Aurelino Costa
As Iluminações de Aurelino Costa
Por Poma Fidiró
Na Terra de Genoveva
Há um par de anos, Ramos Rosa, no acontecer de um episódio orgânico
incontinente, deflagrou: "o poeta não anda aqui para caiar
relâmpagos". Estávamos, nessa altura, no confronto com o jardim
abandonado de Fiama Hasse, no verbo-precipício de quem gastou o
horizonte. Era toda uma terra revolvida, pisada, arroteada que
ficava, fractal, nos corpos de quem a remexera. Poderia dizer-se que
cada um dos corpos poéticos assumia a antropomorfia do amónio?
Aurelino Costa iniciou, com Amónio (Lisboa, 2003), uma desformatação
do seu percurso lírico. Sustentavel teoricamente nas propostas de
Artaud ou Derrida, tal processo não se limita à desconstrução. Creio
que, fundamentalmente, se trata de um processo de desobstrução.
Longe, semicamente, dos propósitos identificadores, das categorias
do simulacro e da representação, a liberdade do corpo parece agora
transmitir-se à liberdade da palavra sem condicionamentos de
auto-censura, sem castrações afiveladas para o convívio profissional
(nas profissões, devemos registar: advogado, pai, filho, irmão,
diseur). A poesia raiofunde-se por iluminações (utilizando o
vocabulário rimbaudiano) inscritas na densidade dramática:
porque esticam tanto as cordas, pai?
(pág. 36)
ou, na maior parte, na nudez trágica:
um coveiro toma chá
debruçado sobre a campa da mãe
e suplica que lhe paguem o serviço
(pág. 35)
O tónus do prazer criador não renuncia às solicitações fónicas tão
temidas pelas polícias das regras. Aurelino Costa raiodifunde-se
como O Solto, o que já não está onde o puseram ou onde se auto-pôs.
A sua linguagem é também testemunha da soltura, de par com
deliberadas agressões sintácticas para desocultar o oxigénio, o
elemento não visual, porém imprescindível. Ao pronunciar os séquitos
que tristemente procuram o reconhecimento social (assim renunciando
à palavra poética), o poeta situa-se no único lugar que a poesia
permite: em si, na sua compreensão do mundo, na sua capacidade de o
acrescentar. As hordas turísticas dos literatos sem húmus, as
vaidades insuportáveis de demasiados mandantes, encontram Na Terra
da Genoveva a sua perplexidade, o lugar do seu não-entendimento.
À poesia do poeta há que perguntar: onde está a tua diferença?
Podia mesmo dizer-se: ninguém é poeta. Às vezes está-se poeta.
Assim, Na Terra de Genoveva é um evacuário de momentos ou
iluminações, acontecimentos demasiado insuportáveis para guardar no
armário corporal e que exigiram expulsão, Cortes de continuidade:
Nauseou a tesoura na garganta
Justo ao pó sobre a testa
(pág.19)
Os Cortes - cicatrizes, intervenções operatórias, incisões estéticas
- constituem outro aparato de abordagem, a instância onde se apara
ou golpeia a inanidade do que nos chega transmitido ou acometido.
Poder-se-á tentar uma eco-epistemologia, uma utensilagem que permita
a descoberta do Oco por detrás de todas as manifestações que
aparentemente são exercidas pelo Ser mas que, neste livro, se
transferem para o seu centro aborigenário: o Ser é manifestado, não
se manifesta. Configuram uma ternura de prepúcio, uma protecção para
o não-exercício de vida própria. A fundura antropológica deste
pressentimento caldeia a matriz cultural-civilizacional onde fomos
metidos sem interrogação.
Estaremos ainda no existencialismo com Aurelino Costa? É duvidoso,
existe demasiada carga assertiva para o comprazimento no absurdo.
Porém, o carácter iterativo que o signo cruz assume em todas as
produções do autor, impõe a omnipresença de um enlace que não foi
ainda desfeito. A atmosfera cristológica, nas suas redomas de
tortura e redenção, paira e investe sem cessar. É, nas palavras do
autor, o SacroGigante, redivivo no contemporâneo pela acção
continuada das pressões mentalógicas. Mas creio que seria
impregnante o termo hiperrealismo (ajustado dos anos 90) para o
diaporama onde se projecta Na Terra de Genoveva.
São tormentosos os trabalhos de higiene. Acumulamos demasiado lixo.
Às vezes:
na ponta do cais assobiam
su i cí di os
(pag.57)
Freud ensinou os ocidentais a matar o pai e a mãe. Ainda nenhum
psicanalista (e particularmente agora, com a escassez de simbologia
e de mitos) ensinou a matar os filhos. Será um trabalho de edição?
Bastará publicá-los?
O Solto não sabe. O Solto não sabe o que vem. Tão pouco sabe se o
seu futuro é a incineração dos passados. O Solto é também o que lhe
deu origem. O Solto não existe.
|