Horácio de
Almeida
As Razões da
Angústia de Augusto dos Anjos
Muito se tem escrito sobre Augusto dos Anjos. A
crítica literária já lhe realçou a obra em sua forma estética, nos
moldes da velha orientação impressionista, que é de todas a menos
operante. A crítica genética já lhe esvurmou a alma em busca de uma
explicação para as suas anomalias psíquicas. Não me parece, contudo,
esteja o poeta revelado por inteiro em todos os reflexos de sua
alma. Nalgum ponto, senão em mais de um, é possível que se tenha
conservado à distância da crítica literária, inatingível também ao
bisturi dos que tentam dissecar o interior humano, no que há de mais
sutil e imponderável.
Difícil tarefa é essa de querer conhecer a alma dos nossos
semelhantes, quando, na verdade, não conhecemos sequer a nossa.
Deste modo, já que não podemos penetrar com tanta intimidade o mundo
subliminal, paremos reverentes à porta do templo, numa atitude de
respeito e reflexão, desejosos de, ao menos, poder conhecer a árvore
pelo fruto. Em Augusto dos Anjos não há que procurar o autor fora de
sua obra, isto é, o eu fora do Eu. O autor revela o homem e ambos
estão por inteiro em sua obra. Sua personalidade singular ali se
projeta, o que de alguma forma facilita o trabalho de interpretação.
Por conseguinte, não vejo documento mais preciso para conhecer o
autor que a sua própria obra, sobretudo pela sinceridade com que
nela está fotografado.
Interpretar cada verso isoladamente não é tarefa que se enquadre no
plano deste trabalho. Fazer o elogio do poeta, realçar a força de
sua inteligências manifestada na originalidade do estilo e na tônica
de um materialismo filosófico, que o não convencia de todo, já
outros o fizeram com maior ou menor adequação. Só o estudo do
conjunto poderá explicar os matizes de um pensamento que tinha por
norma ocultar-se em metáforas, quando não irrompia ovante para logo
se perder na dúvida. É preciso, pois, acompanhá-lo na trajetória
desse pensamento tumultuário, em suas mensagens de angústia.
A crítica metodológica do autor do Eu e Outras Poesias devia
constituir o alvo desta escalada, não escapasse um pouco da minha
acuidade intelectual. Apenas como contribuição a essa crítica de
sentido mais amplo, compreendendo inclusive a estilística,
proponho-me a interpretá-lo a partir de um ângulo até agora pouco
estudado — a inquietação de sua personalidade. Nessa tentativa de
interpretação psicológica, penso poder levantar a ponta da cortina
para melhor compreensão das suas mensagens de angústia. Toda vez que
o poeta se concentrava na dor que mais o cruciava, na chaga viva de
sua consciência, entrava em crise espiritual, e era aí, nesse estado
de superexcitação, que forjava em versos candentes a produção que
depois levava ao papel.
Convenha-se antes de tudo que Augusto não foi um homem normal, nos
moldes em que se ajusta a passividade compreensiva do comum dos
homens. Teria sido um neurótico para uns, um psicastênico para
outros, segundo os síndromes patológicos revelados. Seja como for,
tenho por desnecessário entrar aqui nesse campo de especulação
psiquiátrica, repetindo conceitos, por vezes controvertidos, sobre o
seu caso clínico, como é do gosto da crítica científica, de fundo
genético, que procura dissecar a alma para ajustá-la a quadros
nosológicos já catalogados e, no final, reduzir tudo a categorismo,
que nada explica. Não há que imputar a Augusto a pecha de louco, mas
vale a pena ser louco quando se deixa por tal motivo um nome à
admiração da posteridade.
Juízo é coisa que todos julgam ter, mas da mediocridade ajuizada que
enche de presença os quadros humanos nunca ninguém viu sair obra
duradoura.
Augusto não era um homem igual aos outros, aos que se acomodam, aos
que se rebaixam para subir, enfim, aos que perseguem riquezas ou
fazem do amor o cio bestial. A causa primária de sua desordem
nervosa já é assunto conhecido. A mãe do poeta, quando este ainda em
estado de gestação, sofreu uma comoção das mais fortes, causada pela
perda imprevista de um irmão querido, estudante de medicina, de quem
o sobrinho nascituro herdaria o nome e as conseqüências do choque. O
traumatismo moral que tão fundamente abalou a mãe, perturbou-a por
muito tempo, além mesmo da gravidez. Ao que se sabe, ficou
desajustada da mente pelo resto da vida, com preocupações de
grandeza e fidalguia. Obviamente, tal fato não podia deixar de
refletir-se no filho em gestação, com distúrbios os mais evidentes
no seu sistema nervoso.
Explica-se deste modo, pelo drama que padeceu na vida intra-uterina,
o refinamento de suas faculdades morais, caracterizado por uma
sensibilidade doentia, tiques nervosos, sestros, fobias, enfim, todo
o seu temperamento emocional. Tanto isso parece verdade que seus
irmãos, igualmente inteligentes, jamais denotaram qualquer grau de
semelhança ou relação de afinidade com a alma bizarra do poeta. Nem
os que nasceram antes, nem os que vieram depois. De seu pai também
não herdou as características psíquicas que o marcaram a fundo. Pai
e irmãos passavam por normais, só ele dava a impressão de um
desajustado, como se houvesse saído do limbo para cair na labareda.
Isto posto, assim como está provada a hereditariedade dos caracteres
biológicos, não há negar também a dos psicológicos, sobretudo quando
provém da linha materna, nas modalidades do caráter, da
inteligência, do sentimento.
Por seu parentesco espiritual, tem sido Augusto comparado a Leopardi,
Nietzche, Byron, Oscar Wilde e outros loucos geniais ou degenerados
superiores, na classificação dos antropologistas do século passado,
a partir de Lombroso. E por curiosa coincidência, tais modelos de
comparação passaram também pelas mesmas crises intra-uterinas que
afetaram a sensibilidade do autor do Eu. Assim como a mãe de
Augusto, a de Leopardi, a de Nietzche, a de Byron, a de Wilde, por
motivos vários, sofreram perturbações muito fortes na época de
gestação daqueles notáveis supranormais. Todas se angustiaram por
acontecimentos imprevistos, choques emocionais, menos a de Byron,
que já era constitucionalmente quase louca.
Sem o concurso da causa primária, em relação com a
casuística, não é possível interpretar a obra de um escritor,
sobretudo quando tal obra reflete da primeira à última página a alma
do autor. Não se trata aqui de fazer coincidir a personalidade
criadora de Augusto com a sua personalidade psicológica, porquanto
as duas já se apresentam fundidas sem a química da ajuda biográfica.
Augusto nasceu e se criou no engenho Pau d’Arco, na várzea do
Paraíba. A paisagem bucólica da várzea, a quietude da vida na
província, a sua própria vida sem problemas, estavam a fazer dele um
lírico, inspirado na natureza e no amor, não fossem os conflitos
espirituais que trazia do berço, agravados por outros que irromperam
na idade perigosa, os quais o acompanhariam, como uma fatalidade,
até o túmulo. Com seu pai, dr. Alexandre dos Anjos, aprendeu a ler
e, sem afastar-se do lar, guiado apenas pela ilustração paterna,
entrou a estudar as matérias do curso de humanidades. Deste modo,
quando apareceu para os primeiros exames no velho Liceu Paraibano,
no último ano do século passado, ao invés de um estudante bisonho,
saído da roça, foi logo chamando a atenção de mestres e colegas
pelos conhecimentos que demonstrava. A par disso, era um
introvertido, em contraste com a mocidade e a inteligência, segundo
os primeiros retratos que temos dele.
Órris Soares confessa que só conseguiu passar no exame de latim
porque se valeu do colega que o ajudou a destrinchar Horácio. A
amizade que logo nasceu da admiração foi regada mais tarde com
lágrimas de saudade no elogio que fez do poeta, cinco anos após a
sua morte, em prefácio à segunda edição do Eu, que lançou em 1919,
com o título Eu e Outras Poesias, reunindo a esse volume a produção
posterior à edição princeps de 1912.
Quando Órris o conheceu nos idos de 1900, viu nele um tipo
excêntrico de pássaro molhado. Era de fato um excêntrico, mas não
era somente isso. Esse adolescente sorumbático já poetava desde os
sete anos de idade. Nada de admirar, visto ter nascido poeta. O que
há de singular nele não é, a rigor, o seu tipo de pássaro molhado, é
a vocação que já revelava para o infortúnio. O rapazinho de 16 anos,
cuja vida corria sem obstáculos, confessava-se já então “afeito às
mágoas e ao tormento”, conforme disse num soneto que não consta, do
Eu, publicado no Almanaque do Estado da Paraíba, em 1900. E para
completar o esboço do auto-retrato acrescentava: “Eu hoje só vivo
para a descrença”. Tão na flor da juventude e já se dizia um
descrente. Logo mais, em Monólogos de uma Sombra, definia mais
claramente esse pensamento “como uma vocação para a Desgraça e um
tropismo ancestral para o infortúnio”.
Muito cedo, para maior complicação de sua personalidade, começou a
envenenar-se com o materialismo filosófico, haurido no transformismo
de Haeckel e no evolucionismo de Spencer. Tais idéias materialistas
eram a coqueluche que o século passado legara ao presente. Vinha-se
de uma época em que a erudição nacional destilava-se da cultura
européia, sofregamente bebida nas academias, para aprazimento
intelectual das elites. Os conhecimentos filosóficos gozavam
reputação de primeira plana, de vez que a literatura indígena longe
estava de adquirir a consciência de sua função, como expressão do
pensamento nacional. A doutrina positivista foi a primeira a ganhar
terreno. Já em 1875, Sílvio Romero, numa defesa de tese na Faculdade
de Direito do Recife, bradava para o conceituado mestre que o argüía,
Coelho Rodrigues, que a metaflsica estava morta. Falava nele o
positivista que, logo mais, evolvia para o evolucionismo de Speneer.
Ocioso será afirmar que a metafísica ortodoxa, em sua linha tomista,
sofreu duros reveses, mas no final de contas resistiu ao choque de
uma crença que condenava até a indagação anatômica e a astronomia
sideral, por ver em tudo isso hipóteses visionárias.
Era a época da evolução do pensamento brasileiro, que se irradiava
do Recife ao sopro tempestuoso de Tobias Barreto e seus ardorosos
discípulos. Martins Júnior, adepto do positivismo, a exemplo de
Victor Hugo, nas concepções filosóficas de seus poemas, introduziu
entre nós a poesia científica, que ficou sem seguidores e acabou
relegada pelo próprio poeta, Aliás, desde Haller, um século antes de
Hugo, já era moda entre os renovadores o lançamento de poemas
filosóficos.
Foi nesse ambiente de agitação doutrinária, já no seu ocaso, quando
ainda pontificava na Faculdade de Direito do Recife um devoto do
fenomenismo agnóstico, Laurindo Leão, que Augusto dos Anjos penetrou
os umbrais da tradicional escola, de onde saiu formado em 1907. Ao
que parece, a ciência do Direito interessou menos ao estudante
taciturno que as especulações filosóficas do materialismo
naturalista. Por todo o Nordeste, irradiação natural da Escola do
Recife discutia-se o problema do ser e do não-ser, desde o monismo
de Haeckel ao evolucionismo de Spencer. Toda a preocupação era
combater o pensamento teológico, como uma velharia do século. Desses
embates, a velha Escolástica, que só cuidava de preocupações
teológicas, suportou a mais dura crise, mas a metafísica resistiu ao
impacto das idéias novas. Comte passou. Os filósofos da natureza
foram ficando para trás. Darwin e Haeckel podem ser contestados
ainda hoje como panteístas pelos que seguem ao pé da letra a
história bíblica da Criação, mas a origem simiesca do homem, proceda
ou não proceda, não exclui absolutamente a hipótese da existência da
alma, que, como toda substância animada, está sujeita também ao
processo da evolução. O materialismo dialético dos nossos dias
retrocede, enquanto a metafísica do verdadeiro cristianismo continua
palpitando na alma de todos os povos, conciliada, aliás, com a
evolução da matéria e do espírito.
Na Paraíba, os intelectuais mais dotados, já lidos nos filósofos da
natureza, formavam rodas para discutir o sexo dos anjos, ou mesmo,
se o diabo é tão feio como o pintam. Os menos letrados, os que ainda
não tinham qualquer convicção filosófica, faziam praça de livres
pensadores. O beatério era o último reduto do catolicismo. Até no
Piauí, segundo o depoimento de Cristino Castelo Branco, em seu livro
Frases e Notas, firmava-se o conceito, aliás bem pouco lisonjeiro,
de que católico era sinônimo de burro.
Nas rodas que se faziam na Paraíba, Augusto pouco falava. Esquisitão
que era, ficava a escutar os companheiros, o pensamento ao longe, o
queixo apoiado no cabo do guarda-chuva. Um que foi seu colega de
estudos e morou com ele na mesma pensão em Recife, José Américo de
Almeida, disse-me certa vez que só depois de formado foi que veio a
conhecê-lo direito. Ainda na fase preparatória de estudos, o
rapazelho sorumbático deu asas ao pensamento nos conflitos entre a
consciência e o sentimento, isto é, entre o mundo da forma e o mundo
da razão, como se desconhecesse ou procurasse desconhecer a parte
subjectiva de si mesmo. Embora educado na religião católica,
emancipou-se dela intelectualmente, influenciado pelos naturalistas
e evolucionistas do século. A matéria em sua essência
afigurava-se-lhe tão misteriosa como a força, confundidas ambas na
unidade cósmica. Desta forma, em sua, dupla feição de filósofo e de
poeta, tentou o milagre de reduzir a um campo único a ciência e a
arte. Realizou de fato esse milagre em estrofações de profunda força
conceptiva e de cunho tão pessoal que toda a sua produção traz a
marca do autor — a eurritmia musicada dos decassílabos. Imitá-lo
seria obra grosseira de pastiche. Quem já o leu uma vez, como bem
observa Cavalcanti Proença, facilmente o identifica, ouvindo a
citação de dois versos seus tomados ao acaso.
Aos 17 anos, naquela mesma idade em que, trinta anos antes, Rimbaud
escrevera Bateau ivre, Augusto compôs Monólogos de uma Sombra, poema
que abre o Eu e Outras Poesias. Não sei se Augusto leu alguma vez
Rimbaud, mas há casos em que a vidência poética de um é manifesta no
outro. Em Monólogos de uma Sombra é a Sombra que fala e a Sombra é o
eu do poeta, Em Bateau ivre quem fala é o barco ébrio e conta a sua
derrota, que é a derrota da humanidade. Não há, todavia, nas duas
composições uma coincidência de temas, mas há paralelismo de
símbolos e de força criadora. Vejamos, como amostra, as duas
primeiras estrofes dos Monólogos:
Sou uma Sombra. Venho de
outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas,
E a morbidez dos seres ilusórios!
E por aí vai, numa caminhada de 31 estâncias, 186 versos, e—crente
no tema, terso na linguagem, incomparável na forma musicada. O
aspecto conceptual do poema, fundado na unidade cósmica, bem mostra
a preocupação indagativa do poeta de penetrar a coisa em si. É a sua
confissão de f transformista. Por ela vai buscar-se no mundo informe
da vida planetária, na larva que procede do caos telúrico, e vem
vindo como uma monera através de milhões de anos. Nessa ânsia de
penetrar a vida fenomênica das formas, identifica-se na substância
primeva, que passou do reino vegetal para o animal, depois de
infinitas transformações. A partir da monera, chega aos seres mais
complexos, por força das sucessivas mutações da matéria.
Encontra-se, enfim, já diferenciado na mônada, sempre a evoluir em
movimentos rotatórios, até adquirir a forma humana. Integrado na
sociedade, começa então o drama crucial da consciência. Não sofre
apenas a sua dor, mas “a solidariedade subjectiva de todas as
espécies sofredoras”. E assim continua, já desiludido, a ponto de
mostrar seu nojo à natureza humana, ora transfigurado em filósofo
moderno, “esse mineiro doido das origens”, desesperado por não poder
libertar a energia intra-atômica e dominar a lei da mecânica
universal, ora transfigurado em sátiro vilíssimo, a consciência
conspurcada de gozo malsão, o remorso já acordado na caverna escura.
Por fim, sente-se vencido diante do seu martírio e do martírio das
criaturas. Nesse estado d’alma, entrega-se ao sacrifício, chamando a
si, numa espécie de solidariedade subjetiva, o sofrimento de toda a
humanidade.
E eu sinto a
dor de todas essas vidas Em minha vida anônima de larva!
Bem examinada
a questão, temos aí um transformismo metafísico, que faz quase
lembrar a reencarnação. Vemos o poeta a adquirir a forma humana e a
degradar-se em seguida num gozo efêmero de dolorosas conseqüências.
A partir dai, sente o remorso a queimar-lhe a consciência, uma
espécie de fogo que devora e não consome. No fundo, Augusto nunca
deixou de ser um metafísico no sentido religioso da palavra,
assombrado com o não-ser, embora intelectualmente convencido da
teoria racionalista. Por alma, entendia o agregado abstrato da
saudade, posto que falasse às vezes em alma divina e em Deus de amor
e de bondade.
A rigor, a forma para ele era a manifestação passageira da matéria
em seus processos evolutivos, dentro do mundo fenomenal, onde impera
a força que responde pelo movimento ubiqüitário da massa. É a
concepção monística, segundo a qual a matéria e o espírito se
unificam numa só substância, o que vale dizer, no princípio era a
força. A mesma coisa, do ponto de vista metafísico, já havia dito,
dezenove séculos antes, o vidente de Patmos: - No princípio era o
Verbo.
No tocante à
transformação da matéria, tantas vezes exaltada pelo poeta, há que
distinguir um pormenor, que a ele não interessava considerar. Quando
a matéria transmigra acompanhada de um elemento hereditário que
memoniza o instinto da espécie através das gerações, como está dito
em Monólogos de uma Sombra, força será admitir um agente oculto
capaz de operar o fenômeno. E por que não admitir logo a alma?
Se eu disser
que a consciência e a inteligência têm a sua sede no espírito, cuido
não estar proferindo uma heresia. Todo mundo sabe que é pelo ouvido
que se ouve, noção trivialíssima das funções orgânicas. Nada
obstante, conheci um sujeito, natural de minha terra, que tinha os
ouvidos totalmente tapados, as conchas das orelhas rasas como a
palma da mão e, no entanto, ouvia mais que um tísico. Perguntei-lhe
um dia por onde entrava o som, respondeu-me que por todo o casco da
cabeça.
Sabemos que a
consciência tem a sua morada no cérebro, em esconderijos
apropriados, com sótão e porão, segundo querem os frenologistas.
Isso não impede que o espírito seja o agente atuante de tão
prodigiosa membrana, centro de toda a acuidade sensorial. Para os
que negam o espírito há muitos fenômenos que ficam sem explicação. O
próprio Augusto, diante das maravilhas do aparelho encefálico,
manifestou o seu espanto, sem mais compreender que prodígios são
esses da monera. Eis que assim se expressa em Os Doentes:
A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Nem por isso
admite Deus. Mas como é preciso preencher um claro na consciência,
admite o éter, o éter cósmico, que é o Deus materialista de Haeckel.
Essa
saturação filosófica fez-lhe um grande mal. Ao invés de fecundação
do espírito, só serviu para adensar o clima de alucinação. Em sua
alma atormentada as superexcitações provocam visões aterradoras. O
mundo em que vive é um vasto hospital, onde não há lugar para a
alegria, um mundo de fantasmas errantes que não adquiriram ainda a
consciência de sua dor. Os tormentos mortais da alma crescem com a
descrença. O próprio amor, fonte inesgotável de vida, causa-lhe
repugnância. Por toda parte, a matéria putrefata, o lado malsão da
vida, onde imperam sombras, vermes, cadáveres e bocas necrófagas. Em
tudo, uma natureza gasta, servindo de pasto a uma civilização
corrompida. Querendo fugir a essas coisas, procura penetrar o
mistério da substância universal, rasgar do mundo o velário espêsso,
perscrutar a fenomenalidade da energia a erguer da prisão milenária
outras espécies que hão de vir, mas “diante da sombra do mistério
eterno” considera-se vencido, inconformado com a idéia de ser um dia
roído pelos vermes.
Na idade em
que os encantos do mundo douram a existência, Augusto falava como um
homem que já perdeu o ideal da vida, dominado por um ceticismo
acabrunhador. Custa crer que este soneto - Psicologia de um Vencido
- tenha sido escrito por um adolescente para quem o cotidiano devia
correr, na melhor das suposições, sem problemas materiais:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia igual à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme - este operário das ruínas,
Que o sangue podre das carnificinas
Come e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Assombrado
com o futuro, firmava-se no presente a flagelar-se na ciência
racionalista, que era o pior dos remédios para a sua alma inquieta.
No auge da inquietação, faz perguntas ao destino: “Quem sou? Para
onde vou? Qual minha origem?” E nesse duelo da matéria com o
espírito perturba-se, impreca, solta blasfêmias. Exausto da luta,
procura refúgio na inexistência espiritual. Mas há dentro dele
qualquer coisa que o chama à realidade. E para não capitular a esse
apelo, para não desmoronar a fortaleza de suas convicções
filosóficas, tenta ir ao fundo da crença monística, na vã
expectativa de que seu ego o deixe em sossego.
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de bilhões de raças
Que, há muitos anos desapareceram!
Nesta
temática vai longe, gasta imensas energias e enche de culminâncias,
com o poder de sua imaginação, o Eu e Outras Poesias. Mas o diabo
não larga a sua presa. Falava como um homem que parecia ter a
consciência carregada de remorsos. Com efeito, não é demais supor a
existência de algum motivo oculto capaz de levá-lo ao desespero. O
subconsciente o aturde. Grita a sua dor por toda parte e, já cansado
de escutar a natureza, sente o desejo, que ele denomina um sonho
ladrão, de subverter-se no grande todo e fazer da parte abstrata do
universo a sua morada equilibrada e firme. Espera aí encontrar o seu
nirvana. Por um instante, evadido de si mesmo, numa atitude mental
de fuga à realidade, supõe-se integrado na imanência da idéia
soberana. E é nesta manumissão schopenhauriana, como se já tivesse
despido a carcaça da matéria, que exulta triunfante:
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das idéias!
Mas de novo
se encontra em face do nada. O niilismo esvaziava-lhe a alma da
mesma forma que o cientificismo materialista. A julgar pelos seus
gemidos, não há homem que sofra mais. Um inocente metido na prisão
talvez se revoltasse menos que ele no ergástulo da carne. Onde quer
que se refugie, acompanham-no, em suas visões oníricas, monstros
terríveis. Nenhum pintor, diz ele, seria capaz de executar o quadro
de suas aflições, pois que precisaria a tinta de todos os tormentos
do homem.
E de onde vem
essa dor? É possível que tenha a explicá-la um concurso de causas.
Antes de mais nada, leve-se em conta a deformação de uma
sensibilidade que vinha do berço e o predispunha ao desequilíbrio
das sensações entre o eu e o mundo externo. Depois disso, a perda da
crença e, paralelamente, a terrível moléstia que se atribui. Tudo
isso, no todo ou em parte, podia exercer influência no temperamento
sensível do poeta, podia fazer dele um triste, mas não me parece
bastante para torná-lo um desgraçado, como se supunha.
Algo de mais
grave, como se o infortúnio tivesse desabado sobre a sua cabeça,
deve ter acontecido na sua juventude. Há, com efeito, uma desgraça
na vida do poeta. Até agora esse seu sofrimento tem sido considerado
puramente abstrato, desespero virtual e não real. Mas é ele próprio
quem está a falar continuamente numa desgraça, que é o drama mais
doloroso de sua consciência.
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E via em mim, coberto de desgraças
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
Para iludir minha desgraça estudo.
Minha desgraça há de ficar sozinha!
E que desgraça foi essa que o fez ficar assim tão sombrio? Convém
que ele mesmo conte a sua história. A dificuldade está em conhecer o
valor dos símbolos e em seguida decifrar as alegorias. Por suas
próprias palavras, não tenho dúvidas em afirmar que foi o drama do
amor. Trata-se, pois, de uma paixão, cujo desfecho infeliz teria
abalado convulsivamente sua personalidade carente de equilíbrio.
Exatamente aí, no capítulo do amor, é que deve começar o trabalho de
pesquisa para a verdadeira interpretação psicológica do autor.
Por enquanto,
no tocante a esse drama, não vejo maior necessidade de conhecer a
biografia de Augusto dos Anjos para bem interpretar a sua obra.
Mesmo que quisesse recorrer a essa fonte para uma boa exegese
literária, inútil seria qualquer esforço, dada a ausência de
biografia. Mas o seu eu está projetado na obra e nestas condições
não preciso de outro elemento identificador para firmeza do valor
interpretativo que neste trabalho tenho a intenção de destacar.
Por mais que
Augusto negue o amor, não pode ocultar que foi vítima dele. Por mais
que procure fugir ao assunto, sempre se revela. Ele próprio, em - A
Ilha de Cipango alude a uma felicidade perdida, depois de haver
conhecido os inefáveis afagos do amor.
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes,
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores.. .
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha
Que estou cosendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade.
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!.. .
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dois realejos
Estão chorando meus amores mortos!
Até aqui,
apenas um lampejo, mas o bastante para mostrar que foi por causa de
um amor desventurado que se fez assim tão sombrio. Onde deixa
vislumbrar um pouco mais de claridade é neste outro quadro - A
Árvore da Serra:
As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai, porque sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs alma nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha alma!...
Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Numa e
noutra composição, como se vê, o assunto é tratado em linguagem
hermética. Aliás, o uso de metáfora é freqüente nele, mais ainda
quando alude ao drama da consciência. Um corte transversal nas duas
composições - A Ilha de Cipango e A Arvore da Serra - entremostra a
desventura amorosa. A cena teria se passado no engenho Pau D’Arco,
residência do poeta. O moço triste era ele, e a namorada, a árvore
da serra, que possuía a sua alma. A bem amada já havia cedido o seu
amor ao poeta, como adiante veremos. Por ser uma jovem de condição
humilde, um junquilho entre cedros, o pai austero, orgulhoso de sua
estirpe ou premido pela família, determinou ou concordou tirar para
sempre da presença do filho aquela flor silvestre, que o tinha preso
aos seus encantos, crendo que, com o desaparecimento do empecilho,
pudesse ter uma velhice calma.
Para melhor
compreensão do drama, convém apanhar o pensamento do poeta na parte
em que as duas composições esboçam de leve o quadro: - “Gozei numa
hora séculos de afagos,/’ Banhei-me na água de risonhos lagos,/ E
finalmente me cobri de flores ... / Mas veio o vento que a Desgraça
espalha”/ “Esta árvore, meu pai, possui minha alma!” ‘ / “Não mate a
árvore, pai, para que eu viva!”/ “Foi sobre esta ilha que extingui
meu sonho!”/ Desde então para cá fiquei sombrio!/ Um penetrante e
corrosivo frio/ Anestesiou-me a sensibilidade.”// “Invoco os Deuses
salvadores do erro./ A tarde morre. Passa o seu enterro!”// “Pela
estrada feral dois realejos/’ Estão chorando meus amores mortos!”./
“E quando a árvore, olhando a pátria serra,/ Caiu aos golpes do
machado bronco,/ O moço triste se abraçou com o tronco/ E nunca mais
se levantou da terra!”
Seus versos
deixam transparecer que houve violência. Mais de uma vez fala o
poeta em golpes: - “E a grandes golpes arrancou as raízes/’ Que
prendiam meus dias infelizes/ A um sonho antigo de felicidade!” / /
“E quando a árvore, olhando a pátria serra,/i/ Caiu aos golpes do
machado bronco”/...
A moça, ao
que parece, era natural do brejo ou do sertão lugares que ficam
sobre a Serra da Borborema, cujos contornos, na faixa do horizonte,
se avistam da várzea do Paraíba, pois de outra forma não há sentido
para o verso que diz: “E quando a árvore, olhando a pátria serra”...
Se aprofundarmos um pouco mais a indagação, vamos encontrar retalhos
desse episódio em quase todas as composições do Eu. A coisa tem
começo em Monólogos de uma Sombra, quando o poeta, em seu primeiro
exame de consciência, já mordido pelo remorso, acusa o sátiro que
ele foi.
As alucinações táteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam;
A asa negra das moscas o horroriza.
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
A seguir, em As Cismas do Destino, descreve o segundo
ato da tragédia:
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo, me persegue!
Essa obsessão cromática me abate.
Não sei porque me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até o fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.
O terceiro ato da cena, constante do mesmo poema, é
de revolta contra os seus, os que, cansados de viver na paz de Buda
ou inflamados de preconceitos de nobreza, se encheram de humano
orgulho, e quais guerreiros priscos contra uma imbele criatura que
ao amor se rendera, entraram em conserto para a consumação da
tragédia. Assim fala o poeta:
Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.
O instinto de procriar, a ânsia legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psico-plasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;
E (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
A morte desgraçada dos açougues...
Tudo isso que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
E ao terminar o poema, no qual pôs toda a sua
amargura, o peito arfando de impotente indignação, solta esse brado
de desespero:
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Como quem afasta de si a visão terrível de um drama
macabro, guarda-se o poeta, mui cautelosamente, de descobrir o
motivo cruciante do seu trabalho poético, deixando, entretanto, a
perceber, em cada símbolo, em cada imagem de sentimentos
dissimulados, um fragmento da realidade que abrasava o seu mundo
interior. Sofre realmente e sofre mais porque a dor que se dissimula
não estanca, principalmente quando falta ao paciente resignação
cristã ou conformidade filosófica.
A obsessão do sangue vai até o fim. Alma agoniada por tormentos mil,
anda gemendo pelas estradas solitárias, perseguida por visões
alucinadoras. Numa de suas últimas composições, ainda atormentado
pelo monocromatismo monstruoso da universal vermelhidão, assim
recorda o passado sombrio:
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão...
Ele guarda para todo o sempre o pesar do golpe sofrido. Ora irrompe
em forma de protesto, ora de arrependimento pela culpa que lhe cabe.
A consciência inquietada pelo remorso é aquele morcego do seu
soneto, que à noite entra imperceptivelmente em seu quarto. Seu
coração ficou um deserto. Nem mais amor a Deus, nem mais amor à
humanidade, nem mais amor à mulher. Ao coração devastado a alegria
nunca mais voltou. Vive somente para a sua dor. Poder, riquezas,
glórias terrenas, são coisas que despreza. Em sua musa, o amor não
terá mais lugar, nem mesmo como tema de glorificação poética.
Causa-lhe até repugnância. Explica-se desse modo a deficiência
cromática de seus versos. Só na cor do sangue às vezes se manifesta.
Em toda a sua poesia, a paisagem do Pau D’Arco se converte em
cenário triste e repugnante. Com referência a esse cenário, diz ele
em Psicologia de um Vencido: “Este ambiente me causa repugnância...”
Alguns críticos tomaram o impropério como dirigido à sociedade da
Paraíba. Do Pau D’Arco, ressalva apenas o velho Tamarindo, a árvore
da perpétua maravilha, a cuja sombra amou e chorou.
Varado de dor — continua amando em espírito, um amor etéreo, que
está fora da carne e não tem mais sentido com o coração. Eis que
assim se manifesta:
Porque o amor, tal como eu o estou amando, É espírito, é éter, é
substância fluida, É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes, imponderabilíssima e
impalpável, Que anda acima da carne miserável Como anda a garça
acima dos açudes!
O fato em si é de todo interesse para a interpretação da obra
original de Augusto. Já os detalhes do fato são sobras que ficarão
reservadas ao investigador biográfico, que infelizmente ainda não
apareceu. Em Augusto dos Anjos o que mais interessa é a biografia do
poeta. Erro será querer julgá-lo como prosador, fora da área da
poesia, como tem sido estranhamente fariscado por alguns críticos.
Na prosa, era, de fato, rebarbativo, como de refinado mau gosto
também foi, na prosa, o genial cantor dos Lusíadas. Apenas como um
desafio ao futuro biógrafo, seria curioso saber como se chamava a
moça que Augusto metamorfoseou na árvore da serra. Essa curiosidade
vem a propósito do nome de uma santa, que não é das mais invocadas.
O poeta, como é sabido, nunca foi chegado a santos, mas no poema -
Insônia - referindo-se certamente ao espectro de sua desventurada
amada, surpreende com a invocação de Santa Francisca, ao mesmo tempo
que, contrito, confessa mais uma vez a sua culpa.
Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... Sonâmbulo... Sonâmbulo...
Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido,
Como um bemol ou como um sustenido,
Rola impetuosa por meu peito a dentro?!
Porque é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ao mapa-mundi estranha.
....................................
Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o vício não faísca!
Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!
Porque cumpri o universal ditame?!
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Porque não evitei o precipício
Estrangulando a minha carne infame?!
Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!
De outras vezes, como em - Queixas Noturnas -
extravasava desta forma o seu lamento:
Quem foi que viu minha Dor chorando?
Saio. Minha alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Bati nas pedras de um tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza a minha única saúde!
Continua... |