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Anderson Braga Horta




Erotismo e Poesia



 

Neste breve discurso acerca de erotismo e poesia, desferiremos um vol d'oiseau sobre alguns dos mais notáveis acidentes eróticos da poesia brasileira, do Romantismo aos nossos dias. O assunto é saboroso, nossa poesia muito rica, talvez devesse eu ceder de pronto a voz aos poetas convocados, que têm muito a dizer; e muito mais poemas e poetas haveria, se espaço houvera. Mas como, afinal de contas, está comigo a palavra, não posso deixar de dizer alguma coisa própria a respeito, e é o que passo a fazer, contando com a paciência e boa vontade dos amigos.

De Eros, representação do Amor entre os gregos, desde o século VI a.C. cultuado principalmente como o deus da Paixão, vem erotismo. Significa paixão amorosa — o amor, não tanto no seu lado "cavalheiresco", platônico, dominante na poesia trovadoresca, por exemplo, mas antes no seu aspecto físico, sexual. A maior ou menor franqueza com que se pode, sem escândalo, falar do amor erótico, em literatura, varia de civilização para civilização; assim, obras que têm, em determinado país e tempo, serena posição nas letras, alhures ou em outra época poderão ser consideradas pornográficas. É como sói ser encarado no Ocidente o Kama-Sutra, antigo manual hindu de técnicas sexuais.

Mesmo em relação a obras da nossa cultura e do nosso tempo, é muita vez difícil a distinção entre arte e pornografia; e é verdade que a mesma obra pode agasalhar, lado a lado, ou misturados, imbricados, traços artísticos e traços pornográficos. Há de haver, sem embargo, meios ao alcance do leitor — e falo em leitor porque nos estamos cingindo à literatura, mais especificamente à poesia — para essa distinção. Tentando estabelecê-los, recorro a um breve discurso paralelo acerca do que chamo "a psicologia do palavrão".

Que vem a ser isto, um palavrão? Uma "palavra obscena ou grosseira", diz Mestre Aurélio, no seu dicionário. Mas, se temos duas palavras significando a mesma coisa, como, por que se há de associar a uma delas conotação de obscenidade, ou grosseria, e não à outra?

O que determina essa carga negativa, ou positiva, ou neutra, das palavras é a intenção. Deste modo, tem a língua, para significar os órgãos sexuais, palavras de uso restrito a meios técnicos ou científicos, e que podem ser fora daí empregadas sem susto, por serem meramente denotativas, eticamente neutras; palavras de uso familiar, carregadas de variável gama afetiva, que podemos dizer portadoras de conotação positiva; e palavras de baixo calão, que, além do significado, basicamente igual ao de suas irmãs retromencionadas, imantam-se de uma intenção negativa — de depreciação, achincalhe, deboche. Normalmente, estas últimas têm curso no escuso dos becos, em esconsos quartos ou frias salas, em meios onde os homens, vítimas da própria miséria, passam a ser uns para os outros não mais que objetos de egoístico prazer, ou sujo lucro. Por isto, não é necessariamente fruto de condenável preconceito a recusa de trânsito em níveis mais altos a certas palavras forjadas ou em curso naqueles meios; pois o que se recusa, ou deve recusar, nelas é a intenção que visa a diminuir o destinatário e que avilta o emitente. (Conseqüentemente, as palavras podem mudar de categoria, subir ou descer, degradar-se ou reabilitar-se, conforme o uso social que se lhes dê; e pode a mesma palavra pertencer a opostas categorias, em meios diversos.)

De modo semelhante, a qualificação de erótica ou pornográfica a obra literária depende do ponto de vista em que se coloque o autor (ou o leitor, o que relativiza ainda mais a questão). Transcrevo o que dizem a respeito Otto Maria Carpeaux e Sebastião Uchoa Leite, no verbete "erotismo" da Enciclopédia Mirador Internacional:

"A pornografia não provoca, em geral, questões de crítica literária; há, até, quem duvide se esses produtos pertencem à literatura em qualquer sentido da palavra. Essa dúvida atinge sobretudo as obras pornográficas que foram escritas com o único fim de estimular sensações sexuais. Mas em muitos casos a confecção de obras pornográficas serve para satisfazer os estímulos irrealizáveis dos próprios autores; trata-se, nesses casos, de fantasias de regressão infantil, de sonhos de poder sobre órgãos genitais alheios, que são o único tópico da pornografia ("pornotopia"). A exclusão de todos os outros motivos e a redução dos personagens a seus órgãos genitais são traços característicos da pornografia e indícios de que não se trata acaso de literatura propriamente dita."

Pornográfica é a obra em que se objetualiza o ser humano como pasto de paixões, reduzido o amor à bestialidade, isto é, à exacerbação e cega satisfação do instinto. E diria que a pornografia está para o erotismo assim como a prostituição está para o amor.

Não me lembra que escritor se perguntava, com real ou ficta perplexidade, por que não se dignavam os poetas de cantar os prazeres do paladar, como cantam os do amor. Sim, por que não merecerem algumas notas líricas as delícias do tutu com torresmo, o êxtase da feijoada completa, a ingenuidade da salada vegetal, os mistérios espirituais dos álcoois? (Estes até que não podem se queixar ... )

Poesia é transcendência. Por isto não canta o poeta o bom prato, a não ser no poema satírico. Por isto, ao cantar o amor, se não lhe despreza as materialidades, procura colher-lhe a volátil essência; nem é verdadeiramente poesia, senão torpe simulacro, essa, pseudo-erótica, incapaz de ultrapassar o descritivismo no âmbito da física sexual.

Uma e outra coisa existem e são necessárias. Só que não são, em si mesmas, objeto de poesia, como não o é o econômico, o técnico em geral. E, forçadas a um papel mais alto que o que lhes compete, tornam-se grotescas, ou obscenas.

Mas, esperem aí! — somos corpo e espírito, espírito e corpo. Quando sugiro espiritualização, não me entendam mal, não estou recusando o corpóreo. Nem me esqueço de que a poesia erótica ocidental tem raiz em seu livro sagrado — na Bíblia, no Velho Testamento, no Cântico dos Cânticos de Salomão. E como, nos seus cantares, se refere o rei poeta aos dotes da Sulamita? Em termos como estes, cuja sensualidade não elide a pureza:

"Quão belos são os teus pés
nas sandálias que trazes, ó filha de príncipe!
As colunas das tuas pernas são como anéis trabalhados por
mãos de artista.
o teu umbigo é uma taça arredondada,
que nunca está desprovida de vinho.
O teu ventre é como um monte de trigo
cercado de lírios.
Os teus dois seios são como dois filhinhos
gêmeos duma gazela.
O teu pescoço é como uma torre de marfim.
Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon,
que estão situadas junto da porta de Bat-Rabim.
O teu nariz é como a torre do Líbano,
que olha para Damasco.
A tua cabeça levanta-se como o monte Carmelo;
os cabelos da tua cabeça são como a púrpura
um rei ficou preso às suas madeixas.
Quão formosa e encantadora és,
meu amor, minhas delícias!
A tua figura é semelhante a uma palmeira.
Eu disse. Subirei à palmeira,
e colherei os seus frutos.
Os teus seios serão, para mim, como cachos de uvas,
e o perfume da tua boca como o das maçãs."
Feito o intróito, cuja extensão espero me seja perdoada, passemos aos verdadeiros falantes desta jornada.

 

Álvares de Azevedo, um dos "gênios adolescentes" do nosso Romantismo, em cuja época se praticou pela primeira vez uma poesia caracterizadamente brasileira, morreu aos vinte anos, "sem na vida ter sentido nunca" — conforme se queixava no poema "Idéias Íntimas" — "na suave atração de um róseo corpo" os "olhos turvos se fechar de gozo". Não obstante, ou talvez por isso mesmo, sua lírica amorosa revela, no dizer de Antônio Soares Amora, erotismo tão explícito corno nunca antes, entre nós. É, pois, merecedor das honras da abertura. Leiam-se as estrofes iniciais de "Seio de Virgem":

"0 que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
E o teu seio, donzela!

Oh! quem pintara o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios?

Ouando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo

Para neles se morrer!"
Cedo, porém, sofreia os seus arroubos, primeiro diferindo para um futuro sacramentado e incerto a felicidade sonhada, e ao fim declarando-se (por meio de falsa interrogação) indigno do prêmio cobiçado:

"Donzela, feliz do amante
Que teu seio palpitante
Seio de esposa fizer!
Que dessa forma tão pura
Fizer com mais formosura
Seio de bela mulher!

Feliz de mim... porém não!...
Repouse teu coração
Da pureza no rosal!
Tenho no peito um aroma
Que valha a rosa que assoma

No teu seio virginal?..."
Esse arrependimento a meio sonho não se observa em "Malva-Maçã", poema de mais acabado lavor; se bem que aí o poeta (romanticamente...) se contente, ou finja contentar, com um contato mediato... Vejamos dois trechos:

"De teus seios tão mimosos
Quem gozasse o talismã!
Quem ali deitasse a fronte
Cheia de amoroso afã!
E quem nele respirasse
A tua malva-maçã!

Dá-me essa folha cheirosa
Que treine no seio teu!
Dá-me a folha... hei de beijá-la
Sedenta no lábio meu!
Não vês que o calor do seio
Tua malva emurcheceu...

.........................

O teu seio que estremece
Enlaguece-me de gozo.
Há um quê de tão suave
No colo voluptuoso,
Que num trêmulo delíquio
Faz-me sonhar venturoso!

Descansar nesses teus braços
Fora angélica ventura:
Fora morrer — nos teus lábios
Aspirar tua alma pura!
Fora ser Deus dar-te um beijo
Na divina formosura!

Mas o que eu peço, donzela,
Meus amores, não é tanto!
Basta-me afolha do seio
Para que eu viva no encanto,
E em noites enamoradas
Eu verta amoroso pranto!

Oh! virgem dos meus amores,
Dá-me essa folha singela!
Quero sentir teu perfume
Nos doces aromas dela...
E nessa malva-maçã

Sonhar teu seio, donzela!
 

Mas Azevedo é, também, dono de singular veia humorística. Vejam como amor e humor se casam neste soneto:

"Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós — e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! e dormir solteiro!"
 

Outro que pouco andou na Terra — vinte e um anos apenas — foi Casimiro de Abreu, cuia lírica, de uma ingenuidade brejeira, tem boa amostra nos seguintes trechos de "Moreninha":

"Tu, ontem, vinhas do monte
E paraste ao pé da fonte
À fresca sombra do til;
Regando as flores, sozinha,
Nem tu sabes, Moreninha,
O quanto achei-te gentil!

Depois segui-te calado
Como o pássaro esfaimado
Vai seguindo a juriti
Mas tão pura ias brincando,
Pelas pedrinhas saltando,
Que eu tive pena de ti!

E disse então: — Moreninha,
Se um dia tu fores minha,
Que amor, que amor não terás!
Eu dou-te noites de rosas
Cantando canções formosas
Ao som dos meus ternos ais.
............................

Morena, minha Morena,
És bela, mas não tens pena
De quem morre de paixão!
— Tu vendes flores singelas
E guardas as flores belas,
As rosas do coração?!...

Moreninha, Moreninha,
Tu és das belas rainha,
Mas nos amores és má;
— Como tu ficas bonita
Com as tranças presas na fita,
Com as flores no samburá!

"Eu disse então: — "Meus amores,
"Deixa mirar tuas flores
"Deixa perfumes sentir!"
Mas naquele doce enleio,
Em vez das flores, no seio,
No seio te fui bulir!

Como nuvem desmaiada
Se tinge de madrugada
Ao doce albor da manhã;
Assim ficaste, querida,
A face em pejo acendida,
Vermelha como a romã!

Tu fugiste, feiticeira,
E decerto mais ligeira
Qualquer gazela não é;
Tu ias de saia curta...
Saltando a moita de murta
Mostraste, mostraste o pé!

Ai! Morena, ai! meus amores,
Eu quero comprar-te as flores,
Mas dá-me um beijo também;
Que importa rosas do prado
Sem o sorriso engraçado
Que a tua boquinha tem?

Apenas vi-te, sereia,
Chamei-te — rosa da aldeia
Como mais linda não há.
Jesus! como eras bonita
Com as tranças presas na fita,

Com as flores no samburá!"

 

É famoso o ensaio "Amor e Medo" — título, aliás, de outro poema de Casimiro —, em que Mário de Andrade analisa o enfoque do amor em nossos românticos. Aí, a propósito de Azevedo, diz que todas as mulheres, em sua obra, "se não são consangüineamente assexuadas (mãe, irmã), ou são virgens de quinze anos ou prostitutas, isto é, inatingíveis ou desprezíveis". Quanto a Casimiro de Abreu, comentando os mesmos versos que parcialmente recordamos, di-lo "mestre nesse gênero de poesia graciosa, própria dos assustados familiares, que a gente vive esquecendo que no fundo é bem pouco inocente"; acusa-o, em termos que repito mas não endosso, de "safadeza", "sadismo", e se irrita "pelas perversõesinhas com que recama a sua burguês dulcidão" Já do poeta de "O Navio Negreiro" e "Vozes d'África" afirma, na sua linguagem brasileira, desabusada: "Em Castro Alves não tem dessas coisas. Sensualidade sadia, marcadamente viril, mesmo nas mais estilizadas metáforas .... Não será preciso documentar a objetividade com que ele tratou o amor e a mulher. Todos sabem disso." E noutro ponto do ensaio citado: "Em Castro Alves se sente sempre, ou pelo menos mais que nos outros, a mulher. Ele foi de fato um sexual perigoso, duma sexualidade animal bem correta."

Paschoal Rangel vê em Castro Alves o poeta erótico "não só quando cantava a mulher e seus amores apaixonados, mas em qualquer parte" — havia nele, consoante o autor de Ensaios de Literatura, uma espécie deginotropismo, uma "atração ingênita e cultivada para a mulher". Mais: "Imprimia em toda a natureza um movimento sensual. Erotizava a terra, os rios, tudo. Sem intenções maliciosas, pois como dizia Grieco, ele ignorou a fealdade moral". A mulher "estava sempre presente ao seu pensamento, e sua imagem envolvia o universo castroalvino: é assim que fala das tranças mulheris da granadilha ou dos abraços fogosos da baunilha. Em "O São Francisco" essa componente erótica se desenvolve em toda sua força. E o poema inteiro figura "o rio transformado em garanhão que sai possuindo as terras que percorre".

A direiteza com que o cantor d'Os Escravos vai ao encontro do amor aparece nítida em "Boa-Noite", onde também nítido se exibe o donjuanismo do poeta:

"Boa noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio...
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite!... E tu dizes — Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não me digas descobrindo o peito,
— Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu! Ouve.. a calhandra
já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
...Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se a estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."

É noite ainda! Brilha na cambraia
— Desmanchado o roupão, a espádua nua —
o globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...

É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
— São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...

Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:

— Boa noite! —,formosa Consuelo...

 

Junqueira Freire viveu um ano menos que Castro Alves: aos vinte e três deixava a existência, que lhe foi amarga. Frade, passou três anos no "estado de solidão monástica". Autor de estranha e forte poesia, traduz em "Inspirações do Claustro" e em "Contradições Poéticas" a sua rebeldia contra os votos jurados e cito Fernando Góes — uma "sexualidade exacerbada, que povoava suas noites de solidão, na cela do frade, de sonhos lúbricos, de desejos indomináveis, cuja não realização fazia-o explodir em revolta contra a existência". Nele, o erotismo transforma-se em luxúria:

"Aqui — já era noite... eu reclinei-me
Nas moles formas do virgíneo seio:
Aqui — sobre ela eu meditei amores
Em doce devaneio.

Aqui — inda era noite... eu tive uns sonhos
De monstruosa, de infernal luxúria:
Aqui — prostrei-me a lhe beijar os rastros
Em amorosa fúria.

....................................

Aqui — era manhã... via-a sentada
Sobre o sofá — voluptuosa um pouco:
Aqui — prostrei-me a lhe beijar os rastros
Alucinado e louco.

...........................

Aqui — oh quantas vezes! ... eu a tive
Unida a mim — a derreter-se em ais:
Aqui — ela ensinou-me a ter mais vida,
Sentir melhor e mais.

Aqui — oh quantas vezes!... eu a tive
Em acessos de amor desfalecida!
Lasciva e nua — a me exigir mais gostos

Por sobre mim caída!"

 

Em Fagundes Varela — que, tendo-se casado duas vezes, trata a mulher "com certa franqueza macha", expressão de Mário de Andrade — é débil a nota erótica. Nesta "Lira", cheia de humor e delicadeza, os encantos físicos da amada pintam-se antes como motivos de poesia:

"Quando me volves teus formosos olhos,
Meigos, banhados de celeste encanto,
Rasgo uma folha da carteira, e a lápis
Escrevo um canto.

Quando nos lábios do rubim mais puro
Mostras-me um riso sedutor, faceto,
Encomendo minh'alma às nove musas,
Faço um soneto.

Quando ao passeio no mover das roupas
Deixas de leve ver teu pé divino,
Sinto as artérias palpitarem tímidas,
Componho um hino.

Quando no mármore das espáduas belas
As negras tranças a tremer sacodes,
Ébrio de amor, sorvendo seus perfumes,
Rimo dez odes.

Quando à noitinha me falando a medo
Elevas-me do céu à luz suprema,
Esqueço-me do mundo e de mim mesmo,
Gero um poema."

 

Tampouco em Gonçalves Dias deparamos o erótico. Mas tem ele um soneto de mocidade, transcrito por Mário no ensaio citado, que parece resposta antecipada a esses versos varelianos — comparemos:

"Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem de ar, de perfumes, de ambrosia,
Que vagando por mares de harmonia
São melhores que as próprias borboletas?

Não creias que eles sejam tão patetas,
Isso é bom, muito bom, mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas.

Talvez mesmo que algum desses broeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.

Eu, que sou pecador — que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,

julgo um beijo sem fim coisa excelente."

 

Passemos a Olavo Bilac, grande sensual, especialmente nas "Sarças de Fogo": "O julgamento de Frinéia", "Satânia", "Paráfrase de Baudelaire", "De Volta do Baile", "Beijo Eterno"... (Que sina, encontrarem-se os grandes eróticos entre os menos realizados no amor! A exceção de Castro Alves... – mas não morreu na flor da idade?) "Beijo Eterno" começa com ardente manifestação de desejo:

"Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo,
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!

Fora, repouse em paz
Dormindo em calmo sono a calma natureza,
Ou se debata, das tormentas presa,
Beija inda mais!
E, enquanto o brando calor
Sinto em meu peito de teu seio,
Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio,
Com o mesmo ardente amor!

De arrebol a arrebol
Vão-se os dias sem conto! e as noites, como os dias,
Sem conto vão-se, cálidas ou frias!
Rutile o sol

Esplêndido e abrasador!
No alto as estrelas coruscantes,
Tauxiando os largos céus, brilhem como diamantes!
Brilhe aqui dentro o amor!
Suceda a treva à luz!
Vele a noite de crepe a curva do horizonte;
Em véus de opala a madrugada aponte
Nos céus azuis,
E Vênus, como uma flor,
Brilhe, a sorrir, do ocaso à porta,
Brilhe à porta do oriente! A treva e a luz — que importa?
Só nos importa o amor!

Raive o sol no Verão!
Venha o Outono! do Inverno os frígidos vapores
Toldem o céu! das aves e das flores
Venha a estação!
Que nos importa o esplendor
Da Primavera, e o firmamento
Limpo, e o sol cintilante, e a neve, e a chuva, e o vento?

— Beijemo-nos, amor!"

 

Depois, convocam-se os seres da natureza — participantes, confundidos nesse amor gramaticalmente anunciado em orações optativas, mas poeticamente presentificado na veemência do verbo bilaquiano:

"Beijemo-nos! que o mar
Nossos beijos ouvindo, em pasmo a voz levante!
E cante o sol! a ave desperte e cante!
Cante o luar,
Cheio de um novo fulgor!
Cante a amplidão! Cante a floresta!
E a natureza toda, em delirante festa,
Cante, cante este amor!

Rasgue-se, à noite, o véu
Das neblinas, e o vento inquira o monte e o vale:
"Quem canta assim?" E uma áurea estrela fale
Do alto do céu
Ao mar, presa de pavor.
"Que agitação estranha é aquela?"
E o mar adoce a voz, e à curiosa estrela
Responda que é o amor!

E a ave, ao sol da manhã,
Também, a asa vibrando, à estrela que palpita
Responda, ao vê-la desmaiada e aflita:
"Que beijo, irmã!
"Pudesses ver com que ardor
"Eles se beijam loucamente!"
E inveje-nos a estrela... e apague o olhar dormente,

Morta, morta de amor!... "

 

E finalmente chega-se a um espasmo de loucura sado/masoquista, sugerido o fechar e reiniciar de um ciclo com a repetição da estrofe inicial:

"Diz tua boca: "Vem!"
Inda mais ! diz a minha, a soluçar... Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
"Morde também!"
Ai! morde! que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! morde mais! que eu morra de ventura,
Morto por teu amor!

Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!"

 

Escolhi "Beijo Eterno" pela franqueza da primeira pessoa. Mas o trecho inicial de "Satânia" não pode ser omitido neste exemplário:

".......................................................
Nua, de pé, solto o cabelo às costas,
Sorri na alcova perfumada e quente,
Pela janela, como um rio enorme
De áureas ondas tranqüilas e impalpáveis,
Profusamente a luz do meio-dia
Entra e se espalha palpitante e viva.
Entra, parte-se em feixes rutilantes,
Aviva as cores das tapeçarias,
Doura os espelhos e os cristais inflama.
Depois, tremendo, como a arfar, desliza
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,
Como uma vaga preguiçosa e lenta,
Vem lhe beijar a pequenina ponta
Do pequenino pé macio e branco.
Sobe... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe... — e que volta sensual descreve
Para abranger todo o quadril! — prossegue.
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo
Da axila, acende-lhe o coral da boca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na densa noite dos cabelos negros,
Pára confusa, a palpitar, diante
Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
 

Na literatura amorosa, encontra-se com freqüência o símile animal e muitos dos poemas que vamos recordando o evidenciam; às vezes com delicadezas felinas, outras com caprina luxúria, ainda outras com a impetuosidade dos eqüídeos. Singular, brutal exemplo, o soneto "Antropofagia", de Carvalho júnior, ademais disso confunde duas fomes:

"Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas
Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,
Como um bando voraz de lúbricas jumentas,
Instintos canibais refervem-me no peito.

Como a besta feroz a dilatar as ventas
Mede por dar-lhe o bote ajeito,
Do meu fúlgido olhar às chispas odientas
Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t'estreito:

E ao longo de teu corpo elástico, onduloso,
Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,
Em toda essa extensão pululam meus desejos,

— Os átomos sutis, — os vermes sensuais,
Cevando a seu talante as fomes bestiais
Nessas carnes febris, — esplêndidos sobejos!"

 

Péricles Eugênio da Silva Ramos dá como influenciado por ele este outro soneto, de Raimundo Correia:

"Na Penumbra"

Raiava, ao longe, em fogo a lua nova,
Lembras-te?... apenas reluzia a medo,
Na escuridão crepuscular da alcova
O diamante que ardia-te no dedo...

Nesse ambiente tépido, enervante,
Os meus desejos quentes, irritados,
Circulavam-te a carne palpitante,
Como um bando de lobos esfaimados...

Como que estava sobre nós suspensa
A pomba da volúpia; a treva densa
Do teu olhar tinha tamanho brilho!

E os teus seios que as roupas comprimiam,
Tanto sob elas, túmidos, batiam,
Que estalavam-te o flácido espartilho!

 

Proponho agora uma espécie de pausa, ou trégua, a fim de contrastarmos à brutalidade do soneto de Carvalho júnior a delicadeza do "Tu...", de Humberto de Campos — eco das homenagens ao poeta maranhense pelo seu centenário, há pouco transcorrido:

"Quando alguém me pergunta, porventura,
Quem me faz de outros tempos diferente,
Pensas tu que teu nome se murmura,
Que o exponho à ânsia voraz de toda gente?

Não; digo apenas o seguinte: é pura,
Casta, simples e meiga: é unas dolente,
Cauta rola de tímida candura,
Flor que menos se vê do que se sente.

Mimo de graças e de singeleza:
Clara estrela arrancada a um céu profundo:
Doce apoteose da Delicadeza...

Nesse ponto, de súbito, me calo;
E, sem dizer teu nome, todo mundo
Fica logo sabendo de quem falo!"

 

Gostaria de lembrar aqui alguma estrofe de Alma em Flor, de Alberto de Oliveira, algum soneto de Martins Fontes; fico-o devendo. E mesmo o nome silencio de outros poetas nossos que mereciam ser lembrados. E os portugueses? Mas este é um vôo de pássaro de asas curtas, e um vôo engaiolado... Passa longe a pretensão de explorar toda esta sesmaria! Assim, já que não podemos percorrer todos os seus recantos, que ao menos nossa limitação nos leve a geografias diferenciadas a fim de podermos projetar uma tela panorâmica.

Encaixar neste panorama a poesia espiritualizada de Cruz e Sousa parecerá, à primeira vista, forçado; mas atente-se no sensualismo verbal herdado de poetas corno Castro Alves e Guerra Junqueiro e por ele modificado, moldado à sua feição. "Lésbia" comparece como representante das minorias eróticas...

"Lésbia"

"Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
planta mortal, carnívora, sangrenta,
da tua carne báquica rebenta
a vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,
ri, ri, risadas de expressão violenta
o Amor, trágico e triste, e passa, lenta,
a morte, o espasmo gélido, aflitivo...

Lésbia nervosa, fascinante e doente,
cruel e demoníaca serpente
das flamejantes atrações do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,
fluem capros aromas e os letargos,

os ópios de um luar tuberculose..."
Este "Súcubo", de Emiliano Perneta, aos meus olhos oscila entre o alucinatório e o demoníaco.

"Desde que te amo, vê, quase infalivelmente,
Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, ninfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de fato, tu te entregas...

Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.
Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, flutuando docemente,
Uma túnica azul, como as túnicas gregas...

E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas!
Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!"

 

Já Alphonsus de Guimaraens é um sensual em luta contra a carne, e, quando permite a esta intrometer-se nua em seus versos, é para exorcizá-la, não sem uma pitada de ironia:

"Só, na geena deste meu quarto
Cheio de rezas e de luxúria...
Alguém que geme, dores de parto,
— Satã que faz nascer uma fúria...

E ela que vem sobre mim, de braços
Escancarados, a agitar as tetas...
E nuvens de anjos pelos espaços,
Anjos estranhos com as asas pretas...

E o Inferno em tudo, por tudo o abismo
Em que se me vai toda a coragem...
"Santa Maria, dá-me o exorcismo
Do teu sorriso, da tua imagem!"

 

Ou alude à carne na evocação da morte, que a transcende, como no soneto IX de "Cavaleiro Ferido" (neste passo, com maior dose de ironia):

"Segues para a imperial cidade dos pés juntos
E dos olhos em paz e dos braços em cruz!
Sê feliz, meu amor, no reino dos defuntos,
Onde a marte ergue e soergue o seu cetro de luz.

Permita Deus que em breve estejamos bem juntos,
Nus das vestes do mundo e da carne bem nus!
Rir-nos-emos, então, como alegres defuntos,
Dos versos virginais que em tua fronte pus.

Seremos, é bem certo, um nada contrafeitos:
já não encontro mais a seda dos teus peitos,
Nem tu encontrarás o tacto destas mãos...

Afundam-se na terra as imagens lascivas.
Não mais a comunhão dos beijos e salivas...
Amamo-nos em vida: o pó fez-nos irmãos!"

 

Quem não sabe algum verso de Augusto dos Anjos, o poeta "de tudo quanto é morto"? Em seus "Versos de Amor" com dedicatória "A um poeta erótico" —, na verdade atingimos o grau zero do erotismo:

"Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana".

 

Amor antierótico, o seu, ou transerótico, ou supra-erótico, que transluz, quadras adiante, em versos espiritualíssimos, de grande beleza:

"Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!"

 

"A Fome e o Amor" se equivalem, no mais baixo patamar da animalidade, em seu soneto desse título (dedicado "A um monstro"), de que reproduzo os quartetos:

"Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbanjem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!"

 

Zomba, por cúmulo, da paixão genésica nos versos fortemente sarcásticos de "Volúpia Imortal", sob a capa de um erotismo macabro:

"Cuidas que o genesíaco Prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!

Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!

Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descarnados,
Em convulsivas contorções sensuais,

Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!"

 

Disse "sarcasmo"? Contudo, meditemos um pouco nesses desconcertantes versos desse desconcertante poeta, assinalemos a força e a finalidade que reconhecem à fome amorosa, em seu núcleo de "luz radial, em que arde o Ser"... e aos aspectos primeiro percebidos acrescentaremos terceiro, superior: os pólos, as contradições que somos — vida-morte, eurritmia-apodrecimento, luz-treva — na marcha rumo à unidade do Ser (marcha que, aliás, nessa unidade se inscreve).

A esta altura, podemos vislumbrar algo que, um pouco mais cedo, talvez nos parecesse impensável: que há uma comunicação, um parentesco, uma identidade substancial entre o amor sexual e "L'Amor che muove il Sole e l'altre stelle", do belíssimo verso final da "Divina Comédia"; que, nos fundamentos, bebem da mesma seiva "o genesíaco prazer"" e o êxtase místico. Não estranhemos, pois, que na personalidade feminina deste mostruário, Gilka Machado, "uma natureza de intensa sensualidade" se aliasse "a uma busca infatigável de transcendência espiritual", do que nos recorda Fernando Py, no prefácio às suas "Poesias Completas". Esses pólos, de resto, estão presentes no título mesmo de um de seus livros: "Carne e Alma" (poemas escolhidos).

Imagine-se que escândalo hão de ter causado, assinados por mulher, em 1917, estes dois sonetos de Estados de Alma ("Particularidades...", nº 2, o primeiro; sem título, o segundo):

"Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente poma,
porque afagos de velo oferece e propina.

O intrínseco sabor lhe ignoro, se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina...

Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno,
saboreio-a num beijo, evitando um ressábio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.

E que prazer o meu! que prazer insensato!
— pela vista comer-te o pêssego do lábio,
e o pêssego comer apenas pelo tato."

"Na plena solidão de um amplo descampado,
penso em ti e que tu pensas em mim suponho;
tenho toda afeição de um arbusto isolado,
abstrato o olhar, entregue à delícia de um sonho.

O Vento, sob o céu de brumas carregado,
passa, ora langoroso, ora forte, medonho!
e tanto penso em ti, ó meu ausente amado!
que te sinto no Vento e a ele, feliz, me exponho.

Com carícias brutais e com carícias mansas,
cuido que tu me vens, julgo-me toda nua...
— sou árvore a oscilar, meus cabelos são franças...

E não podes saber do meu gozo violento,
quando me fico assim, neste ermo, toda nua,
completa-te exposta à Volúpia do Vento!"

Outro é o tom de "Espirituais" (Cristais Partidos, 1915), de
cujos sonetos I e III transcrevo partes:

".....................................

lembro de um teu sorriso o espiritual afago.
Este amor sem passado e também sem futuro
é um amar, meu amor, desprovido das ânsias
dos prazeres carnais, efêmeros e escassos.

É amor em que meu ser totalmente depuro,
amor que te dedico através das distâncias
como um sol a outro sol através dos espaços."

"Como duas iguais e extraordinárias naves,
irão, rumo do azul, nossas almas de eleitos,
ambas vogando sobre os mesmos sonhos suaves,
ao desejo que as move e inflama nossos peitos.

Dia a dia entre nós mais a distância aumento
para que aquele ideal tanto tempo sonhado
não vejamos fugir num rápido momento,

e sintamos, então, imóveis, lado a lado,
essa náusea, esse tédio, esse aniquilamento
que vem sempre depois de um desejo saciado."

 

Ainda nesse primeiro livro, lendo os versos de "Ser Mulher..." entendemos como a manifestação do erotismo, nessa poetisa extraordinária, atende à consciência do estrangulamento social da mulher, no início do século, e veicula revolta e protesto; de modo que sua poesia sensual tem também o sentido de um grito libertário:

"Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!"

 

Estamos chegando ao fim do vôo. Convoquemos, para concluir este panorama, alguns poetas de nossos dias. Primeiro, Manuel Bandeira, com o belíssimo "Cântico dos Cânticos" (de Opus 10), em que se contrasta a psicologia amorosa do homem e da mulher:

" — Quem me busca a esta hora tardia?
— Alguém que trenas de desejo.
— Sou teu vale, zéfiro, e aguardo
Teu hálito... A noite é tão fria!
— Meu hálito não, meu bafejo,
Meu calor, meu túrgido dardo.

— Quando por mais assegurada
Contra os golpes de Amor me tinha,
Eis que irrompes por mim deiscente...
— Cântico! Púrpura! Alvorada!

— Eis que me entras profundamente
Como um deus em sua morada!
— Como a espada em sua bainha."

 

Segundo, Carlos Drummond de Andrade, outro nome que se eleva entre os maiores da poesia em língua portuguesa. Veja-se como neste pequeno poema, "A Paixão Medida", que dá título a um de seus livros, o erotismo se oculta, lúdico e malicioso, por detrás dos vocábulos, e se sutiliza, e se resolve em pura poesia:

"Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?"

 

Geraldo Pinto Rodrigues, prestigioso representante da Geração de 45, dedicou todo um livro, "Memorial de Eros", ao objeto desta jornada, nele mais explícito, mais desnudado. Escolho o segundo poema do volume:

"Pélvicas angras
aonde veleja
meu barco ébrio
entre suores.
Meu barco púbico
roçando o porto
de tuas ancas,
nos desesperos.

Se a quilha agito
qual um corcel,
nos descampados
já faço água
neste batel
desgovernado
nos teus desmandos.

Só sigo a viagem,
mais confortado,
quando fundeio
nos teus abraços.

Enfim, assédios
de muitos frêmitos
me desintegram
nos teus penhascos!"

 

Fernando Mendes Vianna, cuja obra transita entre o pensamento metafísico e o social, pratica, especialmente a partir de "Proclamação do Barro", "uma poética do corpo", uma "poesia de enobrecimento da matéria e de denúncia da falsa dicotomia corpo-alma", reunindo-se "à corrente incompreendida e obstinada dos poetas libertinos, de todos aqueles que, desde Villon a Bocage e a Henry Miller, imprimiram ao tema do corpo e do sexo urna significação de indisfarçável protesto, irredutivelmente libertário" — cito a apresentação de José Guilherme Merquior. Os versos que vamos ler foram extraídos de "Oratório do Corpo":

"Acredita no corpo", acredita no teu corpo. O corpo é sábio,
é da terra e para a terra, por isto é sábio.
....................................................................
O corpo não é um corpo celeste; ele mora e se move aqui,
no movimento da terra,
e só se realiza incorporado à vida da terra.
....................................................................
Segue os ditames do teu corpo. Ele sabe as tuas necessidades.
Atende quando ele grita "liberdade".
Segue teu corpo; ele sabe do que necessita,
sabe os caminhos da fome, do cio, da sede, do sono.
Sê humilde perante o corpo sábio, pois o corpo
pensa de acordo com as raízes mais profundas,
Pode sentir as raízes que te irmanam à criação.
..........................................................
O corpo não precisa desencantar-se, não precisa
de fadas, de demiurgos, de paraísos, de infernos.
Se for corpo de mulher, nenhum príncipe é necessário:
só um macho que acredite no sêmen .
como na hóstia de um deus apenas seiva,
e confie o corpo à fêmea como o padre confia o cálice ao altar.
Crê no teu corpo, confia no teu corpo, no corpo do homem,
no corpo da mulher.
Crê no corpo como na única ponte entre os homens;
e que acima do rio variável e enganoso da palavra,
a carne seja como um gesto em perene dádiva.

O corpo é mais antigo e belo do que a Cova de Altamira,
e a gruta do útero pode ser mais funda e clara
do que uma aurora que se abrisse no fundo da terra.
............................................................

Vê, amigo melancólico, como é bela a moça que bota corpo:
ontem era como um coelho, hoje é uma novilha.
E tu, moça, minha amiga não fiques triste
a remoer a utopia dos contos de fadas:
vem comigo. Eu vou te mostrar
a beleza do corpo, o átrio, o pórtico, a nave, o chão, a abóbada!
Quero que escutes o silêncio de cristal do cio saciado, sêmen
semeado com luz
— a mais fértil luz.
Em corpo montarei teu corpo e montarás meu corpo,
e sairemos a galope, o corpo aberto à palavra do vento,
e verás que uma cópula é o mais belo dos corpos de baile, e o
mais equóreo corpo-a-corpo."

 

O tormentoso relacionamento dos sexos, qual o temos conhecido, caracterizado por despótica predominância masculina, que teria por remoto e oposto correspondente um vértice de ascendência feminina, parece em vias de asserenar-se num terceiro momento: o momento da síntese, do repouso do pêndulo, na comunhão dos contrários, quando homem e mulher se equivalerão, um perante o outro, em força e dignidade e beleza. Disso nos lembra o poeta José Santiago Naud em Vez de Eros, de que traslado um fragmento:

".... se vibras de amor
e não pedes nada, nem exiges nada,
nem te deixas fisgar no anzol
como um peixe estúpido,
ou esfolar de faca
como um capão que corre pelo pasto,
gritando na hora em que a lâmina entra
e o sangue esguicha
tingindo de rubro a grama verde;
se assim,
mano a mano,
braço a braço, limpamente
ajustas com o adversário
e jogas os dados
aceitando as seis faces
com todos os seus pontos, desde
o l ao 6
sem malandragem
visível ou invisível;
assim, o contrário irá como dardo
de fato complementar
a ogiva iluminada
e o dólmen se erguerá, irisados
ao sol que levanta
ou se põe, irradiante
mesmo no fundo da noite;
então
o menino aquele, voará liberto
no halo da luz,
as flechas do Destino
em seu carcás, mas dependentes de ti..."

 

E com esta perspectiva terminamos o nosso vôo. Um vôo literário. Mas "o menino aquele", continua o seu, real, e continua o seu, real, e continuamos com ele, que tem asas eternas e voa conosco, e em nós. E assim possa conosco, e em nós, voar cada vez mais alto e mais claro esse um, esse duplo, esse inumerável, esse pássaro cativo mas inaprisionável esse nada, esse tudo, essa ausência, essa morte, que é plenitude, que é vida, que é a vida suprema dos que se enlaçam no céu como dos que ardem de rastros, "O Amar que move o Sol e os outros astros".
 

 

 

 

01/02/2005