rodomel e rododendro, na teia inextrincável da rede relacional de figuras do texto, sinto ter, no que há de mais sensível em mim, o mesmo vislumbre da enunciação do Poeta: numa instância do meu inconsciente instaura-se a imagem. O meu ato de leitura provoca um efeito de identificação entre a palavra e o objeto. [...] um fugir da idéia para instaurar a imagem. [...] a subjetividade torna-se uma natureza subcutânea. O poema infiltra-se dos objetos do mundo. Os fragmentos da matéria interpenetram-se, corpo e universo, querendo, no inusitado, formar os signos da realidade."

Nesse enfoque privilegiado pelo crítico (a identificação palavra/objeto), está, sem dúvida, uma das grandes conquistas da madurez poética de Albano Martins: o domínio do poder mágico da palavra Inaugural. Referimo-nos à crença multimilenar (persistente nas tradições primitivas, gnósticas ou cabalísticas, etc.) de que houve uma linguagem inaugural, primitiva, na qual não havia distancia entre a coisa e a palavra que a exprime; "não havia distancia entre o sopro, o princípio vital, e o Verbo que forma este sopro entre dentes." (Pauwels & Bergíer. Distância essa, cavada pelo avançar do pensamento racionalista que construiu esta nossa bela-horrível civilização, hoje em plena troca-de-pele. É no encalço de anular essa "distancia", que os poetas se vêm empenhando, há séculos e, no nosso, chegam à exasperação da busca (como o demonstra o multiforme experimentalismo de linguagem que marca a literatura e a arte contemporânea).

É nesse sentido que flui e reflui a poesia de Rodomel... apossando-se dessa "magia" da palavra, instaurando-se numa linguagem que à pura envolvência musical, vibrante de força vital. Linguagem não concebida como algo mental ou operação abstrata, mas sim como dado visceral do corpo e da natureza: o real e a linguagem (significante e significado), confundidos na unidade do mundo exterior e interior. Espiral em fuga, em que a idéia é absorvida pela imagem, na tentativa de restaurar a vertigem do corpo nos fragmentos da Natureza.

Nova "Odisséia", breve e fulgurante como um relâmpago, Rodomel ... soa aos nos sos ouvidos como eco de múltiplas vozes do Poeta-século XX, aquele que, iniciando sua caminhada em pleno findar-de-mundo, acaba por se auto-descobrir como "principio e fim" da aventura humana, tal como tem acontecido desde o princípio da Poesia.
 

"E vamos pela noite adentro [...] Como se por nós começasse

agora, ao mesmo tempo, o principio e o fim. Que também a noite é

salgada e abre o ventre largo à fecundação dos ritos calados na

epiderme. Tambor e odre."


Eco e vaso, receptáculo: eis Rodomel Rododendro.
 

Seu lastro simbólico decifra-se com facilidade, quando o iluminamos com essa idéia-chave: o da palavra poética (oracular) como "principio e fim" dos sucessivos e infinitos ciclos da aventura humana.
 

"E dizes que há para tudo um lado invisível, secreto como o

interior das conchas bivalves, uma oculta e primordial razão, uma

ordem na desordem, um rio onde estiver o mar [...] Conheces o

esplendor das viagens. [...] E regressas ao ponto de partida.
 

Consciente da necessidade vital da "viagem", porque é através dela que o ser humano se cumpre, o poeta sabe também que a cada ciclo tudo volta ao "ponto de partida". Difícil resistirmos à tentação das citações:
 

"Vamos na órbita dos ciclos que geram a inocência. Ciclopes

amarrados à visão desprendida., nítida das origens, como quando

outra vez descalços. [...] Trazíamos ainda nos ouvidos [...] a voz

rouca do cuco e da poupa, o aroma poroso dos rododendros.

Porque é deles que falas onde quer que te dispas, te desnudes,

desprevenido e inteiro. [...] Sim por mais que digas, falas sempre

das abelhas, do mel adolescente escorrendo dos favos loucos da

alegria. Da alegria perdida, reencontrada, perdida entre os

escombros e as abjeções do real, mais falso e verdadeiro que todos

os dogmas e doutrinas acumuladas nos compêndios por onde te

ensinaram a vida."
 

"Ciclope" (possuidor dum único olho: o terceiro olho, o da Sabedoria oculta) o Poeta, ao mesmo tempo, "ilumina" e se "faz caminho" da vida. Alegoricamente aponta para a essencialidade da nudez, para a urgente necessidade de nos depojarmos dos "envólucros" em que o artificialismo "civilizado" nos fechou. Só assim, desnudo, o ser humano poderá reencontrar o "natural", pela re-imersão do eu no todo (que, afinal, só a poesia, a filosofia e o amor ou a religião permitem alcançar). Impossível decodificarmos aqui os diferentes fios que se cruzam na apaixonante teia simbólica ou alegórica tecida pelo poeta. Mas pelo menos um, não podemos silenciar: o mel, que parece tão caro ao poeta.
 

"Rodomel. Mel rosado de antigas e árduas colmeias. De Rodes e

Tirinto. De Lesbos e de Creta. Da Babilônia e da Assíria. O mel

das rosas que enfloram a cabeça dos enigmas. Da rosa dos ventos.

[...] por mais que digas, falas sempre das abelhas, do mel

adolescente, escorrendo dos favos loucos da alegria."
 

Muito além de mero recurso poético-retórico para resgatar altas tradições (Rodes, Creta, Babilônia... ) aqui, a evocação do mel, com sua forte carga simbólica, mergulha a poesia no magma cósmico, na infinitude misteriosa da vida; identificando-a, ao mesmo tempo, com os mais altos valores a serem alcançados pelos homens.

De riquíssimo simbolismo, que vem desde a origem dos tempos, o mel, em nível primário, é símbolo de doçura (alegria, vida plena) a que se opõe o amargo do fel (dor, vida castrada). Projetado em níveis superiores de conhecimento, o mel está presente nas mais recuadas tradições religiosas: entre judaico-cristãos, simboliza a "terra prometida", o alimento espiritual dos santos e sábios"; no Cântico dos Cânticos, a intensidade erótica que leva ao mistério da união mística; no Veda, é exaltado como princípio fecundador, fonte de vida e imortalidade; integra a palavra "hydromel", bebida da imortalidade, que corre nos rios do Outro Mundo; na simbólica chinesa, significa o Centro, etc.

Neste Rodomel... a presença do mel (para além do que possa sugerir seu multívoco simbolismo) parece nos dizer que, por mais que dominemos a Natureza e dela nos distanciemos pela conquista de sofisticadas e progressistas culturas ou civilizações, será sempre a Ela que precisaremos voltar, ao final de cada ciclo cumprido. E isso, porque a vivência autêntica será sempre uma misteriosa transmutação do natural, tal como se dá no invisível e misterioso fenômenos bio-químico que é a transmutação da poeira efêmera do pólen, no precioso alimento que e o mel. Transmutação ou "processo de elaboração" que "na Psicanálise atual é tomado como símbolo do Eu superior ou Self, enquanto última conseqüência do trabalho Interior do eu sobre si mesmo." (Chevalier & Gheerbrant)

Nessa ordem de idéias, entendemos esse falar sempre de "abelhas, de mel adolescente", exaltado por Albano Martins, como o processo de decantação do eu-poeta em busca de sua verdade maior (pressentida no eterno enigma da Vida, na Natureza) e que só a Poesia poderia vislumbrar em instantes de "iluminação" o que nos diz Rodomel ... nos mais variados tons de exaltação ou desanimo, sempre no encalço da essencial e inalcansável integração eu-todo.
 

"Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos.

Navegalo-às solitário, porque solitárias são as navegações

humanas, todas, como inavegáveis são os rios; todos os rios da

terra anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês."
 

Novamente o rio (cantado pela poesia de todos os tempos, para expressar a vocação humana para o infinito e o eterno). Retomando esse antiquíssímo símbolo da efêmera vida humana, "rio" sempre almejando fundir-se com o "mar", para tornar-se eterna , o poeta aprofunda a identificação da Poesia com o magma cósmico: "Há um rio correndo entre as falanges dos dedos." É, pois, a própria vida que, pelo mistério da criação, flui nas palavras escritas à mão pelo poeta e se concretiza no poema.

 

"E assistirás à explosão do século [...] Dirás que foi assim desde a

primeira aurora boreal. [...] E voltaras ao sótão para colher o fruto

proibido ali guardado e que não soubeste alcançar então. [... ]

Dirás que era cedo; o fruto, verde é impuro; que o galo não

cantara ainda. Era aí, porém, que em verdade nascias. Porque é

preciso, às vezes, morrer antecipadamente, para renascer inteiro."
 

Metaforicamente, o poeta legitima as sucessivas "mortes" em poesia, advindas da visceral impossibilidade humana de fazer com que a palavra, a linguagem, diga tudo que a experiência poética vivencia e tenta expressar. "Mortes" que só a palavra essencial (ou a palavra absoluta) poderia impedir. Palavra, essa, perseguida pelos poetas (e iluminados) desde o início dos tempos e que Rodomel... também persegue.
 

"E cortarás, com tuas mãos libertas cortarás o cordão umbilical, —

não o dourado cordão materno — que um dia ardilosamente te

implantaram. Dirás o inominável, o caroço do tempo roído pelo

tempo, o sol aprisionado em suas malhas finíssimas."
 

Todas as tradições primitivas, gnósticas ou cabalísticas, ensinam que há um nome supremo, secreto, "inominável", que é, em si, a chave de todas as coisas do universo, mas cujo conhecimento está vedado aos não-iniciados. É esse "inominável" que o poeta conhecerá quando "cortar o cordão umbilical" que o prende as verdades aparentes do mundo. Tal como aconteceu com o sacerdote Tzinacán (do conto "La Escritura de Dios" de Jorge Luis Borges), encarcerado durante longos anos numa masmorra de pedra e escura, na qual o sol penetrava apenas por um fugaz instante no dia, quando a clarabóia era aberta para que o alimento baixasse até os prisioneiros: o sacerdote e um tigre, aprisionado ao lado, e que só nesse momento iluminado ele conseguia ver. Para preencher o vazio do tempo o sábio Tzinacán entregou-se a rebuscar na memória todos os conhecimentos e vivencias ali guardados, esforçando-se agonicamente para descobrir aquilo que ele perseguira desde sempre: a escrita suprema que Deus teria inscrito, secretamente, em um lugar qualquer. Escrita que, um dia, ele acaba por vislumbrar na pele do tigre e, enfim, pôde ver, numa só visão, todo o multiforme universo e "seus mais íntimos desígnios". Tzinacán conheceu o "nome supremo", mas o calou:
 

"Que muera conmigo el misterio que está escrito en los tigres."
 

Analogamente o poeta de Rodomel... sabe que essa palavra inominável pode ser a sua, quando chegar o
 

"Tempo de ceifa. Recolherás o fruto das sementes adubadas com o suor do teu

sangue. É a voz dos oráculos, da pitonisa anunciando um verão cantante, uma

aurora de espumas."
 

Com a certeza do "fruto" que nascerá do corpo-a-corpo com a vida (que é a grande paixão), o poeta sabe (pela voz dos oráculos, da pitonisa) que sua palavra permanecerá para além de si mesmo, apesar das sucessivas e inevitáveis "mortes" vívidas. Disso nos fala metaforicamente no findar do último fragmento, ao se dirigir à própria Poesia (ou à Vida? ou à Terra-mãe?)
 

"E estarás junto de mim, sobre mim debruçada ao jeito e ao peso

fugaz da melancolia. Tu, meu óleo e minha chama, minha unção

derradeira, meu lar primeiro e único e último, minha dor

extrema. [...] E deixarás crescer, no chão que me couber, sobre o

lugar do coração [...] uma planta [...] de raízes escaldantes como a

sua florescência, o seu deslumbrado fulgor. Seu nome de fogo:

hidrãngea."
 

Metaforicamente, o poeta diz o nome supremo, nomeia o inominável, toca o caroço do tempo: hidrângea. De origem grega, é o nome científico da flor "hortência" e, etimologicamente, significa hydor (água) + aggeion (vaso, — alusão à forma do fruto que lembra uma pequena taça). Fundem-se, pois, nesse nome, o eterno princípio da vida (água) e o receptáculo que deve contê-lo (vaso). Consultando a simbologia atribuída a "vaso", vemos que na Cabala e suas tradições, o termo é identificado a "tesouro". Daí na literatura medieval, a busca do vaso que contém o tesouro: o Graal, ou ainda o "vaso alquímico", o "vaso hermético"... sempre significando o lugar onde as maravilhas se operam e, conseqüentemente, onde a paixão, o fogo da procura se ateia. Simboliza também o útero materno, no qual um novo nascimento se engendra. Daí a crença de que o "vaso" contém o segredo das metamorfoses.

E Rodomel... se finda reduzindo-se ao silêncio ordenado pelo poeta, depois de nomeado o "inominável":
 

"E nada mais dirás. Que tudo, como ouviste, é silêncio. Escuta. Dorme."
 

Mas a vida continua. O poeta diz as últimas palavras:
 

"Descem ainda das colinas — repara — as abelhas. Há um cortiço

em cada gesto, em cada palavra. Poeira de abelhas, os teus olhos,

os teus gestos. A boca. Dorme. Rodomel. Rododendro."

 

É a transmutação da vida que, invisível, recomeça...


UMA COLINA PARA OS LÁBIOS: o Erotismo enquanto busca.
 

A significação maior da concisa poesia de "Uma Colina para os Lábios" surge-nos mais facilmente, quando a lemos em confronto com alguns dos livros que a precederam, como "Vertical" o "Desejo" ou "A Margem do Azul", nos quais a principal linha-de-força é o Erotismo.

Relacionada com esses livros, Uma Colina... se revela, de imediato, como fruto de um paciente amadurecimento do exercício-da-paixão, a que o poeta vem-se entregando desde seus inícios. Poesia decantada. Como dissemos anteriormente, o nervo da poesia de Albano Martins é, a nosso ver, o impulso de re-ligação eu-mundo ( que se manifesta, seja por via da criação poética (como consciente desdobramento do eu-poeta no outro que o amplia e o eterniza no tempo), seja por via erótico-amorosa (busca de integração do eu no outro-amado, como suprema experiência existencial). Mais do que um impulso para o "encontro", o erotismo em Albano Martins é uma "busca". O que o aproxima do erotismo "nerudiano", com o qual, alias, tem grande afinidade, como já nos é sugerido por uma das epígrafes que abrem o livro.
 

....................... "Yo no escogi sino una sola ola:

La ola indivisible de tu cuerpo." (Pablo Neruda)
 

Mar e Mulher (dois elementos primordiais da Vida) se fundem na aspiração do poeta. A funda identificação mulher-natureza e o sistema metafórico (concentra do nos quatro elementos primordiais: água, terra, fogo e ar) que singularizam a poesia amorosa "nerudiana", são também, desde as primeiras horas, marcas distintivas da poesia de Albano Martins, sempre oscilante entre erótica e telúrica. Trata-se, sem dúvida, de uma declarada "afinidade eletiva" (como diria Goethe) entre o poeta português e o exuberante chileno, a se mostrar já no título do livro ("Uma Colina para os Lábios"), onde ressoa um verso de "20 Poemas de Amor" e "Um Canto Desesperado":
 

"Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos, te pareces al

mundo en tu actitud de entrega. Mi cuerpo de labriego salvaje te

socaba y hace saltar el hijo del fondo de la tierra."
 

Como a terra, a mulher se entrega à semeadura que dá continuidade à vida. E nela, o homem se cumpre. Daí a fusão, erotismo-telurismo, nessa poesia que arraiga na antiquíssima concepção do Feminino, como a Grande Mãe (Neumann). Adotando a ótica "junguiana", facilmente detectamos na poesia contemporânea, uma linguagem poética que arraiga nesse arquétipo primordial: o do Grande Feminino, — a "magna mater", elemento original, possuidor das forças ctônicas, emergentes do obscuro mundo inferior da Terra, e que, na origem dos tempos, emergiu do Oceano, como "colina primordial", que foi fecundada pelo Sol, dando origem à Vida. A es sã linhagem pertence Neruda e dela se alimenta a poesia de Albano.
 

Diz Neruda:
 

"Fui solo como un túnel. De mí huian los pájaros, Y en mi noche

entraba su invasión poderosa. Para sobrevívirme te forje como un

arma, como una flecha en mi arco, como una piedra en mí honda."
 

Como o dourado "tubos" do Sol mitológico que fecundou a Terra o poeta sabe-se "túnel", instrumento de passagem da força de vida ("pájaros") que ele semeia na mulher (ou na terra) e assim a cria ou a revela a si mesma; enquanto, ao mesmo tempo, através dela (arma, flecha, piedra) constrói-se a si mesmo.
 

Diz Albano:
 

"Eu disse: faça-se um rosto à minha imagem e semelhança, um

corpo à semelhança e imagem do desejo

................................................. Agora sei: nascemos do mesmo

ventre de espuma. .............................................. Há uma linha

de terra e mar na tua boca. .......................................................

Pelos teus olhos vejo, em ti me vejo, te vejo em mim."
 

Aí temos o mesmo processo circular presente em Neruda: o poeta cria a criatura e esta, por sua vez, o revela a si mesmo. (Mulher? Poesia? Terra?). Justifica-se aqui essa aproximação entre ambos, na medida em que se assemelham pela temática (a concepção do Feminino, ou melhor, do Erotismo como a grande força construtora do ser) e se diferenciam pelo estilo. Em Neruda, a busca da Mulher ou do tu essencial, se manifesta em linguagem exuberante, barroca, caudalosa; no poeta português, é contida, clássica, concisa, — "poética da brevidade" (como a definiu Eduardo Lourenço). Diferença que, a nosso ver, aponta para um inequívoco amadurecimento da problemática eu-outro-natureza (ou mundo), ainda em processo neste fim de milênio, mas em cuja resolução estaria, com certeza, uma das pontas do enigma da Vida, que desde sempre vem desafiando os homens.

É através do corpo erótico (cuja força liberada explode todos os limites do corpóreo) que a decifração do "enigma" vem sendo buscada (ou entrevista?) pela poesia. Na concisão das palavras, Albano Martins doma a indomável força erótica:
 

"Abismo ou sorvedouro Na líquida arena desembolado morre o touro."
 

As metáforas são transparentes. Aí está o poder mágico da poesia: em três breves versos represa a força avassaladora do orgasmo, — a "pequena morte", como é chamado. Ou ainda:
 

"Para morrer não era necessária a morte. Bastava o teu corpo." ou  "A cúpula, a

cópula o nome da rosa."
 

O "enigma" entrevisto, num momento fulgurante e fugaz.


COM AS FLORES DO SALGUEIRO: o encontro após a busca
 

Caminho-síntese de uma tensa jornada em busca do eu-outro essencial, os "Haikais" reunidos em "Com as Flores do Salgueiro" entregam-se ao leitor, como signos de pura vivência anímica, de serena comunhão com o mundo. Poesia breve e densa, que expressa o "encontro" (embora por momentos fugazes), depois da "busca". A tensão da paixão distende-se em serenidade iluminadora (que poderíamos chamar de "serenidade zen": a da integração plena eu/cosmos).

Aparentemente circunscritos ao registro objetivo da paisagem ou do mundo elementar (mar, neve, verão., pássaro... ), captados em dado momento, pelo olhar do poeta na verdade estes Haikais são portas abertas para uma compreensão mais funda da problemática maior que, desde as primeiras horas, dinamizou a poesia de Albano Martins: a busca do "elo perdido", da palavra essencial, do caminho de relegação do homem ao mundo, às forças inaugurais e autênticas da vida.

É evidente que, desde o início, estamos usando o termo re-ligação como paradigma de religião, — a experiência essencial capaz de religar todas as coisas: o eu com o profundo, o eu com o outro, com o mundo, com o passado ancestral... Semelhante ao "fio" que, unindo as pérolas, forma um colar.

Nestes "Haikais", o olhar-descoberta do poeta é esse "fio". As "pérolas" são as múltiplas formas que a Natureza assume, como manifestação de vida, e que mal notamos como existentes, tão comuns elas são: o mar os pássaros, as folhas o verão, os ninhos, os insetos, o sol... Enfim, trata-se da natureza livre, que o poeta capta em momentos banais da vida natural (um vôo de gaivota, as asas de uma libélula ou as do grilo, uma rã à tona d'água... ), mas nos quais ele surpreende uma essencialidade oculta que os transforma aos nossos olhos ou percepção. Em outras palavras, o olhar do poeta rompe com o olhar comum: ao atualizar em poesia a realidade concreta e visível das coisas, nelas ilumina uma realidade virtual que se transforma em realidade maior, em presença única e fundadora de um novo real.

Lidos em contraponto com o universo poético, no qual agora se integram, os concisos "Haikais" de "Com as Flores do Salgueiro" revelam não só depurado grau de maturidade poética e existencial atingido pela arte do autor, como também sua fidelidade às forças geratrizes de sua poesia inicial: a busca do oculto que estaria além das exterioridades e daria sentido definitivo à vida.

Fidelidade também à natureza da forma poética escolhida. Notemos que, quanto à forma propriamente dita, se por um lado o poeta não obedece rigorosamente a estrutura métrica consagrada pelo "Haikai" japonês (l7 unidades fônicas), por outro lado, mantém a estrutura sintática exigida (a justaposição de sintagmas, desprovidos de nexos sintáticos explícitos entre si, de modo que o leitor tenha que descobrir a relação entre eles).

Sabe-se, ainda, que o que dá autenticidade ou legitimidade ao "Haikai" é a atitude de interior a ser assumida pelo poeta: concentração intensa na percepção do real em foco, através de uma sensação concreta (visual, táctil, auditiva, térmica... ) que deve funcionar como "disparadora" de associações, sentimentos ou dados da memória. Em outras palavras, todo "Haikai" assenta em uma situação espácio temporal objetiva, concreta, que deve ser "iluminada" pelo olhar-do-poeta, de me do a ultrapassar o que ali seria visto pelo "olhar comum". É esse o processo aqui dominado com maestria por Albano Martins.

Leia-se, por exemplo, o "Haikai" de abertura do livro:
 

"Um mar azul pintou de branco o vôo das gaivotas."
 

Diante dessa situação espácio-temporal concreta, o "olhar comum" veria apenas a paisagem com o li mar azul" e as "gaivotas brancas" voando. Entretanto, o poeta (a quem cabe a tarefa de re-nomear o mundo) vai além das aparências; descobre o maravilhoso no cotidiano: na calma paisagem marinha, em pleno dia, o "mar azul" inesperadamente faz um gesto que provoca a chispa poética. Isto é, desencadeia no leitor uma insólita percepção do real: o "azul" do mar "pintando" de branco o "vôo" das gaivotas. Insólita fusão de abstrato e concreto, esse gesto resulta de uma ruptura com o olhar convencional, com a normalidade das coisas: em lugar do registro das asas brancas das gaivotas contrastando com o azul do mar, o olhar poético descobre um fenômeno inverso: o "azul" do mar como sendo o agente criador do "vôo" e de sua inesperada beleza. Latente, nesse fenômeno insólito, está também a essencial interligação entre todos os reinos da natureza, um atuando sobre o outro e sendo por sua vez tocado. O olhar poético descobriu, portanto, na realidade concreta, uma realidade virtual que, instaurada nesse "Haikai", torna-se um novo real. (Quem, depois deste "Haikai", poderã ver um "vôo de gaivota" sem lembrar do "mar azul pintando-o de branco"?)

Cada um dos "Haíkais" deste "Com as Flores do Salgueiro" registra um momento privilegiado na percepção da paisagem ou da realidade comum. Ou melhor, registra o "satori", a Iluminação ("espécie de insight ocidental", como o define Octavío Paz), — modo especial de ver e nomear o real, que é inerente à forma poética do "Haikai". No exemplo dado acima, o "satori", a iluminação, se dá no insólito gesto do "mar azul".

Talvez, mais do que outras formas poéticas, o "Haikai" exija uma adesão especial do leitor, pois para além da beleza visual da imagem poética ou das insólitas relações estabelecidas entre os elementos ali presentes, há (ou deve haver) um sentido maior a ser captado. Captação essa que depende, evidentemente, do "horizonte de expectativa" em que o leitor se coloque.

Fiel ao "fio de Ariadne" que escolhemos como guia neste percurso de leitura, nossa expectativa centrou-se, como ficou evidente acima, na relação eu-mundo perseguida pelo poeta. E que se manifesta agora como que "apaziguada". O eu está em harmonia com o mundo, na medida em que os contrários, as contradições (que limitam ou fazem sofrer) entram em equilíbrio, no olhar que o poeta lhes lança.

É o que lemos nestes "Haikais", onde se dá a celebração da vida, na fulguração de um momento vividos concretizado na exterioridade de um gesto, cuja interioridade essencial é subitamente iluminada.

O "Haikai" de Bachô, inscrito na página inicial, como pórtico de abertura para os que se seguem, já aponta para essa celebração e harmonia interior.
 

"As cigarras cantam sem saberem que é a morte que as escuta."
 

Que diferença faria para a morte, se as cigarras, por medo dela, parassem de cantar? Sabemos que nenhuma. Só a vida seria alterada: perderia a beleza, a alegria. Como parece claro, o "satori", a iluminação incide aí sobre a inevitável coexistência da vida e da morte, em todos os seres. Metaforicamente, Bashô parece dizer-nos que, uma vez que todas as vidas, desde que nascem, avançam em direção à morte, a sabedoria está em sabermos que a morte "nos escuta" e, mesmo assim, continuarmos cantando. Como o faz o poeta, serenamente, neste "Com as Flores do Salgueiro". O poeta alcançou o "satori": já não se sente ameaçado pelo tempo-que-acaba, nem pela ânsia de exprimir o inexprimível, pois sabe que há um outro tempo sendo continuamente criado dentro de si, através da palavra iluminadora da poesia. E esse "outro tempo" não morre, porque se instaura no poema como um eterno presente, onde o eu e o mundo se re-ligaram.

Dessa "serenidade zen", sentimos que estão impregnados os "Haikais" de Albano Martins. Deles, destacamos alguns que, a nosso ver, atingem um raro grau de condensação e beleza poéticas.
 

"Efêmero é o relâmpago, mas faz da noite, uma aurora." "Com a

lâmpada das suas asas acesas, a libélula ignora a noite. "O mocho

traz nos olhos escondido, um sol. Com ele, incendeia a noite." "Do

sangue e dos músculos da árvore faz o pica-pau um templo."

"Quando uma abelha se enamora, nasce uma flor."
 

Neles, as palavras são transparentes...

 

Leia obra poética de Albano Martins

Leia obra poética de Nelly Novaes Coelho

 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Foed Castro Chammas