Benedicto Ferri de Barros
Palimpsesto baseado em Maria
(Fragmentos de portulano para o terceiro milênio.)
Redigo o que
de mil maneiras já foi dito.
Raspada a crosta e o limo do macróbio
encontra-se o infante que sorria,
a cria, o criador e o incriado.
A aurora se repete a cada dia.
I
Dela, Maria, parti.
Não era nosso lar então
mais que uma cabana
na boca do sertão mégalo-metropolitano.
À porta nossos filhos dançavam de alegria
pela franquia que ganhavam do complexo edipiano.
Alguns usavam tangas e outros batucavam num piano
anti-diluviano a algaravia de um rock americano.
De anos-luz medidos em parsecs de distância
pelo meu rádio-portátil celular
me vinham de outra kalpa seus vagidos.
(ou seriam gemidos de um orgasmo?)
Ocultos no oceano Internético
hackers frenéticos arrasavam com ruídos
os meus ouvidos meramente humanos
obstruídos por coisas sem sentido.
II
O patrimônio cresceu no anonimato.
Perdeu-se o nome do inventor da roda
de quem fundiu o ferro e do primeiro tecelão.
Trocaram-se por mitos a marca do artesão.
Que importa o autor de dons se são gratuitos?
Onde andará o hausto do primeiro artista
que inoculou sua alma no caniço
e a transformou em música perpétua?
Que benefício acresce o nome à secreta alegria
do poeta que para a eternidade
gravou as renas nas paredes das cavernas?
A que ou quem, proveita a fama de modernidade?
III
Não vejo o chão juncado de cadáveres.
Todo o estrume dos homens que viveram
e o adubo dos homens que morreram
viraram húmus. E o sangue e os esqueletos
inumados, mesclados à luz tratada pelas plantas
pelas aletas de borboletas circulados
a Terra fecundaram. Criaram a seiva
do edênico jardim em que habitamos.
- Inda duvida? Toma uma rosa entre tuas mãos e olha.
IV
Que Éden do passado subsiste
que oblitere a memória da fome, da miséria
do fratricídio a que chamou-se glória?
O Éden é simplesmente o amuleto, o farnel,
o passaporte da mente na árdua caminhada pela história
que leva o peregrino do presente ao porto de chegada.
V
A enxurrada de utopias levou todos os ídolos
cuspidos em agonias como escarro.
Passou um novo dia.
Reconciliadas a cultura e a zoologia
primevas criaturas, animais e plantas
agora vivem do acalanto humano.
Deixou de ser perpétua a morte, o exílio, o esquecimento
guardados indeléveis na memória humana.
VI
Nel mezzo del camin ... - chegando quase ao fim
da caminhada, assobiando pela escura selva
da tragédia humana me deparou a eterna sombra
iluminada que estranhamente seguia sempre à nossa frente na jornada.
E quando a interpelei, chamando-a de
- Mestre,
me respondeu:
Eu sou o teu espelho, simplesmente o Homem,
primo do macaco, parido por mulher e destinado à morte,
alvo da sorte e sem nenhum poder divino ou sobrenatural
exceto distinguir o bem do mal, o certo do errado,
o belo e o feio - e assim criar - a deus ou a mim mesmo.
Surpreso me atrevi a interpelá-la novamente:
- Serás um novo deus?
- Não, respondeu, o demiurgo apenas de teu eu - o Homem,
a quem chamaste alguma vez de Prometeu
ora de Orfeu, candeia humílima, que apenas ilumina ao se queimar.
VI
E ao me ver contrito e assoberbado pela missão
de ter de iluminar o mundo com tão escassa luz,
me advertiu: - Não sou um novo mito, sequer um evangelho.
Não necessito de apóstolos nem discípulos, meu velho.
Não há missão. Sequer obrigação. A árvore reside na semente
e a semente ignora o tempo: após milênios pode germinar.
Cada mente só dá o que puder e, como a mulher,
supera a pena e os trabalhos de parir pela alegria de criar.
VII
É necessário dar o derradeiro salto
chegar à derradeira negação
reconhecer o caos e aceitar o acaso
a fim de continuar-se a construção
que dê abrigo e sentido
ao que não tem.
Nenhum.
VIII
Do argonauta navegante ao aeronauta, o astronauta e o internauta
passou um só instante.
amor levanta um monumento que se alteia
além de toda onipotência.
Por alquimia se funda o reino unido
do bom, do belo e o verdadeiro.
No universo atroz, glacial, vazio e sem sentido
vai-se criando o canto da poesia:
imortalize a transiente rosa em tuas mãos:
diz simplesmente - é bela a rosa
9 de Setembro de 1998.
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