Eu tenho um filho
[título original: O Grande Botão
Vermelho]
"Neil Young é um colecionador
de trens
elétricos. Como seu filho era incapaz de
acionar
os trens, ele inventou um dispositivo: O Grande Botão
Vermelho. Meu filho tem um Grande Botão Vermelho
conectado a mim. Ele me liga e desliga quando quer"
Eu tenho um filho com paralisia
cerebral. Neil Young tem dois.
Ele fez o hino da paralisia
cerebral. É T-Bone, do disco Re-ac-tor.
Neil Young repete uma mesma frase sem parar, por nove minutos
e dez segundos:
Got mashed potatoes
Ain't got no T-bone
Ou:
Tenho purê de batatas
Não tenho bisteca
A paralisia cerebral é
uma anomalia motora. Meu filho anda errado, pega errado, fala
errado. Quando é para soltar um músculo, ele
contrai. Quando é para contrair, ele solta. O cérebro
dá uma ordem, o corpo desobedece. É o motim
do corpo contra o cérebro. Como o doutor Strangelove
que se estrangula, com aquela sua "síndrome da mão
alienígena".
O tratamento da paralisia cerebral
consiste em repetir em casa e na fisioterapia os movimentos
que os outros meninos aprendem instintivamente. Sobe. Desce.
Rola para um lado. Rola para o outro. Abre. Fecha. Perna direita
para a frente. Perna esquerda para a frente.
Neil Young teve dois filhos
com paralisia cerebral com duas mulheres diferentes. Por isso
ele é o chefe da nossa tribo. O primeiro filho se chama
Zeke. O segundo se chama Ben. T-Bone é de 1981.
Na época, Ben tinha 3 anos de idade. Ele era tratado
pelo método Doman, um programa de terapia intensiva
desenvolvido na Filadélfia, nos Estados Unidos. Eram
doze horas por dia de terapia caseira, sete dias por semana.
Neil Young falou sobre o período:
Nosso filho não
engatinhava, e diziam que, se ele não conseguisse engatinhar,
a culpa era nossa, porque não tínhamos seguido
o programa direito. Sofremos uma lavagem cerebral para pensar
que o único jeito de salvar nosso filho era o programa.
Durou dezoito meses. Dezoito meses sem sair de casa.
Neil Young só podia trabalhar
entre 2 e 6 da tarde. Foi nesse intervalo de quatro horas
diárias que ele gravou Re-ac-tor. O resto do
tempo era dedicado à terapia de Ben, repetindo obcecadamente
sua rotina de movimentos. Batata. Bisteca. Batata. Bisteca.
Batata. Bisteca. Batata.
O método Doman era uma
seita. Ao longo dos anos, acabou perdendo adeptos. O conceito
lamarckiano de que o uso contínuo podia moldar as características
dos portadores de paralisia cerebral foi posto de lado. Era
muita batata para pouca bisteca.
Quando Neil Young percebeu isso,
tudo mudou. Em vez de tentar adaptar Ben à realidade,
ele passou a adaptar a realidade a Ben. Neil Young é
um colecionador de trens elétricos. Como Ben era incapaz
de acionar os trens, ele inventou um dispositivo para facilitar
a operação. O dispositivo ficou conhecido como
O Grande Botão Vermelho. Com O Grande Botão
Vermelho, Ben podia finalmente abrir porteiras, engatar locomotivas,
fazer o trem mudar de trilho, soltar fumaça e apitar.
Meu filho nunca se interessou
por trens elétricos. Mas ele tem um Grande Botão
Vermelho conectado a mim. Ele me liga e desliga quando quer.
E me faz mudar de trilho, soltar fumaça e apitar.
[Revista VEJA, 3.3.2007, Ed. n° 1998]
Nota do editor:
O texto trabalha dois
elementos fundamentais à Poesia: o distanciamento total e a
absoluta proximidade. Como se nada tivesse a ver, o autor
conta a história de outros dois meninos; a demonstrar que
tudo tem a ver: "...E me faz mudar de
trilho, soltar fumaça e apitar".
Sim, na minha conta,
poético (e Poesia) de alta qualidade.
Não está sob estrofes e
rimas?!
Nada a ver. De fato, um
texto rimado e sob o formato de linhas quebradinhas, se não
trouxer, dentre outras, estas duas qualidades, o
distanciamento e o proximal, isto é, o humano como gênero e
o Humano como espécie... Bom — aliás, mal — será qualquer
coisa, menos poesia. O olhar por sobre... olhar sobre si no
olhar sobre o filh.../
Sabem quem escrevia assim,
do simples ao mais profundo? Manuel Bandeira.
Parabéns, Mainardi!
Soares Feitosa, leitor.
Sim, leitor! E por favor, prezado leitor, mande a sua
opinião.
soaresfeitosa@uol.com.br