Benedicto Ferri de Barros
A
linguagem e o curto-circuito na comunicação
[in Jornal da Tarde,
Sábado, 5.8.2000]
Confúcio
ensinava: `Se a linguagem não tem sentido, a ação torna-se
impossível - e conseqüentemente todos os assuntos humanos se
desintegram e torna-se impossível e inútil seu manejo.' É o desprezo
pelo correto uso as palavras que explica a `babelização' que
enfrentamos e as dificuldades do homem moderno para enfrentar o seu
cotidiano e o ambiente social e político em que vive
Há 2.500 anos um discípulo perguntou a
Confúcio: "Se um rei vos confiasse um território para governar
segundo vossas próprias idéias, o que farieis primeiro?" A resposta
de Confúcio foi: "Minha primeira tarefa certamente seria retificar
os nomes." O discípulo se surpreendeu e pensou que Confúcio
estivesse brincando. "Retificar os nomes? Tão pouca coisa? Que
poderia isso significar?" Confúcio explicou: "Se os nomes não são
corretos, se não correspondem a realidades, a linguagem não tem
sentido. Se a linguagem não tem sentido, a ação torna-se impossível
- e conseqüentemente todos os assuntos humanos se desintegram e
torna-se impossível e inútil seu manejo. Portanto, a verdadeira e
primeira tarefa de um estadista é retificar os nomes."
Jamais se poderia enunciar de forma
mais abrangente, profunda e clara a importância da linguagem na vida
social do homem. Nem se poderia com tão poucas palavras ser mais
cabal e realista. Tão poucas palavras falam mais do que muitos
tratados de lingüística e explicam com maior amplitude do que muitos
livros de sociologia a importância da comunicação para a ação comum
entre os homens. A capacidade de análise do real evidenciada por
essa visão de Confúcio, ao par de sua capacidade de síntese na
comunicação, é um dos mais densos e efetivos exemplos que se possam
citar de como a linguagem permite, mediante seus símbolos
convencionais e abstratos, não só se representar mentalmente uma
complexa realidade concreta, como comunicá-la com inteira clareza
aos demais. A "retificação dos nomes", isto é, a correção da
linguagem, muito mais do que um luxo pedante de especialistas da
palavra - como poderia parecer ao homem comum - é a primeira
condição para um efetivo entendimento e ação cooperativa entre os
homens. Não há exemplo mais universal disso do que o fracasso na
construção da torre de Babel.
Dois mil e cento e poucos anos depois,
Francis Bacon - o grande filósofo que com sua monumental Instauratio
magna pretendeu estabelecer um novo programa de desenvolvimento para
a humanidade, mediante um avanço do conhecimento que permitisse ao
homem o domínio da natureza pela observância de suas leis - dirá em
seu Novum Organum que o método a ser adotado para isso depende de
uma correção de como o homem utiliza seu intelecto, todo ele
impregnado de limitações e falhas a que chamou de idola. Algumas
delas, estruturais, outras, resultantes de mau uso. Entre as quatro
idola que aponta, inclui a idola fori, os maus hábitos da linguagem
vulgar, consagrada pela praça pública ou feira. Como nós
representamos o mundo intelectualmente por palavras, palavras ruins
ou incorretas falseiam nossa visão e corrompem nosso pensamento.
Bacon preconizará a "retificação dos
nomes" pelo uso da observação e da experiência, em lugar de
meramente se especular com palavras e com elas construir sistemas de
"ciências prematuras", sem qualquer ligação com a realidade objetiva
e, portanto, sem sentido algum. A substituição da lógica subjetiva e
dedutivista pela experimentação e generalização do que fosse
observado (indução), muito mais do que cerca de 40 anos depois
Descartes regressivamente proporia como caminho para o conhecimento
da verdade, veio a ser método adotado pelas ciências para o
conhecimento da realidade.
Em 1943, cerca de 2.500 anos após
Confúcio e 323 após Bacon, T. S. Eliot, o poeta que instaurou com
uma nova linguagem o mundo contemporâneo na Poesia, sintetizará o
sábio chinês e o estadista-filósofo britânico, repetindo o programa
de ambos. Dirá em uma passagem de Little Gidding: "Visto que a
linguagem era nossa preocupação,/ E essa preocupação nos compelia a
purificar o dialeto da tribo,/ Urgindo a mente à compreensão (aftersight)
e previsão(foresight) ..." Ele quer que os homens entendam sua
experiência, seu passado, se compreendam (aftersight) e sejam
capazes de cuidar de seu futuro (foresight) e, para isso, pretende
que se "retifique os nomes", relembrando a advertência de Bacon com
relação à vulgar deturpação da linguagem, o idola fori, que a um só
tempo corrompe o intelecto e a representação mental da realidade,
tornando impossível a comunicação entre os homens e tornando a
linguagem sem sentido. Sim, porque a cada coisa corresponde um certo
nome. Por este nome certo a representamos mentalmente e se a
chamamos por outro, ela não nos atenderá e quem nos ouça não nos
entenderá.
A corrupção provocada pelos idola fori,
ao contrário do que sempre se deu no mundo, que ocorria
fundamentalmente entre o vulgo, na atualidade se disseminou pelos
próprios centros da elite da vida intelectual, tanto nas
universidades como nos núcleos da tecnologia de ponta-de-linha e
sobretudo entre os encarregados da comunicação (mídia). Neles
prolifera e se pratica uma linguagem que perdeu sua conexão com o
conhecimento acumulado (aftersight), que ao desprezar a etimologia e
a semântica se torna sem sentido, perdendo a capacidade de
representar a realidade corretamente e permitir a comunicação entre
os homens.
Em recente entrevista a Napoleão Sabóia
(Caderno de Sábado, 22/7/00), Edgar Morin, distinto pensador
francês, observa que na França (e certamente isto é um fenômeno
mundial) são os próprios professores de literatura que, "com suas
análises de semiótica, puramente formais", afastam os jovens da
leitura, privando-os do aventuroso e fascinante convívio da
literatura "de um Balzac, um Tolstoi, um Jorge Amado, (que) nos
falam de emoções, de experiências vitais, nos ensinam sobre nós
mesmos, ao mesmo tempo que nos divertem."
A semiótica é apenas uma daquelas
"ciências prematuras" a que Bacon se referia. São "ciências" que, ao
enfrentar um campo novo, criam desabaladamente uma linguagem nova,
sem nexo etimológico nem semântico, e ao mesmo tempo que se
acreditam descobridoras de um novo conhecimento e de uma nova
realidade, corrompem o "dialeto da tribo", afundando-se numa
logologia autista que não pode ser comunicada aos outros porque não
faz nenhum sentido. É o caso da IA, a "ciência da inteligência
artificial" que, como tantas outras "bolhas" formadas em outros
setores (a do bug do milênio, a do mapeamento do genoma, a das ações
da Nasdaq) ou explodiram ao alcançar a estratosfera, ou continuam a
proliferar perigosamente. Mas é supinamente o caso da maioria dos
livros, teses e artigos de origem universitária e acadêmica, cuja
leitura, além de nos dar a impressão de que estamos gargarejando
pedregulhos, não nos deixa o benefício de melhorar a dicção, como
Demóstenes conseguia com seus exercícios, mas a sensação de que
mascamos espuma de plástico.
Não há contudo exemplo mais flagrante
nem mais calamitoso da necessidade de se "retificar os nomes" para
se reduzir os efeitos perniciosos dos idola fori e "induzir a tribo
à compreensão e à previsão" do que o que se passa na mais avançada
tecnologia moderna, a da informática, precisamente a "ciência do
conhecimento e das atividades intelectuais". Aqui a babelização das
linguagens se tornou não só "o dialeto da tribo" mas a disfunção
total da linguagem como meio de comunicação. Embora a linguagem
digital seja a mais lógica, a mais simples e a mais universal das
linguagens, a estrutura lingüística, sintática e semântica dos
diversos programas (softwares) que vêm sendo criados guardam pouca
ou nenhuma inteligibilidade interna, e ainda menos entre si. Daí os
famosos bugs e incompatibilidades. Pior porém se verifica na WEB, na
Internet e nos seus sites, escritos por informatas e comunicólogos
para se comunicarem com seus clientes, os internautas, seus
usuários. Linguagem que acaba se evidenciando como um balbuciar
autista sem nexo nem significado inteligível. E como poderia ser de
outra forma, se esses especialistas primam pela ignorância da
linguagem literária, do sentido das palavras, da arte de escrever e
se comunicar?
É compreensível que todas as
descobertas, toda inovação, toda criação, seja uma aventura algo
caótica, desorganizadora, que implique na desarticulação de velhas
formas para a subseqüente reorganização de formas novas que
incorporem as conquistas realizadas. Assim foi que o século 16, de
onde se originam o mundo e a História Moderna, assistiu a um
generalizado desmonte dos pilares tradicionais do Estado e da
Igreja, que de braços dados asseguravam a ordem medieval, assim como
das idéias e comportamentos correntes, originando um desenfreado
individualismo, a um tempo imensamente criativo e anarquizante da
cultura e ordem social. E também do próprio indivíduo. E assim foi
que à euforia desse desregramento se sucedeu o pessimismo
organizador do século 16, trazendo com a Contra-Reforma, Bacon,
Hobbes, Locke, Grotius e Newton o impulso de uma reconstrução da
vida coletiva sob novas e mais ampliadas bases.
Foi aí também que se desenvolveram
novos conhecimentos, novas linguagens e novas entidades para, fora
dos centros intelectuais tradicionais, cuidarem
pluridisciplinariamente da nova realidade física e cultural que
passara a existir. É neste século, também, e entretanto, que, muito
antes da genética e do evoluciononismo, se reafirma a existência de
uma "natureza humana" com características próprias e permanentes e
se afirma que tudo é permitido ao indivíduo e à cultura, exceto
violar os limites dessa "natureza".
Isto não se alterou de lá para cá.
Quando Adnan Nevic nasceu neste ano 2000, como o hex-bilionésimo
homem do planeta, ele em nada diferia do primeiro Sapiens-sapiens
que se diferenciou dos primatas, e só se diferenciará à medida da
cultura que a educação vier a lhe dar, fazendo dele um "ser humano"
capaz de aftersight e foresight, capaz de entender o mundo,
comunicar-se e atuar cooperativamente com seus
semelhantes.Tardiamente, começa-se a compreender que como à
estrutura biológica do Sapiens corresponde uma "natureza" definida,
também ao "ser humano", como ente social, corresponde uma "natureza
cultural" cujos limites e potencialidades não podem ser
transgredidos sem que se perca a forma que caracteriza isso que
designamos e compreendemos como "ser humano" - um ser orientado e
formatado pelos valores humanistas arquetípicos da verdade, da
bondade e da beleza. A "natureza humana" genética imutável e a
"natureza humanista" culturalmente perfectível, hão de se integrar
respeitando seus próprios limites e parâmetros, sem o que não se
harmonizará a ambígua e contraditória natureza do indivíduo e sua
sociedade.
A formação do "ser humano" depende do
processo social geral de "humanização" operado pela educação, que
Durkheim caracterizou como o mais importante processo social geral,
exercido não apenas pela família e instituições educacionais, mas
por toda a sociedade em seu conjunto. Mas é evidente que no conjunto
desse processo social que forma o homem, a formação de sua linguagem
constitui um dos elementos fundamentais de sua capacitação
intelectual como indivíduo, tanto para a aquisição de outros ofícios
e procedimentos sociais, como também para que possa compreender
adeqüadamente o mundo e se comunicar e interagir com seus
semelhantes.
O reconhecimento da importância da
educação antecede a aparição da Pedagogia e, mesmo, de qualquer
consciência dessa importância. Na realidade, a formação e preparo
das novas gerações é um processo biológico espontâneo, que se
verifica mesmo entre os animais situados em baixos degraus da escala
evolutiva. A questão educacional coloca-se universalmente para as
sociedades e indivíduos de todas as culturas. Ela assume o papel de
alavanca fundamental em todos os projetos de melhoria e
desenvolvimento do homem, sua sociedade e sua civilização. A eleição
de um currículo é um ponto central na arquitetura das utopias de
todas as eras. Somente a confusão e anarquia intelectual de nosso
tempo pode proclamar que crianças, adolescentes e moços encontrariam
seu formato humano integral e melhor desamparados das diretrizes,
dos modelos e da experiência dos mais velhos. Como se cada "adnan
nevic" vindo ao mundo fosse um novo Adão paradisíaco capaz de ex
nihilo refazer, por um caminho perfeito, a civilização.
Ao contrário dessa tolice ideológica, o
mais simples dos homens de qualquer povo sabe que o futuro de seus
filhos depende da educação que possa lhes proporcionar e o programa
educacional desenvolvido na Era Meiji no Japão constitui um dos mais
flagrantes exemplos de como em poucas gerações é possível saltar
séculos e chegar aos limites da mais avançada modernidade.
Visto que a fala sempre foi mais
descuidada, a linguagem escrita continua a ser o caminho régio para
a boa linguagem e a pista para sua versão superior - a boa
literatura. Mas para chegar até aí é necessário começar por aprender
a sentar-se numa carteira, segurar um lápis ou qualquer outro
instrumento de escrita, desenhar as letras e palavras, formular
sentenças e fazer composições. Ler em silêncio e em voz alta, peças
antológicas que, decoradas, nos encantam pela vida afora como
achados felizes da meninice. Em suma, o que outrora se designava por
alfabetizar-se.
Na atualidade, temos muitos mestres e
até doutores que, por não terem adquirido esses rudimentos,
permanecem analfabetos, incapazes de completar uma frase, redigir um
período compreensível e muito menos desenvolver uma dissertação,
embora escrevam teses eruditas. Assim como temos escritores famosos
que não aprenderam a língua e não sabem escrever. E outros que
pretendem substituir o alfabeto por rabiscos hieroglíficos.
Parafraseando uma tirada famosa de Churchill, deles se poderia dizer
que quando se sentam para escrever não sabem o que vão dizer, quando
escrevem não sabem o que estão dizendo e quando terminam não sabem o
que disseram. Muito menos seus leitores. Há não muito tempo li
resenha sobre um livro que constituiu um dos encantos de minha
meninice e me seduziu para as aventuras literárias. A resenha era um
portento semiótico, tinha até laçarotes e rendas ideo-sociológicas.
Se o trabalho não indicasse o nome da obra e seus autores, seria
incapaz de identificar pelo conteúdo da resenha de que livro se
tratava.
Como Confúcio, Bacon, e Morin deixaram
claro, somente se retificando os nomes, suplantando os idola fori e
mantendo-se a conexão entre as palavras e a realidade que designam -
isto é, somente pelo caminho de uma linguagem correta e inteligível
se pode avançar na trilha que, depurando o dialeto, assegure, como
disse Eliot, o aftersight e o foresight da tribo.
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