Augusto Nunes
O oitavo pecado capital
Maria Rita Kehl radiografa o ressentimento
- sobrinho do orgulho, primo da cobiça e irmão da inveja
Ressentimento
Maria Rita Kehl
Casa do Psicólogo, 248 páginas
R$ 28
É preciso muita audácia - saudável
audácia - para aventurar-se pelas trilhas na selva e pelos atalhos à
beira de penhascos percorridos por Maria Rita Kehl até alcançar o
ponto final desta jornada de 248 páginas. Ao decidir escrever sobre
o ressentimento, essa brilhante psicanalista logo descobriu que não
disporia de mapas suficientes para orientar o percurso. São raras e
ralas as incursões sobre o tema registradas por escrito. Maria Rita
entrou sem medos na mata virgem, tangenciou despenhadeiros e, no
percurso, foi coletando descobertas que faltavam a estantes do mundo
inteiro. Ressentimento, editado pela Casa do Psicólogo, é obra para
ser lida em muitos idiomas.
''A memória do ressentido é uma
digestão que não termina'', constatara o filosófo alemão Friedrich
Wilhelm Nietzche (1844-1900), único pensador ocidental a examinar
mais demoradamente esses abismos humanos. Ele catalogou as
características do ressentido:
1. O ressentimento nunca é difuso: dirige-se contra alguém, alguma
coisa, alguma entidade. (O Outro, na certidão de batismo forjada por
Maria Rita).
2. Há um contencioso entre o ressentido e o objeto do ressentimento.
O ressentido tem contas a ajustar.
3. Para o ressentido, o desejo de vingança é suficiente. O
ressentimento é uma revolta e, simultaneamente, o triunfo dessa
revolta.
4. O ressentido invariavelmente acredita que sua infelicidade
resulta do erro de outra pessoa, ou de um grupo. (Do Outro, dirá
Maria Rita).
5. ''É tua culpa se ninguém me ama'', raciocina o ressentido. ''É
tua culpa se estraguei minha vida, e também é tua culpa se
estragaste a tua''.
6. O ressentido atribui todos os erros ao outro e permanece a
acusações irrevogáveis. Não consegue aguardar em silêncio o momento
do acerto. Explode freqüentemente em amargas recriminações.
7. O ressentido não sabe amar e não quer amar, mas quer ser amado.
Mais que amado, quer ser alimentado, acariciado, acalentado,
saciado. Não amar o ressentido é prova de maldade.
8. Para poder sentir-se um homem bom, o ressentido precisa acreditar
que os outros são maus.
Oito clarões. A transformar as luzes
oferecidas por Nietzche em balizas do caminho, Maria Rita delas se
serviu para localizar o marco zero das trilhas a devassar. Durante
meses, pesquisou em profundidade o que, como explica na introdução,
''não é um conceito da psicanálise''. Seria ''uma constelação
afetiva''. Apoiada nos próprios conhecimentos, mergulhou em obras de
autores que compõem uma galeria de notável abrangência.
A rigor, nenhum tratou objetivamente
do tema em questão. Coube a Maria Rita estabelecer conexões e
vínculos (eventualmente retocando ou ampliando afirmações do
filósofo alemão), para montar a radiografia do ressentimento. Com a
clareza de linguagem aperfeiçoada em textos com os quais vem
enriquecendo há anos as melhores publicações do país, tornou-a
perfeitamente inteligível.
A contemplação do resultado reafirma a
certeza de que o ressentimento merece ser oficializado como o oitavo
pecado capital, vinculado aos sete restantes por afinidades
evidentes ou estreitos laços de parentesco. Freqüentador dos
subúrbios da ira, sobrinho do orgulho e primo da cobiça, o
ressentimento é irmão da inveja, com quem costuma ser confundido.
''Não deixa de ser uma forma de inveja destrutiva, mas tem
singularidades suficientes para diferencia-lo de qualquer outro
pecado capital'', diz a psicóloga paulista Patrícia Abbud.
O ressentido é antes de tudo um fraco,
constata Maria Rita. Não conseguiu responder em tempo a uma
agressão, real ou imaginária, e rumina a vingança que não será
perpetrada. Ficará estacionada na amargura que envenena a alma. O
ressentimento, adverte a autora, virtualmente impossibilita a
felicidade real, aquela que não está na publicidade nem na
auto-ajuda, aquela que não tem receita.
O livro também induz a uma suspeita
incômoda: no Brasil, suposto habitat do homem cordial, a tribo de
ressentidos exibe formidáveis proporções. Eles estão aí ao lado,
pouco adiante, na mesa à frente. Ou, como convém, logo atrás.
Leia Maria
Rita Kehl
|