Andréa Santos
Luisa
Osdoba: A justaposição intertextual e intercônico
Antes de qualquer dissertação, venho
agradecer ao amigo querido Cyl Gallindo por esta apresentação da
obra de Luisa Osdoba, onde o mesmo descreveu-me como uma "sinfonia
do universo". Sinfonia pela multiplicidade dos textos que iluminam
estas obras: íntima, etérea, lúdica e ainda com traços eróticos. A
demonstração era do universo pela desenvoltura nas cores, na sua e
minha fantasia e por que não da própria Luisa.
As cores existem e nosso universo é
infinitamente colorido!
As relações entre a pintura de Luisa
Osdoba e a Literatura originou-se da idéia supra-realistíca de suas
telas, onde através da figuração humana, geométrica e da abstração
nos permitem, muitas vezes, flutuar nas suas obras. Nestas
afinidades, a linguagem plástica e a linguagem literária são os
recursos poéticos.
A arte intermoderna de Osdoba - do
ponto de vista estilístico - não traz algumas novidades, mas é
substancial em seu desenvolvimento: ao contrastar luz e sombra da
pintura às penumbras e as pinceladas da atmosfera fantasiosa (ou
talvez romântica) a qual substitui a pintura de ar livre. Deste
modo, temos uma arte fugindo da realidade, alcançando a vida, também
nas palavras.
A telas osdobiana são imagens
figurativas que já possuem significados e significantes; mas ainda,
devido à reunião inusitada de imagens tão distantes das outras, a
faculdade visionária, nelas, encontra-se intensificada, fazendo
surgir uma sucessão alucinante de imagens duplas, triplas e quiçá
múltiplas superpondo-se umas as outras com a persistência e a
rapidez própria às lembranças de nosso adormecer. Estas pinturas,
entretanto, uma vez isoladas de seu próprio contexto, ou mesmo,
recortada e coladas sobre quaisquer superfícies ganham mais uma
identidade.
Constato, a princípio, que a estética
percebida tem duas realidades próximas sobre um plano, as duas
linguagens: a icônica e a verbal; sejam estas em formas dos títulos
ou inseridas nas cores. Em seu corpo literário há poemas, narrativas
poéticas que, em grande parte, acompanha a imagem cuja função está
além da união híbrida.
Verificamos a valorização do recurso
poético, ao recortar seus quadros, em detrimento da técnica, seja do
trabalho plástico ou escrito (este proposto por mim) evidencia-se
caráter intertextual das obras, construindo uma justaposição de um
texto e uma imagem em processo aglutinador.
A intertextualidade e a
intericonicidade estão aqui como um processo da produtividade de
imagens que se constrói como absorção ou transformação da mesma.
Chego a conclusão que a obra e os
efeitos com sentidos decorrentes da intertextualidade traduzem
–especialmente- um jogo com o observador (chamá-lo-emos este de
leitor), que institui um pacto de leitura constitutivo no sentido da
tela, ou da obra; uma pretensão que pode nos levar ao absurdo e de
finalmente questionar o conjunto e literatura, revelando a trama da
poesia e o processo desta artista.
Seguem-se as obras e a Literatura
proposta.
Grata Luisa Osdoba pela confiança
total.
Título: Confesiones del azogue, Óleo s/ tela, 100 x 120, 2001.
O AMOR NO ÉTER
Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,
Entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
Como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Adélia Prado, Brasil (1935-)
Titulo: La letra dormida, Óleo s/
tela, 120 x 100, 2001.
A CARÍCIA PERDIDA
Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?
Alfonsina Storni, Argentina/Suíça (1892 -
1938). Tradução de Carlos Seabra
Cyl Gallindo, Brasil (1935 -)
APOCALIPSE versus GÊNESIS
Trêmulas as mãos
dígitos armados
põem-se ao golpe
sobre suas
covas.
Úmidos os lábios
dentes afiados
mordem de mansinho
suas tetas
novas.
Grito-Gesto unidos
numa aliança
feita de esperança
de um só mundo
seu!
Corpo incendiado
lança-se ao corpo
pronto a receber
outro corpo,
meu!
Enrosca-se a vida
em apocalipse
com uma sinfonia
que produz o
Gênesis.
Título: Éxodo, Óleo s/ tela, 100 x 80 cm, 2001
Titulo: El ocaso de la víspera,
Óleo s/ tela, 120 x 100, 2001.
QUERO ESCREVER O BORRÃO VERMELHO DE
SANGUE
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.
Clarice Lispector, Ucrânia/Brasil (1925-1977)
Título: Vestigios, Óleo s/
tela, 80 x 140 cm., 2001.
No dia..
No dia em que no ventre concebido
Foi meu senhor, viu-se dos céus eleito
Para que fosse entre os mortais perfeito
E de virtudes mil ficasse ungido,
Saturno junto aos sábios fê-lo aceito
E jovem, dos mais nobres preferido;
Marte na liça o fez mais aguerrido
E Febode elegância encheu-lhe o peito.
Beleza deu-lhe Vênus, e eloqüente
O fez Mercúrio; mas a Lua, ao vê-lo,
Frieza ao coração deu de presente.
Cada qual desses dons mais forte apelo
Faz à chama que em mim crepita ardente;
Menos aquele só, que o fez de gelo
Gaspara Stampa Itália (1524-1554).Traducão de
Sergio Duarte. Três mulheres apaixonadas, Companhia das Letras, 1999
-SP, Brasil
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