Bráulio Taváres
A visão cósmica em Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos. As
semelhanças e coincidências entre os poemas As Cismas do Destino, do
poeta mineiro: o de Drummond é uma citação deliberada do de Augusto
Quero comparar dois poemas famosos de nossa
literatura: “As Cismas do Destino”, de Augusto dos Anjos (1908), e
“A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade (em Claro
Enigma, 1948-1951). São tantas as semelhanças entre os dois poemas
(em tema, em linguagem, em estrutura) que não há dúvida de que o
segundo é uma citação deliberada do primeiro. Penso que a intenção
de Drummond foi de recompor em termos próprios a experiência da
‘visão cósmica’, registrada no texto de Augusto. Podemos dizer, com
alguma liberdade poética, que ambos os poetas funcionaram como
stuntminds, como mentes de aluguel que correram o risco de receber o
Clarão emitido pela Verdade Oculta do Universo (ou coisa
equivalente) para transmitir em palavras o seu pálido reflexo.
São numerosos os relatos de indivíduos que declaram
haver experimentado em algum momento um vislumbre visionário em que
o mundo inteiro parecia estar presente diante de si, e em que todas
a coisas pareciam embebidas de significação. Ao emergir de uma
experiência desse tipo, as pessoas de índole religiosa a consideram
uma iluminação mística, um sinal da presença da Divindade. Freud
chamou a isso “experiências oceânicas”, Jung “experiências
numinosas”, Abraham Maslow “experiências culminantes” (peak
experiences). As interpretações variam, mas parece claro que estão
todos se referindo à mesma coisa.
Os poemas “As Cismas do Destino” (Augusto) e “A
Máquina do Mundo” (Drummond) descrevem experiências desse tipo. Em
ambos, o poeta faz a sós uma caminhada, e começa a ser dominado pela
sensação cada vez mais intensa da presença (quase que da
aproximação) do Mundo. Ele tem a impressão de que o mundo se
personifica, o mundo lhe dirige a palavra; segue-se uma torrente de
imagens que procuram, de modo fragmentário, exprimir esse “recado do
Mundo”. A visão é fugaz e logo se desvanece; o poeta constata a
impossibilidade de apreender o Mundo, cuja complexidade transcende o
intelecto e os sentidos.
“As Cismas do Destino” é um poema longo: 105 quadras
em decassílabos (420 versos). “A Máquina do Mundo” se compõe de 32
tercetos em decassílabos (96 versos). Para efeito desta análise,
também é bom considerar o poema “Relógio do Rosário” ( 22 dísticos
em decassílabos, num total de 42 versos), que o próprio Drummond
considerou complementar ao outro -- os dois juntos compõem a Parte
VI (intitulada “A máquina do mundo”) do Claro Enigma.
“As Cismas do Destino” é puro Augusto dos Anjos: uma
catadupa de imagens desconexas e inesquecíveis (o poema abre com as
famosas linhas: Recife. Ponte Buarque de Macedo. / Eu, indo em
direção à casa do Agra, / assombrado com a minha sombra magra, /
pensava no Destino, e tinha medo!). Augusto era um poeta obsessivo,
que gostava de vivissecionar uma imagem no papel até livrar-se dela.
Em “As Cismas do Destino”, essa reiteração dos próprios lugares
comuns acaba desequilibrando o poema, ao “inchar” em demasia suas
duas primeiras partes e retardar o momento da Visão: Augusto dedica
40 linhas à imagem do escarro ( quadras 19 a 28 ), 64 linhas às
formas de vida rudimentares (quadras 35 a 50), 28 linhas à
prostituição (quadras 51 a 57). É visível nesses trechos (como de
resto ao longo de toda sua obra) que ele não escrevia para produzir
emoções no leitor, e sim para drená-las de si próprio.
Surge a Revelação, que é menos visual que auditiva.
Augusto ouve uma “impressionadora voz interna / o eco particular do
meu Destino”. Essa voz o interpela diretamente (“Homem!”); zomba da
sua ambição de entender os cosmos, e faz depois uma extensa
enumeração de todas as coisas “que o terráqueo abismo encerra”. Esta
enumeração caótica se desenrola ao longo de quase cem versos
(quadras 70 a 83), e é característica de Augusto: ele
sempre dá a impressão de que poderia prolongá-la indefinidamente,
sem nunca se dar por satisfeito. Concluída (ou melhor: interrompida)
a enumeração, a Voz ainda joga umas derradeiras pás-de-cal no poeta,
e cala-se. O texto se interrompe logo à frente, como se o poeta
tivesse de repente largado a pena e se erguido da mesa, dizendo:
“Chega.”
Comparado ao poema de Augusto dos Anjos, “A Máquina
do Mundo” é um texto de notável frieza. O texto de Augusto é
pontilhado de exclamações e de exageros; o de Drummond é todo
nostalgia e voz baixa, como um entomólogo relatando a um colega de
laboratório uma experiência levada a efeito tempos atrás, e não
muito bem sucedida. Em ambos os poemas, entretanto, estão presentes
os mesmos elementos: a Caminhada; a contemplação da Paisagem; a
brusca Revelação; o Recado do Mundo.
A revelação colhida por Drummond é lúcida, apolínea:
é a revelação dada aos olhos de um homem maduro, por volta dos 50, e
difere da que é recebida pelo rapaz neurótico de 24 que escreveu “As
Cismas do Destino”. O Mundo, para Drummond, é uma máquina – ou é
algo cuja natureza tem parentesco com a natureza das máquinas. A
máquina se desvela, “majestosa e circunspecta”; o poeta reconhece
que o fez sem “voz alguma / ou sopro ou eco ou simples percussão”,
mas recebe a revelação como uma mensagem pessoal, e não hesita em
abrir aspas para a máquina e atribuir-lhe palavras.
A máquina de Drummond é também menos loquaz do que a
voz ouvida por Augusto: fala-lhe durante treze linhas (a de Augusto
precisou de 140); cala-se logo, e a enumeração caótica é dada ao
leitor através dos olhos do próprio poeta. Encerrada a visão, o
poeta não precisa da zombaria cósmica para saber que a verdade lhe é
vedada: ele rejeita a oferta como se antevisse nela uma armadilha, e
se dispensa de solver o mistério. Não é mais o Cosmos que
repele a pergunta humana sobre o seu significado, como em Augusto: é
o Homem, agnóstico, que declina de formular essa pergunta ao Cosmos.
Todo mês, em algum lugar do mundo, um sujeito de
olhos injetados e barba por fazer desembarca num hospício,
esperneando às mãos dos enfermeiros e gritando: “Larguem-me, seus
idiotas! Estou lhes dizendo que decifrei o Segredo do Universo!” Por
outro lado, muitos indivíduos tiveram “revelações” desse tipo, mas
foram discretos o bastante para guardá-las consigo, ou então
encontraram uma maneira inteligível de transmiti-la: Kepler intuiu
uma harmonia básica na mecânica celeste, Descartes vislumbrou a
natureza
fundamentalmente matemática do mundo material, Edgar Poe (no Eureka)
antecipou em quase um século algumas idéias da cosmologia
contemporânea. Experiências semelhantes foram relatadas por Jung,
Aldous Huxley, Philip K. Dick e muitos outros autores.
Esses vislumbres podem levar à perplexidade, à
beatitude, a revoluções científicas ou à camisa-de-força; mas a sua
universalidade nos permite acreditar que correspondem a uma
possibilidade de funcionamento de nosso cérebro. É possível
provocá-los deliberadamente através de estímulos físicos: jejum,
fadiga, exercícios, técnicas de concentração, drogas alucinógenas.
Muitas vezes, no entanto, eles se manifestam de modo espontâneo e
inesperado. Mesmo quando essas visões são atipicamente longas (o
poeta Robert Graves dizia ter experimentado uma que durou um dia
inteiro), persiste a impressão de que houve uma “compressão”
temporal, de um ano em um só dia, um dia em um só minuto. Num livro
intitulado The Timeless Moment, Warner Allen refere-se a uma visão
que teve, durante uma execução da 7ª Sinfonia de Beethoven:
“Primeiro, o misterioso evento em si mesmo, que ocorreu numa fração
infinitesimal de um segundo ( ... ); depois, a Revelação,
um fluxo sem palavras de sentimentos complexos ( ... ); finalmente,
a Luz, a tranqüila lembrança de toda a complexidade da Experiência,
como que preservada em palavras e formas de pensamento.” Allen
registra que tudo isto “deve ter ocorrido no intervalo entre duas
fusas”.
É bom lembrar que tais experiências nem sempre são de
caráter jubiloso ou deslumbrante. Muitos indivíduos, quando
arrebatados por visões dessa natureza, vêem-se projetados num mundo
onde tudo carece de sentido, onde tudo é ameaçador ou repugnante, ou
simplesmente vazio. Nesses momentos, ele tem acesso ao que parece
ser o universo habitual dos esquizofrênicos, dos usuários de droga
que entram numa bad-trip. Sartre relata experiências similares em A
Náusea, que em grande parte se baseou em suas “viagens” com a
mescalina. E podemos conjeturar que indivíduos como Kafka,
Strindberg ou Samuel Beckett eram sujeitos a mergulhos randômicos,
involuntários, em situações desse tipo.
“As Cismas do Destino” e “A Máquina do Mundo”
verbalizam uma experiência de iluminação pessoal (e do ponto de
vista literário não interessa se os poetas experimentaram de fato
uma “iluminação” ou se apenas a imaginaram), mas são iluminações
frustradas, onde o “sentido último” do universo se entremostra e
logo a seguir se evade. São experiências místicas abortadas, nas
quais teve início a fusão do Poeta com alguma realidade superior,
transcendente, mas o
processo desandou a meio.
Drummond era um agnóstico convicto, sem propensão
para a “visão mística” pura. Quanto a Augusto, é lícito supor que,
depois de doses maciças de Pencer, Schopenhauer e Haeckel, sua fé
cristã conhecia limites. Seu método era de um visionário, e o prazer
com que descreve imagens monstruosas lembra Lovecraft, Brueghel ou
Lautréamont. Suas leituras científicas (nem sempre bem assimiladas)
deram-lhe informação e vocabulário, mas seu temperamento foi sempre
o de um alucinado, um vidente. Talvez tivesse (como sugere com
benevolência seu biógrafo Raimundo Magalhães Jr.) “uma telha
fora do lugar”; textos como “Poema negro” e “Tristezas de um quarto
minguante” são certamente retratos fiéis das madrugadas insones em
que metrificava seus delírios. Não é de admirar que declarasse
sentir, no momento de criar seus versos, “uma série indescritível de
fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de
chorar”. Em seu hoje clássico estudo sobre o poeta, Ferreira Gullar
observa com propriedade que “Augusto, em que pese a aparência
cientificista e racionalizante de seus poemas, é
sobretudo um criador de ‘atmosferas’, nisso residindo talvez a força
principal de sua linguagem ‘gótica’ e teatral”.
Mesmo assim, que outro poeta, em pleno parnasianismo
bilaqueano, ousou falar em “Raio X”, “universo radioativo”, “íons”,
“energia intra-atômica”, “hidrogênio incandescente”, “análise
espectral”? Talvez por isso, em sua visão, a Voz ironize sua
“ciência louca” e reitere que o mundo é incognoscível, inalcançável
ao intelecto humano. Mesmo a dor, realidade última que “veio e vai
desde os tempos mais transatos / para outros tempos que hão de vir
ainda”, é inabarcável à consciência individual, e para compreendê-la
seria necessário ser “a própria humanidade sofredora”, porque “seu
todo não reside no quociente isolado da parcela”.
O mundo de Carlos Drummond é menos gótico. É um mundo
crepuscular, uma estrada pedregosa de Minas. As pupilas continuam
“gastas”, a mente “exausta de mentar”. O mundo se desdobra,
oferecendo-lhe uma sabedoria capaz de seduzir qualquer Prometeu,
qualquer Fausto: uma “ciência sublime e formidável, mas hermética”,
a “total explicação da vida”, o “nexo primeiro e singular” das
coisas. O poeta, no entanto, não se deixa seduzir por essa visão, a
qual lembra uma utopia de ficção científica que inclui “as mais
soberbas
pontes e edifícios” e “os recursos da terra dominados”. Drummond,
como se já tivesse presenciado a visão do poeta paraibano, declina
desse “reino augusto”, dessa “ordem geométrica que se abria gratuita
a meu engenho”. Ele também opta pela “dor individual”, “dor primeira
e geral”, “dor de tudo e de todos”, "dor da coisa indistinta e
universal” – e o complemento dessa dor, o amor, o “alvo divino”,
“motor de tudo e nossa única fonte de luz” (ecos do Paraíso de
Dante). O poeta recusa as revelações da ciência, e escolhe aquilo
que a Augusto dos Anjos tinha sido imposto como castigo: o destino
individual, sem comunhão mística com um Deus, sem fusão panteística
com o Cosmos. Escolhe o indissolúvel par dor/amor de simplesmente
existir, pois “nada é de natureza assim tão casta / que não macule
ou perca sua essência / ao contato furioso da existência”.
Seria interessante mapear na literatura brasileira
outras páginas que tenham afinidade com estas, páginas que também
sugiram o vislumbre cósmico, o breve descerrar dos véus que encobrem
a Realidade mais profunda... Talvez o episódio do hipopótamo no Brás
Cubas, de Machado de Assis; talvez a viagem mental-interplanetária
do narrador de Há Dez Mil Séculos, de Enéas Lintz (1926), o qual
passeia pelo interior do átomo e através do Sistema Solar; talvez a
barata que funciona como Aleph e Zahir para a narradora de A Paixão
Segundo G. H., de Clarice Lispector (1964). Nossa literatura tem
sido extremamente competente em recriar o Brasil e os brasileiros,
mas nada nos impede de fazer o mesmo com o Universo e a humanidade.
Braulio Tavares (btavares13@terra.com.br) é poeta e escritor, autor
de O que é Ficção Científica (Brasiliense) e A Máquina Voadora
(Rocco)
Copyright © 1998
Jornal da Tarde, 28.11.1998
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