Antonio Olinto
Érico Veríssimo: 100 anos
(Rio de Janeiro, 25 de setembro de
2005)
Nascido em 1905, foi nos anos 30 do
século passado que o nome de Érico Veríssimo começou a figurar como
sinônimo de literatura brasileira. Depois de romances que, no Brasil
e no exterior, revelaram nele um grande talento de narrador -
inclusive através do contraponto de "Caminhos cruzados" e do traço
romântico de "Olhai os lírios do campos" - foi ele de tal maneira se
assenhorando, gradualmente, de todos os segredos inerentes à arte de
Cervantes, que se preparou para chegar, em "O tempo e o vento", à
posição de grande romancista de um tempo.
Nele, mais do que o drama de pessoas,
mais do que a história de uma família, o que narra é a tragédia da
formação de uma terra, de uma cidade, um país, num levantamento da
permanência de um espírito capaz de criar raízes e superar vidas
individuais. Nele se concentram 200 anos da história do Brasil (de
1745 a 1945), em que, aliada à utilidade ou inutilidade das coisas,
o autor se fixa na grandeza de existir e de agir.
Dos cinco volumes de "O tempo e o
vento", os três últimos, chamados "O arquipélago", narram
acontecimentos que vão da revolução de 1923 até o fim do Estado
Novo, em 1945. Tenho insistido na peculariedade de acontecimentos
recentes caberem com mais facilidade na ficção do que na história
propriamente dita. Independente de alentados livros, baseados na
realidade, sobre Getúlio Vargas, é nos romances que podemos vê-lo
sob aspectos novos, por exemplo em tão diferentes entre si como "A
lua caiu", de Benedito Valladares, e "O arquipélago", de Érico
Veríssimo.
A razão para isto pode ser clara.
Falta-nos serenidade para a história do quase atual, que muitos de
nós acompanhamos em nosso tempo de vida. Na ficção, ficamos à
vontade em face de opiniões que personagens, inventados pelo
narrador, externam a respeito de Getúlio, Oswaldo Aranha, Bernardes,
Washington Luís, porque o personagem assume, no romance, um caráter
de vida que o torna isento diante de pessoas de verdade. O
personagem fictício pode conhecer a verdade da ficção.
A revolução assisista de 1923 é motivo
para algumas das melhores páginas de "O tempo e o vento". A força
das descrições de Homero situavam-se às vezes em pormenores de
completo realismo, principalmente nas cenas de guerra. Como no
trecho em que o Poeta, depois de afirmar que um guerreiro tivera uma
espada enterrada no ventre, conta que ele caminhou segurando os
próprios intestinos a fim de que não caíssem. Algumas descrições de
"O arquipélago" são assim.
Toda a narração do movimento
revolucionário, em que o velho Licurgo, Rodrigo e Toríbio percorrem
o interior do Rio Grande, é de extraordinário vigor, como na do
ataque a Santa Fé, com os detalhes de gente que morre desta ou
daquela maneira, sob um cavalo, atravessada de tiros, parada ou numa
corrida.
A Coluna Prestes, de que Toríbio
participa, revela o método ficcional de Érico Veríssimo da melhor
maneira possível. Mostrando uma caminhada que percorrera todo o
Brasil e de movimento que antecederam a subida dos gaúchos até o Rio
de Janeiro, analisando a revolução de 32, o levante comunista de 37
e a presença de Rodrigo e sua família nos 15 anos da hegemonia
getuliana no País, nem por um momento se afasta o romancista de
Santa Fé. É de lá que tudo surge. O ponto de partida de toda a
narrativa é a pequena cidade de Santa Fé. A Coluna Prestes não
entra, assim, diretamente, no romance, mas faz parte das tranqüilas
rememorações de Toríbio, em seu regresso.
A Constituição de 34, o golpe de 10 de
novembro, a entrada do Brasil na guerra, o 29 de outubro de 1945,
quando Getúlio foi retirado do poder, a campanha presidencial de
então, com Dutra, o Brigadeiro e Fiúza de candidatos, tudo aparece
no livro. Na medida em que os Cambarás melhoram de vida e sobem na
política e Santa Fé se civiliza, os marcos do século XX entram no
romance. Os primeiros automóveis começam a substituir os carros
puxados a cavalos. Surgem os primeiros integralistas na cidade, em
geral descendentes de alemães, e um comunista, Aarão Stein, um dos
grandes personagens do romance. A influência do cinema começa a se
mostrar em tudo.
Os tempos de Tom Mix, Nita Naldi,
Pearl White, Rodolfo Valentino, o de John Gilbert, modificam os
hábitos dos santafezenses. Organizam-se clubes para homenagear
Valentino e, quando de sua morte, moças e solteironas mandam
celebrar missas por alma do artista. Isto aconteceu em todo o
Brasil, não só em Santa Fé, mas em Ubá, MG; em Jaú, SP; em Itabuna,
BA; em São Luís, Belém e Manaus. O fonógrafo, o gramofone, o rádio,
tudo entra a quebrar solidões ou a acentuá-las.
Quase na última página do romance, às
nove horas da noite do Ano Bom, um grupo de moças promove uma
reunião no palacete dos Teixeira para eleger a diretoria do "Clube
das Fãs de Frank Sinatra", que devia tomar posse "ao raiar
esperançoso de 1946". A partir dessa continuação - que leva à frente
a agremiação das viúvas de Valentino e das admiradoras de John
Gilbert - faz Érico Veríssimo um resumo de sua gente, com seus
temores e esperanças diante de um novo ano.
Romance, no seu melhor sentido, é isso
mesmo que Veríssimo cria. Com esta grandeza de perspectiva, esta
nitidez de traços nos personagens, esta violência de cenas, esta
segurança de técnica, este entrelaçamento de realidade com ficção,
esta rude generosidade de concepção e realização literárias.
A obra de Érico foi, durante muitos
anos, lançada pela Globo de Porto Alegre, editora também de Balzac e
Proust completos em português. No momento, a Companhia das Letras é
responsável pela edição de todos os livros de Érico Veríssimo.
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