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Antonio Olinto


 


Do verso como chuva

Tribunal da Imprensa

(Rio de Janeiro, 28 de maio de 2005)

 

 

O poeta Waldemar Dias da Cunha, que em vida publicou um livro apenas e deixou, ao morrer, poemas em número suficiente para mais oito volumes, representou e representa a adoção da poesia como forma de conhecimento. Conhecimento pela encantação, conhecimento pela repetição, pelo transe, conhecimento direto, feito bala de revólver que penetra sem cerimônia na realidade, o que transforma o ato de fazer poema num ato de purgação e de curtição. No fundo, um ato religioso.

Para atravessar os muros de cimento da lógica bem-comportada, precisa o poeta, aperfeiçoar-se numa técnica, mas tê-la nova e renovadora. Da poesia como forma de conhecimento e que se têm aproximado os grandes poetas em transe, um Arnaut Daniel, um Villon, um Blake, um Keats, um Shelley, um Baudelaire, um Rimbaud, um Manley Hopkins, um Francis Thompson, um Rilke, em Portugal um Fernando Pessoa, no Brasil, um Jorge de Lima.

Neles, a necessidade vital de achar uma técnica nova e revolucionaria é maior ainda, bem maior, do que no poeta sem transe, no poeta mais lógico e racional. Por isto, em Waldemar Dias da Cunha, as palavras se erguem como partes de um caminho e atravessam portas desconhecidas, na certeza de que só a insistência comove a sombra. Usa para isto palavras e conjuntos de palavras como "a face oculta de minha face", "a magia desta noite no mar de sargaços", "este corvo se integra no meu corpo", em versos como estes:

"E dentro de meu corpo seu pouso de ave/ sorve do meu passado outro sentido/ na força de sua garra quando se esgarça."

Para Waldemar Dias da Cunha o poema está no som que se pronuncia, está na fala.

"Esses reis estão em minha fala/dentro das imagens/de rosas e raças".

Ou, em outro poema:

"Esses reis fundem raios/ jamais decifrados nos meus lábios - são círculos divinos/muito além do tempo/ na transparência/ da fala".

Esta série de palavras e versos, de sons que podem ser lidos sem sentidos, ouvidos sem significação, porque há neles uma beleza também sônica - tudo isto nos mostra um poeta que não se detém diante do bom mocismo da forma.

Há, nele, um paradoxo que finda por não o ser (aliás, todo verdadeiro paradoxo e paradoxalmente, a apenas, aparência, porque no fundo e se bem analisado, o que parecia paradoxo acaba sendo precisamente o não paradoxo). Em Waldemar, o paradoxo seria o de que ele usa a poesia como forma de conhecimento, embora componha poemas que podem ser lidos em voz alta sem que se preste necessariamente a atenção naquilo que eles querem dizer.

Das muitas definições conhecidas de poesia, uma há que vai ao osso. É da escritora dinamarquesa lsak Dinesen em seu livro "Out of África", ou melhor, não ê da escritora, mas de um menino africano, da tribo quicuia, que era seu empregado.

Solitária no Quênia, onde dirigia uma fazenda de café, Isak Dinesen (cujo nome verdadeiro era Baronesa von Blixen) costumava ler a noite em voz alta poemas em inglês, de Byron, Shelley, Pope e trechos de Shakespeare.

O menino, que só falava quicuio, ficava num canto, quieto, olhando, ouvindo, imóvel, todo atenção. Mas, durante um período, a escritora teve hóspedes, em seguida fez um pequena viagem a Zamzibar, quando voltou, o menino lá se achava à espera. Como a escritora parecia que não ia retomar suas declarações em voz alta, o menino pediu: "Fala como chuva outra vez, fala!".

O barulho da chuva caindo sobre a terra seca do Quênia, sobre os sobrados de madeira e de zinco, numa espécie de ritmo da natureza, pode ligar-se à cadência de um poema dito em voz alta. O mesmo acontecera com a poesia de excelentes feitores de poemas de qualquer parte do mundo. Nessa categoria incluo a poesia de Waldemar Dias da Cunha, não só neste "O rito da fala", mas também nos demais volumes do poeta que não foram ainda editados.

Se não prestarmos a atenção no evidente significado de seus versos, ou concomitante com a atenção, mesmo assim eles fluirão como chuva. Chuva de lava e fogo às vezes, é verdade, que o poeta precisava romper camadas cada vez mais espessas e duras de convenções poéticas, vocabulares ou não, e só lava e fogo conseguem fazer o trabalho que tem de ser feito.

Aí, junto com as palavras, o grito visual, o grito gráfico, a disposição das letras e das palavras no espaço, e o branco da página, tudo contribui para formar o contexto em que o poeta se insere, contexto que surge como terra inventada para nela pousar um novo conhecimento. O conselho de um exegeta literário inglês pode exprimir com precisão o que vem a ser o trabalho do escritor - poeta, romancista, contista ou simples aspirante a dominador das palavras. O conselho é este: "Invente uma floresta. Em seguida, explore-a."

Afirmei ser Waldemar poeta que-busca-pelo-ser e nessa busca - permanente, incessante, incansável - que o ser da palavra é posto frente a frente com o ser das coisas e das gentes. As outras recoltas de versos que o poeta deixou poderão ser publicadas ainda. Ficou-nos esta que, na sua indomada geometria, consegue também fluir como chuva.


"O rito da fala", de Waldemar Dias da Cunha, saiu com a marca da Seta Editora. Capa e diagramação de Wladimir Dias Pino. Orelha de David Mussa.
 



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23/01/2006