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Aleilton Fonseca

 

A visão do caos:

 

"A procissão", de Luís Antonio Cajazeira Ramos
(primeiras anotações para um artigo)

Aleilton Fonseca

 

A prosa poética é pedra preciosa e rara. Desde os poemas em prosa de Baudelaire e, logo mais, a produção dos simbolistas franceses, o discurso vazado em impressões, sugestões, imagens difusas e pictóricas, disciplinado pelo ritmo da poesia, demarcou um lugar relevante no corpo da literatura moderna. O surrealismo veio dar maior profundidade à abertura simbolista para o impressionante e o imaginativo, coando a percepção do mundo através do inconsciente. É nessa conjunção — a busca de captar e traduzir o inefável em linguagem com a necessidade de exprimir uma visão interior e fantamagórica do mundo real — que se instaura essa poesia em prosa, ou essa prosa poética, que sempre provoca ressonâncias no leitor, estabelecendo uma zona de contato e entendimento, ao nível da capacidade humana de percepção do mundo para além da linguagem cartesiana.

Na literatura brasileira, podemos citar dois exemplos marcantes: a prosa impressionista de um Raul Pompéia e, mais adiante, já com o toque surrealista, a poesia/imagem de um Jorge de Lima (Veja-se o belíssimo "O grande desastre aéreo de ontem", de A Túnica Inconsútil). Na atualidade, a prosa poética continua rara e rarefeita, pois poucos são aqueles autores que a produzem com constância e qualidade. Na Bahia, por exemplo, apenas Díogenes Moura vem se dedicando ao gênero com uma produção contínua nessa linha.

"A procissão" de Luiz Antonio Cajazeira Ramos inscreve-se nessa vertente, com o toque pessoal do poeta que cultiva na linguagem a forma de tornar palpáveis os objetos de uma percepção particular do mundo cotidiano e das vivências íntimas. Trata-se de um texto curto e ágil, que constitui uma metáfora fantasmagórica do caos (representado pela figura surreal da bocarra imensa escancarada que emite o sorriso sarcástico) do mundo cotidiano, em que a platéia "mais se assusta do que ri". Luis Antonio traduz em sua prosa poética o caos pós-moderno (?) que apavora e seduz. Assim atualiza a imagem do monstro de mil dentes/a boca de língua trissulca — entrevista por Mário de Andrade, no poema “Os cortejos” — aberta sobre a procissão de homens (todos iguais e desiguais) na grande metrópole.

“A procissão” lança ao leitor os feixes luminosos do olhar inquieto e expectante, através de uma linguagem que prima pela elegância e pelo equilíbrio, com as palavras dispostas como a tintas sobre a tela. Esse engenho do autor confere qualidade estética ao texto, que se caracteriza pela força pictórica de suas imagens, espraiadas numa pintura verbal surrealista que, no entanto, desvela ao fundo a realidade nua e crua sobre a qual passeia o pincel (a palavra) do artista.

O poeta observa e nos deixa perceber os contornos dessa procissão fastasmal, na qual imergimos (sucumbimos?), como que levados por uma força superior, a mão sem rosto da grande engrenagem de ídolos e ícones que a nós todos nos tenta diurturnamente, para nos tornar mais um número dessa platéia extasiada e estática que povoa os labirintos do mundo. Eqüidistante do processo, embora inserido em seu epicentro, o poeta se vale de sua posição visionária e — exatamente porque a linguagem normal se tornou suporte litúrgico da grande grei e seus cortejos, ele instaura a escritura da poesia na prosa, cujas iluminações reverberam na sensibilidade do leitor e, por um momento que seja, restaura o “re-ligare” poético do homem na comunhão com a palavra. Assim, o seu discurso se torna um fluxo de sentidos opostos às correntes das procissões que a todos cegam e cooptam para um “modus vivendis” em que o homem apenas representa a si mesmo numa comédia trágica. É dessa “representação” que iguala e anula que o poeta tem medo, porque diante da “visão mais apavorante” a ele se revela a consciência de que não faz parte da engrenagem, de que deve recusar um lugar no grande rebanho. Seu lugar é o da recusa e o recolhimento à linguagem fundamental, como finaliza o seu discurso:

“Essa foi a visão mais apavorante. Estatelaram-se-me os ossos, arregalei os olhos, estático. Um medo roía-me as entranhas. Fui dando para trás, em mil arrepios, erguendo os olhos à pira, que babava labaredas de lascívia e frenesi.
 

Gritei, gritei, gritei...”

 

Na linguagem, no princípio não foi o verbo, mas o grito. O texto de Luís Antonio Cajazeira Ramos conclui com o gesto reiterativo do grito primordial (da consciência do mundo e da escolha) que marca o fim (em duplo sentido) da expressão poética diante do caos tão visual quanto indizível de um mundo cada vez mais desumano. Testemunha de tal espetáculo (será um circo dos horrores?), resta à consciência sensível do poeta o grito que ecoa e se prolonga, infinito nas reticências... porque se dirige ao universo, onde todos os gritos são eternos. “A procissão” é a linguagem urgente do grito, novo (e sempre) princípio da poesia que emerge, em prosa, do caos absoluto.
 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Página de Luís Antonio Cajazeiras Ramos

 

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Artur Eduardo Benevides