Jóias do folclore intelectual dos comunistas
José Olympio, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Heitor Cony e alguns casos de intransigência ideológica
Sérgio Augusto
Parece que ninguém agüenta mais ler sobre Machado de Assis, e eu, embora devoto, não pretendo aborrecê-los com mais um artigo sobre o escritor. Mas era inevitável (ou jornalisticamente oportuno) que partisse de sua morte para tocar num tema que também poderia ter como gancho o lançamento de um livro-álbum de José Mario Pereira sobre o editor José Olympio ou a reedição, pela Editora 34, de um renomado ensaio de Carlos Guilherme Mota sobre a ideologia da cultura brasileira no período 1933-1974.
Na véspera da morte de Machado, um jovem de quase 18 anos atravessou a Baía de Guanabara, foi até o casarão do escritor, no Cosme Velho, identificou-se apenas como "grande admirador" do moribundo e implorou que o deixassem ver o mestre de perto. Na sala de estar, à espera do desenlace, Euclides da Cunha, Coelho Neto, Graça Aranha, Raimundo Corrêa, José Verissimo e Rodrigo Otávio foram contra a entrada do rapaz. Machado, porém, permitiu que o desconhecido entrasse em seu quarto e lhe beijasse a mão. Sua identidade só seria revelada 28 anos mais tarde. O misterioso visitante, personagem de uma crônica de Euclides da Cunha, publicada dois dias depois da morte de Machado, chamava-se Astrojildo Pereira Duarte Silva.
Quando Lucia Miguel Pereira desfez o mistério, Astrojildo Pereira (1890-1965) já era famoso como jornalista, crítico literário e um dos fundadores, em 1922, do Partido Comunista do Brasil. Seu destino cruzara de novo com o de Machado, sob a forma de ensaio literário. Como os comunistas mais sectários detestavam Machado ("burguês, retrógrado, niilista e confusionista", na opinião de Octávio Brandão), Astrojildo passou a ser perseguido no PCB, até que o afastaram de seus quadros em 1932, acusado de ser um "intelectual pequeno-burguês e oportunista". A persecução ideológica a Astrojildo foi um dos deslizes mais indecorosos da história do Partidão e seus "bolcheviques inflexíveis" (a expressão é de Sérgio Buarque de Holanda, que se surpreendeu com o espírito refinado, a excelente formação literária e o antidogmatismo de Astrojildo quando o conheceu em Berlim, em 1929).
Há 13 anos, em O Imaginário Vigiado, Dênis de Moraes escancarou os bastidores da atritosa convivência de Astrojildo e outros comunistas sem antolhos com os jdanovistas do Partidão. Não esgotou o assunto, nem tencionava isso, deixando um farto filão de equívocos, intransigências, injustiças e torpezas à disposição de outros historiadores. Um relato minucioso dos desatinos do PCB no plano das idéias e da ação cultural certamente contribuiria para consolidar a reputação da liberdade de pensamento como uma preciosidade impermeável a toda e qualquer ideologia, sem exclusão daquelas, sobretudo daquelas que se acreditam libertárias e redentoras.
Por onde começar? Talvez pela implicância com Machado e, por tabela, Astrojildo, seguidos de um robusto elenco de escritores, artistas, jornalistas e intelectuais de todos os cantos do País, vítimas e algozes, vários deles pseudomarxistas e dogmáticos - além de autoritários e com pendor censório. Até o respeitado e nada herético Graciliano Ramos (1892-1953) foi censurado postumamente pelos trombas do Partidão, que impuseram cortes e correções a Memórias do Cárcere, deixadas incompletas pelo escritor e aos cuidados da família e do editor José Olympio.
O crítico Wilson Martins denunciou as pressões, aqui em O Estado de S. Paulo, chamando a atenção para a existência de três "originais" datilografados, que, em meio ao troca-troca armado pelos censores do PCB, acabaram se misturando, provocando uma disparidade entre as páginas impressas e as selecionadas para ilustrar os quatro volumes da primeira edição. Na época, José Olympio ficou bastante magoado com o crítico. Ao pesquisar os arquivos do editor para a elaboração do belo livro José Olympio: O Editor e Sua Casa (Sextante, 421 págs., R$ 150,00), José Maria Pereira não encontrou qualquer documento referente a censura ou proibição de Memórias do Cárcere. Mas as suspeitas de Martins acabaram confirmadas, anos depois, pelos filhos de Graciliano, Ricardo e Clara Ramos. Carlos Heitor Cony nunca pertenceu ao Partidão, mas tinha, como todo mundo, bons amigos comunistas, com e sem carteirinha . Um deles era o seu editor, Enio Silveira (1925- 1996), uma espécie de José Olympio da segunda metade do século passado. Espírito aberto, também conciliador de contrários, que eu saiba nunca se deixou contaminar por parti-pris ideológico enquanto esteve à frente da editora Civilização Brasileira. Adorava Cony e nada teve a ver com o boicote que o primeiro "romance político" do escritor, Pessach: A Travessia, teria sofrido ao ser publicado em 1967. Boicote por pessoas ligadas à editora e ao PCB, segundo Cony. "Tirando Paulo Francis, (Otto Maria) Carpeaux e Enio (Silveira), o grosso torceu o nariz", disse o escritor ao então repórter de O Globo, Paulo Roberto Pires, quando da reedição do romance pela Cia. das Letras, em 1997.
Quem faz a travessia é Paulo Simões, bem-sucedido autor de romances existenciais, até na idade (40 anos) um alter ego de Cony. Um pouco menos comprometido politicamente, é verdade, pois, enquanto Paulo se limitara a assinar manifestos contra a ditadura militar instaurada em 1964, Cony já estivera preso mais de uma vez por seus artigos e por ter participado de uma manifestação contra o governo Castelo Branco, durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos, no Rio. Paulo faz o que Cony, intelectual espiritualmente anarquista, cético, e sem filiação partidária, jamais faria: larga tudo para aderir à luta armada. Até aí, nada demais. Ocorre que a guerrilha e Paulo acabam traídos pelo PCB.
"Esse livro vai ser o seu túmulo", advertiu-o Carpeaux, seu velho companheiro de jornal (os dois foram editorialistas do Correio da Manhã, no início da década de 60) e Civilização Brasileira. Afinal não foi, mas o silêncio que em torno dele se armou, orquestrado, segundo Cony, pelo PCB, deixou-o incomodado. "Quase todos diziam que eu não devia ter feito aquilo, que era uma traição; mas ninguém me falava pessoalmente", desabafou em 1997, confessadamente livre de qualquer ressentimento, mas ainda convicto de que haviam sabotado a distribuição e a repercussão de Pessach.
Na orelha da primeira edição, Leandro Konder enaltecia a primeira parte do romance ("pode ser incluída entre as melhores páginas da ficção brasileira de todos os tempos"), sua trama novelística ("amarga, penetrante, irônica, cheia de verdade humana, rica de acontecimentos e situações típicas"), mas sua única restrição, justamente à reviravolta final ("a audácia acarretou certo prejuízo estético para a unidade, o equilíbrio da obra") não vinha embasada em preconceitos ideológicos. Daí a estranheza provocada pela substituição da orelha de Konder por outra, mais laudatória, de Paulo Francis, na reedição da obra, em 1975. Nem Konder entendeu o porquê da troca.
Um livro sobre a trajetória e o legado de Enio Silveira, de preferência com a mesma qualidade do que José Mario Pereira dedicou a José Olympio, poderia espantar a neblina que se criou em torno de Pessach. Não foi fácil para Enio manter a Civilização Brasileira acima dos caprichos de panelinhas intelectuais e dos fiscais ideológicos da esquerda fundamentalista. Quando, em 1978, resolveu lançar uma publicação que retomasse o trabalho desenvolvido pela Revista Civilização Brasileira, a que deu o nome de ''Encontros com a Civilização Brasileira'', montou um Conselho Editorial (ou Consultivo, como preferia chamá-lo) o mais ecumênico possível. Dele fazia parte o professor da USP Carlos Guilherme Mota, que então colhia os merecidos louros de seu ensaio Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974), lançado meses antes pela Editora Ática. Nelson Werneck Sodré (1911- 1999), militar cassado pela ditadura, historiador e crítico literário ligado ao PCB, implicou com o convite a Mota, e pediu dispensa do Conselho. Insultara-se com o que ele escrevera a respeito de sua obra: "esquemática e apressada".
Enio tentou de todas as formas demover o velho companheiro. Não o queria fora da revista, nem podia voltar atrás do convite feito a Mota, "a não ser que deliberadamente abramos flanco a violentas críticas e danosos ataques que, al fin e al cabo, acabariam por comprometer a própria iniciativa, já de si bastante arriscada", ponderou numa carta afetuosa a Sodré. Depois de salientar a importância de Mota e o fato de ele ser, na revista, "uma voz entre vinte e tantas outras", Enio fazia uma defesa intransigente do pluralismo ideológico. Recusava-se a editar uma publicação monolítica e dogmática, pois seu objetivo era oferecer um "veículo intelectual de multifacetada análise dos problemas culturais brasileiros". Nela, insistia Enio, seus membros poderão expandir opiniões críticas, "por mais severas que sejam", sobre os trabalhos e as idéias de outros membros, alimentando polêmicas que a repressão e o comodismo haviam enterrado sob o silêncio.
Sodré não se comoveu. Discordou, por carta, de todas as ponderações do editor. Não via necessidade de manter, na revista, "confrontos de opinião e de tendências", já que seu problema não era de "divergência de opinião, mas de conotação ideológica e ética comprometedores com a presença do nome do sr. Carlos Guilherme Mota". Terminava dizendo-se impossibilitado de polemizar com "criaturas" daquele tipo, "uma vez que a polêmica presume divergência científica, o que não é o caso". Por muito pouco não rotulou Mota de intelectual pequeno-burguês e oportunista. A despeito da caturrice de Sodré, a revista acabou saindo, com o Conselho Editorial pluralista sonhado por Enio.