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Um esboço de Da Vinci

 

 

Horácio de Almeida


 
 

As Razões da Angústia de Augusto dos Anjos
                          (continuação)

 

Curioso é que o egoísmo de uma dor sem fim não lhe fez perder o amor ao pai. Da mãe, entretanto, pouco fala, apenas três vezes, isso mesmo sem revelar um mínimo de afeto. A projeção da imagem materna esvaneceu-se por certo como símbolo da mais freqüente e sublimada veneração. Talvez visse nela uma criatura transtornada pela “mania mística”, como referiu vagamente em As Cismas do Destino. Ao pai, que parece se deixou levar por pressão da família, ama-o até mesmo na atômica desordem, quando a morte o olhar lhe vidra. Ao vê-lo morto, expressa a sua mágoa numa comovente unção, em que a piedade do sentimento se sublima na tessitura da composição.

Madrugada de treze de janeiro,
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o!” deixa-o, Mãe, dormir primeiro.

E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu.
 

De nada valia para um espírito inquietante como o seu uma filosofia que arma o seu sistema à margem da vida, sem resolver a verdade interior. A satisfação que buscava nos conhecimentos filosóficos só lhe faz aumentar a sede de infinito. Toda a crença monística em que procura consolo não lhe explica à satisfação o fenômeno da vida. A morte é o fim de tudo, mas para os que crêem há ainda uma esperança, não para ele, que não admite a vida espiritual. E porque a visão da morte não o deixa em sossêgo, luta por fugir dela, como perseguido pela sinistra ceifeira. Em - As Cismas do Destino - brada:

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
 

E num horror quase pânico exclama, em Alucinação à Beira Mar: “Um medo de morrer meus pés esfriava”. E ainda, em A Ilha de Cipango:

Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas
Atravessando os ares bruscamente.
 

Essa visão shakespeariana das espadas cruzando o espaço tanto pode ser a perseguição da morte como o trágico fim da sua amada, em cujas entranhas um feto magro estendialhe as mãos rudimentares. Aqui, como em toda a obra, as palavras também servem para ocultar o pensamento.

Nestas condições, desesperado por não encontrar solução no raciocínio frio e racionalista, é natural que se mostre rebelado contra a natureza. Já que não crê em Deus, alguém há de responder pelos sucessos infelizes do seu destino. Procura assim desoprimir o coração, desabafando-se nestes termos contra a natureza:

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
 

Presumivelmente, devia ter na época, quando recebeu os 22 açoites da natureza, 22 anos de idade. E porque não se acalmava? Faltava-lhe fé, não cria em Deus, embora ansiasse por encontrá-lo. O sentimento profundo de dor e de descrença afastava-o da realidade. Vivia um mundo à parte, cheio de imperfeições, habitado por monstros humanos. Nada o consolava nesse estado de espírito, pois estava certo que nem Deus compreendia os seus soluços. O remédio que então buscava para as suas mágoas era o pior dos excitantes. Ao invés de ajustá-lo à realidade, levava-o a recolher-se em si mesmo, ardendo em indagações subjectivas, que só faziam aumentar a sua ânsia de infinito.

Acha Flósculo da Nóbrega, ilustre membro da Academia Paraibana de Letras, que Augusto era um cerebral, escravo do raciocínio frio, tanto que nos conflitos entre a inteligência e o sentimento tomava o partido do intelectualismo. Não me parece tenha razão o ilustre intelectual paraibano. Fosse como ele diz, teria Augusto encontrado satisfação na filosofia, não viveria atormentado com os mitos que o afastavam da realidade, não se deixaria possuir pelo demônio da dúvida. Era, ao contrário, um espiritualista em eterna briga com o racionalismo. Suas percepções sensoriais estão sempre em conflito com as atividades especulativas do espírito. Surgem daí as freqüentes inflexões mentais e os distúrbios emocionais de fundo neurótico.

Na luta em que Augusto se debate, torturado no sentimento do desamparo, volta-se vez por outra contra a sociedade. As suas relações com a sociedade parecem rompidas. Não que tenha recebido ofensas dela, mas porque se sente um desajustado, um homem excluído do mundo. De um modo geral, via na sociedade a representação da humanidade sofredora, mas no particular, o que ele via realmente era o ambiente do engenho Pau D’Arco, que só repugnância lhe causava. Ao contemplar esse ambiente, toda a mágoa do seu espírito vem à tona.

Os seus melhores versos, os de maior densidade emocional, foram produzidos no Pau D’Arco. Era ali que ele sentia bulir na alma o drama de sua existência. Tomado de tensão nervosa pela repugnância que lhe causava o ambiente, entrava em crise espiritual. A inspiração despertava com a dor. Punha-se então a passear, noite a dentro, ao redor da capela do engenho, como um sonâmbulo, andar bamboleante, passos largos, o cérebro em fogo, conforme ouvi de Alcides Carneiro que ouvira dos seus íntimos.
Em reforço desse argumento temos uma prova no próprio Eu. Depois que o poeta deixou a Paraíba, em 1912, sua musa empalideceu à falta de ambiente. O que produziu no sul do País, além de pouco, destoa em força emocional do que produzira em sua terra natal, excetuado da segunda parte do Eu e Outras Poesias o grande soneto O Lamento das Coisas, que não se sabe se foi escrito na Paraíba ou no sul.

Já é tempo de desfazer um equivoco que de tão repetido vai criando raízes. O mundo que o fazia sofrer não era de certo o da sociedade paraibana, que o acolhia com carinho. Desta, nunca recebeu hostilidades. No fundo, podia ter alguma razão para queixar-se da sociedade, de vez que ninguém o compreendia. Mas ninguém tinha culpa de ser ele um incompreendido. Nem ele próprio se conhecia, conforme declarou nesta honesta confissão, em Poema Negro:

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
 

Em agravo da tortura moral que não cessa de persegui-lo, tinha-se na conta de um doente, condenado a expectorar os pulmões dilacerados. Não importa que tenha morrido de pneumonia. Um tuberculoso pode sucumbir a outro evento que lhe antecipe o fim. Há, contudo, no caso, um cuidado muito discreto da família em negar a tuberculose, que o próprio poeta confessava. Essa real ou imaginária doença, aliada à descrença, fez dele um misantropo. Em As Cismas do Destino, confessa-se minado pela tuberculose.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minha alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
 

Mais adiante, em Os Doentes, depois de exclamar que sua angústia feroz não tinha nome, entra a descrever a cidade dos lázaros, imaginária cidade à margem do Paraíba, na qual os doentes consagravam a sua última fonética a uma recitação de misereres. Era ali, “na urbe natal do Desconsolo”, como ele chamava, que os enfermos se reuniam pela camaradagem da moléstia. De início, atormenta-se com a idéia de que, sob os seus pés, na terra onde pisava, havia “um fígado doente que sangrava e uma garganta de órfã que gemia”. Depois disso, numa emoção que comove, passa a chorar a sua dor e a alheia.

Lá para o fim do poema, como se já tivesse perdido o alento de viver, deixa escapar este triste lamento:

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!
 

Mais tarde, num desalento ainda maior, assim principia o soneto Apóstrofe à Carne: “Quando eu pego nas carnes do meu rosto/’ Pressinto o fim da orgânica batalha”.

A tragédia espiritual de Augusto começou desde que extinguiu seu sonho de amor sobre a Ilha de Cipango. Perdido o amor, perdeu também a crença. Foi a partir dai que entrou a sentir o vazio de sua alma, jamais preenchido pelo cientificismo materialista. Mas ninguém pode furtar-se às impressões da infância. Não há, pois, que admirar chore um dia a crença perdida, a imagem dos sonhos remotos que ele quebrara com o furor de um iconoclasta. Já cansado do ceticismo, eis que escuta, como um arrependido, os acordes saudosos do coração. Parece que desperta para a vida. Esse retorno do pensamento aos dias tranqüilos do passado, levado pela lembrança terna de um mundo cheio de encantos e maravilhas, onde os anjos cantavam, em serenata, hosanas ao Senhor, a arremetida que deu depois contra esses tesouros do coração, despedaçando as imagens dos próprios sonhos, tudo isso ele pincelou num quadro que é uma jóia de rara beleza, o soneto Vandalismo, que pode figurar sem favor entre os melhores da língua.

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas,
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
 

Caminha para cinqüenta anos que Augusto dos Anjos morreu. Sua obra, já na 27ª edição, continua despertando o mesmo interesse dos primeiros tempos. Nesse decurso, muitas opiniões foram veiculadas, tanto sobre a obra como sobre a personalidade do autor. Não é, pois, de admirar que ao lado de conceitos da mais justa penetração girem outros que espantam pela desconformidade. No final de contas, cada leitor tem o direito de sentir o autor a seu modo. O que a uns desperta atenção e convida mesmo a uma meditação mais séria, a outros poderá parecer insípido ou fastidioso. Enfim, ler, gostar e não gostar é coisa que se não discute, mas dar opinião atabalhoada a respeito daquilo que não chegou a ser entendido muda de figura.

Para só mencionar os intelectuais paraibanos que se pronunciaram sobre Augusto dos Anjos, destaco Órris Soares, José Américo de Almeida, Raul Machado, Santos Neto, Álvaro de Carvalho, Flóscolo da Nóbrega, João Lélis e De Castro e Silva, este último, apenas como autor de um livro apologético, que não é biografia e não chega a ser estudo. Dos outros, há sempre o que referir, posto que, quase todos, tenham bordejado na superfície do abismo em. que se afundava a alma do poeta.

João Lélis, por exemplo, num discurso de recepção a Flóscolo da Nóbrega, na Academia Paraibana de Letras, chegou a dizer que Augusto não era poeta. Negou-lhe peremptoriamente as qualidades de poeta, reconhecendo nele apenas o mérito de artista do verso. Assim é que, ao aludir com desdenhoso apreço aos motivos abjetos que abundam no Eu e Outras Poesias, disse que Augusto agarrava a musa e saía com ela a passear pelos recônditos da diluição biológica.
Ao contrário da incontinente afirmativa, a musa é que tomava o poeta de assalto nos momentos de suas lucubrações. Sabe-se como compunha. Não era espremendo o cérebro como muitos que se apagam antes de morrer. A arte, para ele, era apenas o meio de formular soluções, em gemidos de dor, quando a aflição interior explodia em chamas devoradoras. Jamais foi o leit-motiv de sua produção intelectual. Bilac pode ter sido um lapidário da forma, Augusto foi um torturado da idéia a serviço de um estro estrepitoso. Os que o conheceram de perto descrevem-no de andar banzeiro, olhar perdido no espaço, lábios crispados, a passear a esmo, enquanto forjava mentalmente a composição. Só depois de elaborada é que ia para o papel.

Órris Soares, seu colega de turma e companheiro de estudos desde a fase preparatória, surpreendeu-o num desses partos sem dor e tão absorto divagava o poeta, de um a outro canto da sala, que só deu pela presença do amigo depois de concluído o trabalho mental. Foi então que recitou de inopino, num timbre especial de voz, o que acabava de compor.

Os versos espoucavam no momento da inspiração, mas quem os lê e os medita tem a impressão de que foram cavoucados na rocha. Escrevia numa linguagem difícil porque era esse o seu estilo, a sua personalidade psicológica. No entanto, essa linguagem, à primeira vista incompatível com a poesia, entrava disciplinada em seus versos, como em compasso de música. A virtuosidade ganha valor na opulência da expressão verbal, o que era, na época, certa preocupação inclusive dos simbolistas. Cavalcanti Proença, em excelente estudo sobre o artesanato na poesia de Augusto dos Anjos, disse que uma das suas forças, a densidade, reside justamente no têrmo técnico. Seus versos, com efeito, impressionam pelo poder da dialética, associado à vibração sonora. Neles, o sentimento parece ter outra dimensão.

Essa incompreensão a respeito de Augusto, essa repulsa idiossincrásica que compromete o crítico antes de atingir o alvo, tem as suas raízes no caráter polêmico da crítica passadista, sobretudo da crítica provinciana, cujos adeptos se apraziam em demolir toda vez que a obra visada não estava naconformidade do seu gosto. Muitas vezes, nem o gosto se levava em conta quando prevalecia a prevenção pessoal ou quando se pretendia alcançar fama com a marreta da demolição.

Álvaro de Carvalho escreveu dois estudos sobre Augusto dos Anjos, um em 1920, o outro 25 anos depois, em 1945. Em ambos, o ilustre escritor paraibano opõe embargos ao poeta, já por sua tendência malsã de ver as coisas pelo lado abjeto, já pelo cientificismo que tem por incompatível com a linguagem poética. Por tudo isso, afirma e reafirma que o Eu ficou como planta exótica, insulado em sua própria grandeza, à margem das correntes estéticas do pensamento literário.

Essa crítica, que pretende ser de interpretação psicológica, tem a prejudicá-la a idiossincrasia literária que afasta cada vez mais o retratista do retratado. Anoja-se o crítico diante de cadáveres, vermes, túmulos, escarros, sangue de vísceras dilaceradas, duendes, figuras espectrais e outras visões sinistras. Repugna-lhe o fartum que diz emanar do Eu e Outras Poesias, por ver em tais composições a podridão enroupada em jargão científico ou jargão clínico, segundo a classificação que adota de Agripino Grieco.
Não importa que Augusto tenha ficado sem seguidores, que não tenha fecundado a poesia nacional, como lamenta o crítico. Em ter ficado sozinho, claro que avulta ainda mais o seu mérito. Poe e Rimbaud, lá fora; Euclides da Cunha, entre nós, este na prosa, também ficaram sem seguidores. Nem por isso, ninguém lhes nega a grandeza de gigantes. Se há fartum de diluição biológica na poesia de Augusto, reconheça-se que essa poesia é humana, por isso mesmo poética.

Absurdo é querer sujeitar a literatura aos padrões em voga. O autor é o que é e não o que o crítico quer que ele: seja. Não pode o critico ser ortodoxo. Admita-se que a musa de Augusto tenha algo de doentio. Mas é preciso notar que essa musa, mesmo doentia, não lhe tira o vigor da expressão verbal. Note-se mais que a esse vigor casa-se uma virtude de efeitos encantatórios, o que forma em seu conjunto a harmonia orgânica de toda a obra poética do consagrado artista paraibano. Até mesmo quando desce ao abominável das podridões tumulares cintila em fulgurações de gênio. O anojamento de Álvaro de Carvalho, como se vê, é mais uma aversão de olfato alérgico.

O próprio Augusto tinha a consciência de que ia ficar sozinho e que era o poeta do hediondo. Foi exatamente com esse título — Poeta do Hediondo — que ele, num dos seus últimos sonetos, deu resposta por antecipação aos reparos dos seus futuros críticos.

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto.
 

Ou então, como se definiu neste quarteto de Minha Finalidade:

Pré-determinação imprescrítível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
 

Tenho por desnecessário dizer que uma interpretação psicológica de Augusto, de sentido mais profundo, está em tempo de ser feita. Sua obra está aí mesmo a desafiar a argúcia dos mais entendidos.

Da vasta literatura que já se produziu sobre Augusto dos Anjos, elogios ou restrições, nem tudo pode ter cabimento. Há, com efeito, juízos despropositados de quem roça pelo assunto sem penetrar o recôndito da dor possessiva que tanto sublimava o poeta. Eis porque, neste ensaio de exegese literária, tenho por objetivo abrir aos estudiosos uma clareira que os conduza ao fundo da obra, na interpretação de um drama emocional, que apenas transparece em linguagem evasiva.

Por suas excentricidades e afinidades outras de ordem espiritual, Augusto tem sido comparado aos mais altos padrões da corrente estética do pensamento. Com Baudelaire, pela bizarria do estro e pelo gosto malsão de impregnar a poesia com o almíscar das coisas abjetas, numa revolta do espírito que vai aos extremos da blasfêmia. Com Verlaine, pela tristeza indefinível da alma, no duelo da carne, manifestada em poemas impressionistas de aguda sensação. Com Mallarmé, pelas crises espirituais porque ambos passaram, na impotência de estabelecer relação entre o mundo visível e o invisível, a fim de atingir, através da sensação, a idéia pura das coisas. Com Leopardi, pelo sentido da dor universal, a filosofia da dor, que cultivava em sua sensibilidade enfermiça. Com Antero do Quental, pela tortura do espírito e pela constância do tema da morte, desejada por um, temida pelo outro.

Só com Rimbaud, em termos de comparação, nunca nenhum dos seus críticos traçou o paralelo. O único que mencionou Rimbaud, isso mesmo de passagem, num artigo publicado em 1914, um mês após a morte de Augusto, foi José Américo de Almeida. Curioso é que fez a citação ‘unicamente para dizer que nenhuma parecença encontrara entre com emprego de termos técnicos, posto que as coisas que tinha a dizer exigiam, por sua natureza, palavras raras e eruditas. Segundo Delahaye, citado por Augusto Meyer, havia acentuada tendência do poeta, desde a sua fase inicial, para a neologia e o vocábulo raro. Até nas aliterações e metáforas, Augusto lembra Rimbaud, em quem se acumulam, em tropos ousados, as mesmas figuras de linguagem, de mistura com alucinações, crematismos, sensações simples e cenestesias, os mesmos descuidos de metro e rima, as mesmas despreocupações do rebuscado pour épater le bourgeois. Vez por outra, ambos procuram traduzir a sensação das coisas inanimadas, usando símbolos e valores que convergem para o fim colimado.

Nos transportes espirituais os dois correm parelha. O triste espetáculo do seu século leva Rimbaud a um passado remoto, quando a cristandade parecia pura sobre a terra. Encontra-se, visionário, na terra santa, na postura de um campônio rústico, assentado sobre cacos de pote e urtigas, ao pé de um muro carcomido pelo tempo. A mesma coisa ocorre com Augusto. Súbito, encontra-se em Roma, numa sexta-feira santa, e é com veneração religiosa que vê os soldados do Vaticano, em grupos prosternados, guardando o corpo do Divino Mestre. Dentro da Igreja de São Pedro o silêncio só é quebrado pelo vento que entoa cânticos de morte. De lá de fora, vem o barulho das matracas. Ouvindo isso, um grande medo toma conta do poeta, que dialoga com os elementos imponderáveis. “Na Eternidade, os ventos gemedores estão dizendo que Jesus é morto! Não! Jesus não morreu! Vive na Serra da Borborema, no ar de minha terra...” Então desperta como de um pesadelo e com os olhos ainda ensanguentados da vigília sente a tristeza de ver mais uma vez como a sua vida é tão vazia.
Não fica apenas aí o confronto. Também no amor os dois se assemelham. Augusto tem as suas razões para desdenhar o amor, como quem deriva o pensamento para o lado oposto da imagem triste que o assedia. Honesto em tudo, de uma honestidade quase bravia, só nesse ponto dissimula o pensamento. Veja-se como se pronuncia a respeito do assunto:

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
 

Em outros lances de sua obra manifesta o mesmo desdém, como se fosse uma convicção firmada e firmada com ênfase, como neste exemplo:

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma,
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
 

Ou então como nesta outra amostra:

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a. .. ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda boca que o não prova engana.
 

Também Rimbaud modulou o seu canto no mesmo tom: “Je n’aime pas les femmes: l’amour est à réinventer...”. Teria acontecido com ele alguma coisa? Ao que se sabe, teve motivos de sobra para tratar o amor com aquele desdenhoso apreço. Motivos escabrosos, é verdade, mas que o levaram ao resultado conhecido. No tempo de jovem, segundo é fama, andou conspurcado de sensações súcubas, tendo culminado com aquele célebre tiro que recebeu de Verlaine, na Bélgica. Depois desse fato, largou-se para a África, onde se casou com uma nativa da Abissínia.

Augusto e Rimbaud negam sistematicamente o amor, embora tenham se casado e tido filhos. As repetidas negativas ocultam de certo uma dolorosa frustração. Em cada um deles, por causas várias, sente-se que há um complexo de culpa, que é talvez o drama mais crucial de suas consciências.

Há, contudo, uma diferença de fundo entre os dois poetas. É que Rimbaud era portador de uma mensagem que acabou por cumprir, enquanto Augusto não chegou a cumprir a sua. Rimbaud, depois de errar longos anos pela África e pelo Oriente Médio, em busca do paraíso terrestre, acabou por admitir a presença de uma realidade espiritual, que era o seu anseio máximo. Quando viu que tudo quanto imaginava como solução para restabelecer o paraíso não passava de divagação delirante, converteu-se à realidade e mandou ao diabo o ar do inferno que o sufocava. Começou então a ver e a sentir milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual na natureza, homens de bem cheios de nobres intenções, o bem e o mal caminhando juntos. Era a vida que lhe chegava e que fugia de Augusto.

Rimbaud encontrou-se a si mesmo depois que descobriu o caminho da virtude — le sentier de l’honner — que tanto procurava. Augusto sentia-se puro, vítima de injustiças humanas, e por isso mesmo não achava conformidade para a sua dor. Ao invés de aceitá-la como resultante de seu egocentrismo, exacerbava-a. Ninguém sofre mais do que ele, a julgar pelos seus lamentos. A violência do veneno que ingeriu muito cedo nas fontes materialistas fá-lo morrer de sede, como Tântalo, à beira da água. Não percebe sequer que toda a sua angústia é nascida de suas entranhas, filha legítima de sua alma. E como não pode reformar o mundo, revolta-se contra o mundo, contra a sociedade, contra a sua grei, numa reação inócua, martelada em versos magníficos e candentes.

Todo vácuo que se abre na vida interior é prejudicial ao comportamento do indivíduo. Ou será preenchido ou compromete a dinâmica das forças morais. Augusto vai irredento até o fim, sem preencher esse vácuo, isto é, sem procurar levantar o véu das aspirações profundas de sua alma. Jamais desceu ao fundo de si mesmo, e se o fez alguma vez foi guiado pela dialética do monismo, quando a monera já manifestava os primeiros sintomas de diluição. Mesmo assim, entre a voz do sentimento e a da razão, perdia-se no estado de dúvida. Dominado pela idéia de um mundo sem objetivo, deixava-se ficar no interior da concha. Ele mesmo se esvaziava no mundo vazio que se criou, do qual se considerava prisioneiro. A vida, o amor, a criação, os mistérios da natureza, tudo quanto desperta a alma, tudo quanto eleva os sentidos, luz, cor, som, perfume, beleza, nada disso seria capaz de provocar-lhe uma sensação nova de vida. Torturava-se por ver somente o lado negativo das coisas. Mallarmé também passou pelas mesmas crises, mas depois que abandonou a luta espiritual afundou no suicídio, da mesma forma como sucumbira Antero do Quental. Rimbaud salvou-se porque se encontrou a si mesmo.

Uma análise mais demorada encontraria maiores pontos de contacto entre Augusto e Rimbaud. Nas coincidências de temas ou mesmo de paralelismo de imagens não se veja, porém, imitação. Tais similitudes valeriam,. quando muito, como fontes de inspiração, mas nem isso acredito tenha havido. Augusto revela-se mais lido em Põe e em Shakespeare, autores que exerceram forte influência em sua formação intelectual. Também Rimbaud bebeu na mesma taça de Põe, como Camões na de Petrarca e de Vergílio. Não raras vezes, o que recebe influências supera o modelo de inspiração. Uma mesma idéia artística pode ser tratada com sabor de originalidade por mais de um autor, segundo o conhecido conceito bergsoniano do intuitivismo. Neste passo, se fossemos no rasto dos poetas mais notáveis em busca de fontes de inspiração ou influências literárias, chegaríamos por certo ao pai Homero que, segundo apregoam os fundibulários da crítica, teria apenas disciplinado em poemas imortais os cânticos populares da época.

É sabido que nenhum escritor adquire a força do seu gênio senão depois de renovar-se interiormente. Há muitas espécies de conversões em literatura, como muito bem já disse Augusto Meyer a propósito de Machado de Assis. Machado de Assis só entrou na posse de si mesmo depois que se converteu à descrença, isto é, depois que perdeu a ilusão dos homens, conforme confissão feita a Mário de Alencar.

A conversão de Augusto foi às avessas e porque não se desconverteu estabeleceu-se o conflito do eu com o indivíduo. Um problema sempre gera outro. Esse divórcio do eu com o indivíduo acabou por abranger a própria sociedade. Foi a partir daí, dessa conversão ao materialismo, que se agravou o drama latente de sua alma inquieta. Por curioso paradoxo, quanto mais afunda no racionalismo mais vacila na dúvida. Possuído do demônio da dúvida, sua vida se transforma num verdadeiro inferno. Rimbaud também criou para si uma estação no inferno - Une Saison en Enfer - espécie de autobiografia moral, onde não faltavam o ranger de dentes, silvos de labaredas e suspiros de empestados.

Enredado em idéias preconcebidas, sentia-se Augusto na impossibilidade de admitir a realidade da vida, aceitar as imperfeições do mundo, olhar menos para as suas dores e um pouco mais para as alheias. Não fosse a trama filosófica do individualismo racionalista, teria certamente encontrado a realidade espiritual que nasce da fé e se alimenta na caridade. Só é possível possuir a fé quando se está convencido da verdade. A conquista da fé importa na conquista do próprio eu. Mas no mundo fechado em que se enclausurava não era possível ver lá fora as almas piedosas e aflitas que tão necessitadas como ele pediam socorro.

No meio em que viveu era querido e admirado. Se emigrou para o sul do país foi porque a Paraíba do seu tempo nada tinha de melhor para dar-lhe senão uma cátedra no Liceu Paraibano. E como não lhe bastasse pela exigüidade dos proventos, supria-se do mais no magistério particular, lecionando a quatro gatos pingados todas as matérias do curso de humanidades. No sul do país continuou a mesma luta heróica pela subsistência, alcançando a grande esforço um lugar de diretor de Grupo Escolar, nas Alterosas.

Toda a obra poética de Augusto é um grito de dor arrancado do fundo da alma. Para uma alma sequiosa de infinito como a sua não há que estranhar uma ou outra expressão de revolta, em meio a tantas emoções extravasadas. Alguns críticos, afetando melindres de devotos, viram nisso o pecado da blasfêmia.

Convém, todavia, que se veja na blasfêmia, quando não proferida por modo vulgar e chulo, um pedido de socorro. É o que há, na realidade, nas apóstrofes do poeta contra o cristianismo. Isso mostra que ele, tal como Rimbaud, se manifesta ainda escravo do batismo. Se o Cristo não vem em seu auxílio, a reação que lhe ocorre é a de menosprezo ao cristianismo, sem advertir-se de que jamais dera um passo ao encontro do Mestre.

Embora não caiba nos limites deste trabalho uma digressão sobre a contradição reinante no mundo da crença, há que distinguir entre blasfêmia contra o cristianismo e blasfêmia contra o Cristo. O cristianismo se apresenta como a doutrina de Cristo, mas os que o seguem desconhecem, via de regra, a essência dos Evangelhos. Na prática, uns batem nos peitos diante do altar e querem logo a recompensa do sacrifício feito, outros andam com a Bíblia debaixo do braço e o coração carregado de impiedade. Todos nós, com raríssimas exceções, descuramos o nosso destino espiritual pelo gozo do momento que passa, certos de que no futuro sobrará tempo para essas coisas.

Se há Deus, se não há Deus, é questão que não deve ser formulada, porquanto Deus é princípio e é fim, é objeto de amor e de crença e não de investigação científica. Vale mencionar, a propósito, um episódio que me foi contado por um amigo do Ceará. Num dos muitos grêmios literários que proliferam na terra de Iracema, levantou-se a questão de saber se Deus existe ou não existe. Os oradores, em torrentes de eloqüência, se sucediam na tribuna, uns afirmando, outros negando. Ao cabo do bombardeio oratório, como ninguém ainda se entendesse, resolveu o presidente submeter a questão a votos. Apurada a eleição e com base no resultado, proclamou que Deus não existe.

Ora, decretar a inexistência de Deus por decisão tomada nas urnas ou no bozó, é, a meu ver, heresia maior que a do poeta quando, no desespero de tantos sofrimentos, atormentado por visões escatológicas, explodiu em As Cismas do Destino, depois de carpir amargamente diante de um mundo que se mostrava indiferente às suas mágoas:

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!
 

Graciosa é a afirmação de que Augusto tenha tido a obsessão do sacrilégio. Só muito raramente soltava uma blasfêmia. Por outro lado, não se pode dizer fosse ele um materialista ético. De inflexões mentais sua obra anda cheia. E como era sincero e honesto, virtudes que cultivava com extremado zelo, nunca teve escrúpulos de manifestar as dúvidas que lhe abalavam a consciência. Por mais de uma vez chegou a falar em alma divina, coisa que não cabe na boca de um ateu. De outras vezes, dá à alma a denominação de sombra, esse sombrio personagem do drama panteístico das trevas, encarnado nele e manifestado nesta passagem:

Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?
 

Já em Monólogos de uma Sombra, começa o poema “Sou uma Sombra.” E onde mais expressivo se mostra é neste admirável soneto - Debaixo do Tamarindo.

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!
 

Por sombra, os filósofos iônios, desde Tales de Mileto, entendiam a alma. A denominação, como se vê, vem de muito longe, através dos séculos. Camões fala na sombra de Aquiles quando exigia, por mãos de seu filho Pirro, o sacrifício da linda moça Polixena. Mas o que Augusto chama a sua sombra não é ainda a alma, como entidade eterna, conjunto das faculdades intelectuais e morais do homem, tal como a entendiam os filósofos iônios, desde o declínio das crenças mitológicas. É a substância primeva, à semelhança da mônada de Leibnitz ou da monera de Haeckel, virtualidade espiritual, mito cosmogônico que liga entre si o espírito e a matéria, larva do caos telúrico, que procede do éter cósmico, da substância de todas as substâncias. Até Deus, para ele, era uma mônada, como está dito em Sonhos de um Monista:

A verdade espantosa do protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus - essa mônada esquisita -
Coordenando e animando tudo aquilo!
 

Em Ultima Visio revela-se um metafísico teológico. Quem o ler nesse soneto dirá que já está reconciliado com Deus. Fala como um crente da cegueira da criatura humana, que não quer ver a glória de Deus resplandescendo em tudo, até mesmo num grão de areia. Quando essa cegueira for resgatada e arrancar o homem da inciência, acrescenta, então a presença do Eterno afastará a escuridão do caminho e aproximará a criatura do Criador. Assim fala e assim termina a composição:

A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ainda tem de abrir para o infinito!
 

Vã ilusão será pensar que já está reconciliado com Deus. Daí por diante, isto é, nas composições que vão até o fim do livro, o metafísico cede lugar ao inveterado monista, perdendo-se novamente no enleio cósmico, ansiado por compreender o princípio anêmico dos seres, sua intimidade numenal, de onde decorrem todas as moléculas que se esvaem na transubstanciação da natureza. Choram ainda dentro dele, em soluços quase humanos, as formas microscópicas do mundo. Assim vai, em briga com o dualismo, vacilante na ciência fria, assaltado de alucinações, até que morre numa cidade das Alterosas, em Leopoldina, aos 30 anos de idade, a 12 de novembro de 1914. *

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Este trabalho, tal como se apresenta, foi objeto de uma palestra proferida em maio de 1960, na Federação das Academias de Letras do Brasil. Mais poderia dizer agora, mas com o que ai está me contento. Que outros, mais dotados de inteligência e espírito de penetração, completem os estudos aqui esboçados ou deles discordem por modo a dar uma interpretação mais aceitável às mensagens de angústia, que eram uma constante na alma torturada do poeta paraibano.


(do livro As Razões da Angústia de Augusto dos Anjos,
ed. Gráfica Ouvidor, RJ, 1962)

 



 

Augusto dos Anjos

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