Ana Guimarães
Sem saída
Acordava trocando os dias da semana
como se estivesse num cárcere, onde o tempo não importa, parece que
não passa, ou passa muito lentamente. A vida lhe era pouco cara.
Arrastava-se pelos afazeres domésticos mecanicamente. Há muito
desistira de uma tradução da realidade, de uma interpretação dos
fatos que fizesse sentido. Atravessava esse lugar de solidão com
dignidade, na companhia de um velho chinelo de pelica e do pijama de
seda listrado (uniforme de presidiária?) apenas sem um botão que,
diariamente, pela manhã, ao se olhar no espelho, quase com prazer
conferia sua falta. Era quando mais divagava, observando aquela
imagem que era dela, a lógica dizia que devia ser dela, mas não lhe
correspondia. Só refletia o que ela deixara de ser. Todos os reinos
perdidos nessa suspensão entre a vontade e a inapetência.
Nem corajosa ou medrosa como antes.
Tampouco sentindo a agonia da carne. Não alucinando mais nenhum
gozo. Só esse sonambulismo, essa perplexidade. Nem mais a morte lhe
cortejando: olhava com desdém a ratoeira com seu queijo preferido.
Nem mesmo o cinismo para substituir a inocência perdida. Não
recebendo mais recados da intuição mas também não acreditando no
visível. Sem força alguma para revelar a farsa, mal desperta já
tenta adormecer, acordar pra que ? Quando dorme sonha e quando sonha
vive. A alma solta pelos paraísos, livre, voa. E vendo ou não vendo
Deus, nele acredita. Desperta é atéia. Despiu-se, além dos
disfarces, das vestes da ilusão de toda e qualquer religião. Mais
por falta de convicção do que de estímulo. Se já fez o sinal da cruz
diante de igrejas, hoje passa indiferente pelo mistério do além;
além daquelas, sinagogas e mesquitas – todos os templos – lhe
interessam mais pela beleza arquitetônica. Administrar o conceito de
vida já é difícil, imagina o de morte.
Emparedado desde sempre na dor seu
espírito nem mais sofre, aceita com resignação o destino, fiado por
alguma moura torta, alguma madrasta má disfarçada de velhinha
vendedora de maçãs na selva da cidade. Muitas telhas lhe caíram na
cabeça hoje oca, muitas lanças fincadas em seu pobre corpo ora
exangue, flechas em seu coração. Muita faxina seus literários dedos
tiveram que empreender, e eis que a Cinderela viu seus sonhos irem
para o ralo no meio de tanta água e sabão.
Já amou e muito. Ainda ama. Se é que
se pode chamar amor – e não, mais do que um sintoma, uma verdadeira
devastação – isso que é um homem para uma mulher. Essa
desterritorialização sentida. Esse dar o que não se tem e ainda
assim se sentir plena. Rica e sem um tostão. Forte e frágil
simultaneamente. Tão senhora e tão escrava. Deixar-se enredar em sua
teia, aranha tecendo sua própria armadilha. Seu cadafalso, sua
guilhotina.. Não há mente, por mais sã que seja, que não enlouqueça.
Se o amor já não é uma loucura, ele a promove.
Sempre se sentiu assim, mas nunca se
sentiu tão assim como hoje. Amanhã, quem sabe, mais ainda. Sem
saída.
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