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Astrid Cabral


Discurso de posse no P.E.N Clube do Brasil

(Parte II)

 

O fenomenólogo Enzo Paci, em ensaio sobre a obra de Ungaretti, escreveu que, nela, se buscam as fundações da vida, isto é, o significado que lhes deu origem. E um fundamento que a fenomenologia designa de precategorial aflora tanto na palavra de Ungaretti como na de Astrid:

Que ausência houve
antes da minha presença ?


indaga ela, ao conjugar com modulação pessoalíssima um tempo onde “ante-somos todos”.
 

Questiona Ungaretti, em Terra premessa:

Tantas vezes me pergunto
como eras , eu era, antes.
Vagaremos, talvez, vítimas do sono?


A pergunta antiqüíssima vincula estes dois poetas a toda a família do humano, e aborda a esfinge conatural da morte com a mesma ânsia de explicação para o amor e o sangue da vida.

Talvez só a palavra poética possa mediar a distância entre o existir e a extinção .(...) “De nós o essencial a palavra ignora”, diz Astrid, contudo é ainda ela que “engravida de vivência.”

Nem a arcaica mulher a forjar o fogo dos sexos vivos com o seu companheiro, nem a materna criatura a “quem enriquece a condição de adubo”, conseguem esquivar-se de um esvair-se à deriva:

Desmancham-se longos novelos
e o vento que carrega as estações
é o mesmo arrastando-me os cabelos.

 

A mesma visão aparece na série Fotos:

A moça,eterna, colhe frutos
que jamais apodrecerão.
A mão alçada em gesto
vitalício de estátua.

 

Passamos com o mundo dos fenômenos, com eles não escapamos “ao selvagem repasto do tempo.”

Neste livro, Ponto de cruz, como em toda a sua obra, Astrid Cabral não se limita à indagação de um ante-sangue, de uma pré-categoria do ser. Conforme já foi dito aqui, ela minera também sobre o material mesmo da vida com uma práxis de feroz esquadrinhamento. É mestra em recortar coloquialmente fragmentos do cotidiano, conferindo então ao discurso prosaico uma intencional forte carga de significado. Procede a um metódico desmonte da ótica lírica, e mostra no indivíduo e seus entornos o reflexo de uma sociedade em crise.

“Hora de encarar o oco” diz ela, “e cuspir no abismo.”: a ameaçadora natureza-morta do café da manhã, o supermercado, o bebê de proveta, os acidulantes e corantes da lanchonete envenenada, o vampirismo com que bebemos café e vemos televisão, “entre paredes blindadas de covarde fortaleza”, constituem a um tempo veemente e enxuta denúncia do consumismo e de alienação da vida coletiva.

A mineração do tempo e da morte, com o anverso da vida e do eros, imprimirá à poesia de Astrid, como veremos ainda mais claramente adiante, uma nítida dobra metafísica.

Em Torna-viagem, de 1981, Ivan Junqueira, a partir da epígrafe de Bishr Fares - What remains is the secret of what is gone – enfatiza a questão do tempo, do segredo do que se foi, e seus vestígios.

(...) Temos que o “segredo” mais secreto desse Torna-viagem, escreve Ivan, reside muito especialmente na circunstância de que a autora haja aqui invertido os pólos de seu relato, i.e, todo o incidentalismo geográfico – vale dizer, espacial – que o informa jamais está serviço do complexo geonímico, por mais pitoresco que ele seja, mas sim do tempo, de um tempo ancestral que, capturado em seu trajeto subterrâneo, emerge das ruínas e resgata do imobilismo estatuário. Assim em Tiro, onde

        .....o mar é morno
   e entre conchas e ondas
   moram mates mosaicos
   de um tempo morto.

 

Esse mesmo mar, pretérito e póstero à era cristã, é

                 .....eterno:
    fenício e romano
    mas também anônimo
    de um tempo antes
    e depois de Cristo
    aquém e além do homem
    e seus impérios.

 

Em outras palavras, prossegue Ivan, “um mar que se confunde com a própria noção de um pantempo, de um fluxo eterno, de uma pulsação existencial que é antes a do tempo agostiniano e kirkegardiano do que o da durée psicológica tal como a pilhamos em Bergson e Proust. Já se vê que perduram aqui os pressupostos daquela intuitiva mentação filosófica que embasa muito dos poemas de Ponto de cruz. Essa cunha especulativa sobre a caducidade e contingência do ser, - (...) a todo instante se insinua nos versos de Torna-viagem (...)”.

Quando enfim adivinharemos
o todo de que somos fragmento ?

 

Visgo da terra, que inicialmente integrou Ponto de cruz, foi revisto e reeditado em 1986. “Celebra”, diz-nos Alencar e Silva na apresentação, “a memória dos seres e das coisas que povoaram a paisagem do que fora a Manaus da adolescência da autora, (...) ali poderemos observar uma das faces mais constantes de sua poesia : a das evocações (...).”



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John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Fernando Py