Antonio Olinto
Schmidt, o brasileiro
Toda biografia é de certo modo
romanceada. A autobiografia também. Quem escreve e descreve o que
foi vida de outrem insere sempre no seu trabalho sua própria
experiência de vida e/ou sua interpretação dos acontecimentos
narrados.
O mesmo acontece, e até em maior grau,
com a autobiografia, em que o autor, como dono de sua própria vida,
pode sentir-se à vontade para interpretar as ações de que haja
participado. É, assim, natural que Letícia May e Euda Alvim
classifiquem o livro de ambas - "Quem contará as pequenas
histórias?" - como "biografia romanceada de Augusto Frederico
Schmidt".
Diga-se, antes de tudo, que se trata
de um livro necessário. Não só como poeta - embora principalmente
como poeta - mas também como empresário e homem público,
precisávamos de um levantamento de sua vida, de sua obra e de sua
participação na política do País. O brasileiro Augusto Frederico
Schmidt começou a aparecer como editor, como integrante de um
movimento que revelava nomes até então desconhecidos.
Antes, nos anos 20, participaria do
ambiente revolucionário em que se pregavam mudanças, inclusive a que
agitava os católicos (Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima),
quando Schmidt participou do grupo de Alceu. Após a morte de
Jackson, passou a dirigir a Livraria Católica.
Em 1930, Schmidt começaria a fazer
história. Fundou a Schmidt Editora e lançou a nova literatura
brasileira. Sem exagero. Publicou o primeiro livro de Jorge Amado,
"O país do Carnaval", publicou "A mulher que fugiu de Gomorra", de
José Geraldo Vieira, e "João Miguel", de Rachel de Queiroz. Schmidt
lançou, de sua pequena editora, mais os seguintes livros: "Caetés",
de Graciliano Ramos; "Casa grande senzala", Gilberto Freyre; "Oscarina",
de Marques Rebelo; "Maquiavel e o Brasil", de Otávio de Faria;
"Maleita", de Lúcio Cardoso; "Caminho para a distância", de Vinicius
de Moraes.
Como se vê, poucas pessoas
participaram tão ativamente da nova literatura brasileira da época.
Contudo, era Schmidt atacado pela "pequenez" de seus lançamentos,
houve os que disseram e escreveram que ele estava lançando gente sem
o menor valor. Diante da lista de livros por ele editados e aqui
citados, sabemos hoje que o então mais ou menos desconhecido Schmidt
(estava com 30 e poucos anos) empurrava o Brasil para a frente com
suas edições.
Há que falar de Augusto Frederico
Schmidt como poeta. Que o foi, e dos melhores de seu tempo. Seu
poema de Natal é citado como típico entre seus versos: "Caminharei
em busca do presépio, Senhor./ Não haverá nenhuma estrela/ Para
guiar meus passos.// Mas estarei tão atrasado,/ O tempo terá
caminhado tão na minha frente." "Muitos rirão de mim sabendo que te
procuro.
E eis um poema de amor de Schmidt:
"Meu amor, a noite cai aos poucos/ Sobre mim, aos poucos sobre mim /
E é como terra/ Sobre corpo de morto". O ensaísta belga Karel
Jonkheere diz que os poetas flamengos desconfiam do grito, da falta
da medida. Jamais se exaltam. O brasileiro Augusto Frederico
Schmidt, ao contrário, aos gritos e na maior falta de medida, como
que desnuda o nervo de sua canção e de seu ritmo.
Daí a força de sua poesia e o tom
doloroso de seus poemas de amor. Seus versos se alongam,
estabanados, turbadamente límpidos, no instável domínio do grito que
não se contém. É, a sua, uma poesia inconsutilmente ligada ao
pensamento brasileiro. Poesia, por isto, permanente, enquanto houver
memória da cultura dos que vivem em nossa terra.
O livro fala também dos outros e
múltiplos Schmidts: o empresário, o homem de ação, o político, o
criador dos supermercados brasileiros (também nisto ele abriu
caminho). No governo Juscelino, Schmidt criou a Operação
Pan-Americana (OPA), que tentava ampliar a influência brasileira no
Continente. Participou de inúmeras iniciativas, mas não deixava de
ser o poeta. Numa reunião de negócios em 1953, quando o assunto
ficou insuportavelmente sem a menor saída, levantou-se e gritou:
"Pára tudo! Isso é muito enervante! Vamos ler uma poesia."
Uma das páginas mais fortes do livro
de Letícia Mey e Euda Alvim é a que descreve a visita feita por
Schmidt ao presidente Getúlio Vargas em 23 de agosto de 1954,
véspera do suicídio. O texto é de Schmidt: "A 23 de agosto de 1954,
compareci eu ao Palácio do Catete afim de entregar ao presidente
Vargas o relatório da Missão Klein & Saks sobre o problema da
alimentação no Brasil. Conversamos também sobre a situação, todos
contra Getúlio, o que poderia acontecer?
Palavras de Getúlio: "Sei que a
situação é grave, mas mesmo assim estou tranqüilo. Eu sei o que devo
fazer e para onde vou e é por isto que lhe digo que estou tranqüilo.
Vou numa só direção e para a frente. Quando, enfim, decidimos e
sabemos para onde vamos e o que devemos fazer, isso nos
tranqüiliza."
Schmidt deixou registrado, em diário:
"Reservara-me o destino vê-lo, observá-lo, sentir o seu drama no
momento em que sua estrela extraordinária se estava apagando..." A
tese do Brasil Grande, que Schmidt lançou e defendeu a vida inteira,
fixou-a ele numa "Declaração Pan-Americana" que é, na realidade, um
poema em 64 linhas (na verdade, 64 versos). Schmidt morreu em 1965.
Sua poesia continua.
QUEM CONTARÁ AS PEQUENAS HISTÓRIAS?,
de Letícia Mey e Euda Alvim, é um livro que traz a este milênio uma
figura de brasileiro que lutou para que o País fosse melhor e maior.
Vale a pena ser lido pelo muito que revela daquele tempo, em cenas
que podem ser tidas também como deste nosso tempo. Lançamento da
Editora Globo, preparação de Eugênio Vinci de Moraes, revisão de
Ricardo Jensen de Oliveira, Valquiria Della Pozza, Ana Maria Barbosa
e Ronaldo Polito. Capa do Estúdio Darshan, foto de capa: Praia de
Ipanema (Peter Timmermans/Getty Images), foto da contracapa: Augusto
Frederico Schmidt (Editora Três).
Leia a obra de Augusto Frederico Schmidt
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