Predominantemente
poeta, com uma relação de onze títulos
publicados desde 1971, Anderson Braga Horta
(1934) tem ainda se destacado não só como
tradutor, ensaísta e crítico literário, mas como
contista. É o que mostram seus dois livros mais
recentes, Pulso Instantâneo (Brasília: Thesaurus
Editora) e Cinco Histórias de Bichos (Brasília:
Thesaurus Editora), que saíram à luz ao final de
2008, menos de um ano depois de colocado no
mercado Criadores de Mantas: Ensaios e
Conferências (Brasília: Thesaurus Editora,
2007).
Ao ler Cinco
Histórias de Bichos, não há como deixar de
recordar Bichos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1996), de Miguel Torga (1907-1995), pseudônimo
de Adolfo Correia da Rocha, um dos maiores
escritores portugueses do século XX. Escrito em
1940, Bichos é um clássico da literatura
portuguesa, em que o escritor -- também poeta,
teatrólogo, contista e memorialista -- inventa
um mundo de bichos humanizados.
Embora fosse
médico otorrinolaringologista de profissão, com
consultório na Portagem, em Coimbra, à beira do
rio Mondego, sempre a lidar com pacientes, Torga
era pessoalmente um homem extremamente arredio,
rude e seco de palavras, mas terno com os
animais, embora fosse também adepto de caça a
coelhos nos campos.
Nascido em São
Martinho de Anta, Vila Real, era proveniente de
uma família humilde, trasmontana, que vivia na
área rural e lhe deu a conhecer a realidade do
campo, sem bucolismos, feita de árduo trabalho.
Após breve passagem pelo seminário de Lamego,
emigrou com 13 anos para o Brasil, onde durante
cinco anos trabalhou na fazenda de um tio, em
Minas Gerais, como capinador, apanhador de café,
vaqueiro e caçador de cobras, que foi quem lhe
patrocinou os estudos em Coimbra.
Como Torga, Braga
Horta também humaniza os bichos que retrata na
literatura, passando uma alegria de ser e de
viver em comunhão total com a natureza. Mas, ao
contrário de Torga, não teve uma vida dura no
campo, embora nascido em Carangola, no interior
de Minas Gerais. Nem nasceu entre iletrados,
como Torga. Seus pais foram poetas e
professores, pessoas ilustradas. Seu apego aos
animais não teria nascido de uma vida com as
mãos na terra, mas herdado do pai, “que tinha um
jeito especial de lidar com os bichos, que o
respeitavam e o amavam”, como se lê em “Meu pai
e os bichos”, a primeira das Cinco Histórias de
Bichos.
Fazendo parte da
coleção Biblioteca do Cidadão/O Livro na Rua,
Cinco Histórias de Bichos vem acompanhado de
traduções para o alemão do quase centenário Curt
Meyer-Clason (1910), grande divulgador da
literatura brasileira na Alemanha e Suíça,
conhecido especialmente pelas traduções que fez
de obras de Guimarães Rosa (1908-1967), mas que
igualmente traduziu Machado de Assis
(1839-1908), Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), Jorge Amado (1913-2001), Adonias
Filho (1915-1990) e João Cabral de Melo Neto
(1920-1999).
II
Filho de
intelectuais, Anderson Braga Horta, por volta
dos 14 anos, resolveu tentar também o caminho
das letras. Datam de 1949 seus primeiros
escritos, mas apenas no ano seguinte sentiu-se
capaz de produzir um texto que pudesse ser
submetido à análise dos outros. Eram versos. Os
contos começariam em 1954, um deles, inclusive,
que foi recolhido em Pulso Instantâneo.
O contista estreou
em livro antes do poeta, a não ser pela
participação em obras coletivas: O Horizonte e
as Setas, em parceria com Joanyr de Oliveira,
Elza Caravana e Izidoro Soler Guelman. Alguns
dos contos que integram Pulso Instantâneo faziam
parte de Contos Passageiros, livro nunca
editado, embora tenha conquistado o Prêmio
Machado de Assis, do antigo Estado da Guanabara,
em 1966.
Como observado,
predominam em sua obra títulos de poesia, como
Altiplano e Outros Poemas, de 1971, seguido de
Marvário, Incomunicação, Exercícios de Homem, O
Pássaro no Aquário, reunidos, com inéditos, em
Fragmentos da Paixão (São Paulo: Massao Ono,
2000), que obteve o Prêmio Jabuti de 2001, mais
Pulso (São Paulo: Barcarola, 2000), Quarteto
Arcaico (Guararapes, 2000) e 50 Poemas
Escolhidos pelo Autor (Rio de Janeiro, Galo
Branco, 2003).
Na linha da
crítica e da ensaística, publicou pela Editora
Thesaurus o opúsculo Erotismo e Poesia (1994) e
Aventura Espiritual de Álvares de Azevedo:
Estudo e Antologia (2002), Sob o Signo da
Poesia: Literatura em Brasília (2003), Traduzir
Poesia (2004) e Testemunho & Participação:
Ensaio e Crítica Literária (2007).
Com Fernando
Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera, assina as
traduções de Poetas do Século de Ouro Espanhol
(2000); Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia
(2002), publicados pela Thesaurus; O Sátiro e
Outros Poemas de Victor Hugo, pela Galo Branco
(2002), Antologia Poética Ibero-americana,
organização de Gustavo Pavel Égüez (Cuiabá:
2006); com Rumen Stoyanov, a de Contos de Tenetz,
do búlgaro Yordan Raditchkov (Thesaurus, 2004).
III
Em Criadores de
Mantras, Braga Horta reúne ensaios e
conferências sobre autores brasileiros, de
Álvares de Azevedo (1831-1852), Castro Alves
(1847-1871), Vicente de Carvalho (1866-1924),
Augusto dos Anjos (1884-1914), Medeiros e
Albuquerque (1867-1934), Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921) e Cruz e Sousa (1861-1898) a poetas
mais modernos, como Carlos Drummond de Andrada,
Mário Quintana (1906-1994) e Mauro Motta
(1911-1984), passando por Cassiano Ricardo
(1895-1974), Jorge de Lima (1893-1952), Augusto
Frederico Schmidt (1906-1965) e Manuel Bandeira
(1886-1968).
No texto de
abertura, “Notas Românticas”, talvez para
explicar o título do livro, Braga Horta observa
que “o poema é uma espécie de mantra, ou a
palavra mágica pela qual o poeta se põe em
comunicação com as esferas do indizível”. Para o
ensaísta, “a espécie de mantra que é o poema
atua em duas direções, conforme a qualidade, o
temperamento do poeta, conforme o momento do
poeta: ou é – primeiro, o objeto em que este
tenta cristalizar algo íntima e intensamente
vivido, ou – segundo, o instrumento por meio do
qual procura atingir a mais alta vibração
interior, correspondente a um estado pressentido
ou já antes experimentado, ou pelo menos latente
de seu espírito (e nesta segunda condição melhor
se lhe ajusta o conceito de mantra”.
Segundo Braga
Horta, pode-se, com o cuidado de não adentrar o
perigoso terreno do esquematismo, reconhecer
poetas em que é mais evidente o primeiro aspecto
– em geral, de tendência romântico-simbolista –
e poetas em que se nota melhor o segundo – de
tendência clássico-parnasiana.
IV
Nos 21 contos de
Pulso Instantâneo, há como pano de fundo a
presença das pequenas cidades mineiras ou a
paisagem do interior de Minas, ainda que em pelo
menos um deles haja a evocação de um Rio de
Janeiro que já não existe. Em “Jardineira”, o
autor conta a história da última viagem de uma
jardineira, espécie de ônibus já antigo e
mambembe que costuma circular pelas cidades do
sertão brasileiro. Nesse caso, é o sertão de
Minas que a jardineira cruza trepidante,
passando por uma ou outra cidadezinha: “bares
vazios, uma que outra mulher à janela, meninada
jogando gude – a estereotipada paisagem das
cidades de Minas”.
O autor recupera
vidas e as esperanças daqueles passageiros que
tiveram a pouca sorte de viajar na companhia de
um grandalhão de bigodes que sente prazer em
contar em alta voz histórias pavorosas de
desastres e mortes. O final é surpreendente, tal
como recomenda a receita do escritor argentino
Ricardo Piglia (1941) que, certa vez, no texto
“Teses sobre o conto” publicado no caderno Mais
da Folha de S.Paulo, de 30/12/2001, observou que
o segredo do conto bem escrito é o de contar
duas histórias: uma visível e outra subjacente
para, no final, a história submersa emergir à
superfície e surpreender o leitor.
É isso o que o
contista Braga Horta faz, ao entrelaçar essas
duas histórias para só ao final deixar aflorar
aquela que seguiu subjacente. É o que se pode
constatar também no curto conto que dá título ao
livro, “Pulso instantâneo”, que beira o
fantástico. Portanto, o leitor que se interessar
pela literatura praticada por Braga Horta em
qualquer gênero, com certeza, nunca terá do que
se arrepender.
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PULSO INSTANTÂNEO,
de Anderson Braga Horta. Brasília: Thesaurus
Editora/Fundo da Arte e da Cultura (FAC) da
Secretaria de Estado de Cultura do Distrito
Federal, 142 págs., 2008.
CINCO HISTÓRIAS DE BICHOS,
de Anderson Braga Horta, tradução para o alemão
de Curt Meyer-Clason. Brasília: Thesaurus
Editora, 31págs., 2008.
CRIADORES DE MANTRAS: ENSAIOS E CONFERÊNCIAS,
de Anderson Braga Horta. Brasília: Thesaurus
Editora/ Fundo da Arte e da Cultura (FAC) da
Secretaria de Estado de Cultura do Distrito
Federal, 380 págs, 2007.
E-mail: editor@thesaurus.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br