Benedicto Luz e Silva
"Para Violino Solo": Um inédito de
Maria José Giglio
Os conhecedores dos onze livros de
poesia de Maria José Giglio já publicados sabem da solidez de sua
criação. De 1958, ano de sua estréia, até hoje, são 39 anos em que
esta autora admirável vem cumprindo fielmente um dos papéis
fundamentais do poeta, que é o de recriar as emoções através das
palavras. Mesmo que desde "Não", de 1986, não tenha publicado nenhum
livro novo, não deixou de continuar a construção de sua obra.
Esporadicamente, tem saído em jornais e revistas excertos desse já
vasto material inédito, sempre demonstrando que o vigor de sua
poética não arrefeceu, antes se aprimorou. Pessoalmente, tenho tido
o privilégio, mercê da generosidade de seu convívio amigo, de
acompanhar a evolução dessa produção originalíssima. De lamentar
apenas que, por circunstâncias materiais, esses títulos não tenham
vindo ainda a lume, para deleite dos admiradores da autora. Quem
sabe nas comemorações dos 40 anos de carreira de Maria José Giglio
algo seja feito para sanar essa lacuna cultural.
Enquanto isso, aproveito a
oportunidade para falar de "Para Violino Solo", obra que Maria José
Giglio terminou de escrever agora em 1997 e que acabo de ler. É sob
o impacto de sua imagística que tento dar uma resposta crítica a
esse mundo poético que se compraz em desafiar as suas limitações,
apelando para antenas sensibilíssimas, capazes de penetrar a
realidade circundante, captando o que normalmente nos escapa.
Com uma linguagem intensiva, Maria
José Giglio não imita a natureza neste poema, mas capta a sua
essência em individuações parciais, ao se relacionar com o espaço
que ocupa, no encadeamento de imagens e sons. Para ela, estar vivo
poeticamente é participar de um fluxo interativo de sensações, ao
fruir do ato em si. Ao observar o meio ambiente onde vive o seu
dia-a-dia, a poeta, com os sentidos atentos, recria-o em termos
verbais, com as palavras adquirindo valores intercambiantes. A
simples presença no mundo é motivo para se constatar o estado de
contínuo movimento que existe em nós e no que nos rodeia. A
plenitude só pode advir dessa totalização, quando nos apercebemos
integralmente de nossos sentidos.
Maria José Giglio não se limita a
fotografar o que observa, antes interroga a natureza como reduto de
vida estuante em oposição à precariedade individual. Por inferência
é que vai surgindo uma visão do mundo, pelo jogo das imagens. Embora
a linha seja do sentido visual para o sonoro, como que todos os
sentidos são postos em ação. A paisagem, que seria inerte, traduz-se
em metáforas que criam uma realidade em si, não por suas
propriedades físicas ou naturais, mas por seu conteúdo poético.
Realmente, a autora foi muito feliz na combinação do plano de
expressão com o plano de conteúdo, o que leva a um equilíbrio entre
as palavras, despertando sensações e evocações que acentuam a
consciência do próprio mistério da existência.
Esse o valor maior de "Para Violino
Solo", a meu ver: capta o universal através de elementos singulares.
Maria José Giglio organiza reflexos, ao proceder a uma sinestesia
entre atributos aparentemente inconciliáveis. Palavras bailarinas,
que permitem a confirmação de uma atmosfera plástico-sonora com
ritos encantatórios. "Cada textura e cor/ altera o timbre." Há um
ritmo nítido e correlato nos versos que faz com que tudo ganhe um
peso novo, uma ordem particular. As coisas como que são
redimensionadas pela pura representação, que decifra as contradições
interiores pela correspondência exterior. Talves a citação de alguns
versos elucide melhor meu modo de ver o livro. Por exemplo, o "Opus
VI": "Ouço trovões como tubas/ alardeando a chuva/ / Ouço glicínias/
glissando/ no terraço// e a natureza assente/ ao drama de si
mesma.// Ouço o silêncio do mundo. "
Ritmo, combinações, pausas, entoações
implicam numa aproximação não condicionada do universo, fazendo do
sentir uma arte, ao procurar traduzir em conformidade com a
percepção poética. Nesse aspecto, é através do fonológico que a
autora consegue atingir o semântico, para propiciar o significado
existencial. É como que pela entonação que o poema todo ganha o seu
melhor sentido, quando a leitura acaba por exigir uma elevação ou
uma diminuição do tom de voz, para uma fruição plena das
formulações. Seria um estado de inocência, porque o conhecimento se
faz não pela memória, mas pelo ato em si, pelas associações verbais
que o ver, escutar, tocar lhe propiciam. Como só pode conhecer o que
experimenta, no desenvolvimento do poema a autora vai conseguindo
manifestar amplamente seu estado de alma através das palavras, ao
expandir todos os seus sentidos, para que o mais agudo deles, o
poético, se concretize.
"Seis pequenas janelas/ audíveis.//
Seis passos ao longo delas/ e improviso:/ luz, cristal e címbalos/
este domingo." "Porque é setembro/ branco-clarim o copo-de-leite/
acorda o jardim." "Ágil compasso/ de pernas e palpo/ no desempenho/
do vivo// enquanto assisto/ e passo. " "Colhi mangas/ maduras como
uma raga/ para sitar e tambura." "Em março/ sugadores de néctar/
ocupam esse palco/ noutro ritmo." Transcrevi esses versos para
deixar claro que o poético nasce de uma predisposição biológica, que
virá a possibilitar a compreensão mútua, pois aqui a criação passa
necessariamente pela sensibilização de todo o organismo, com uma
energia que atinge o próprio ser. A poesia, no caso, significa uma
quebra da inércia existencial, levando a um início de compreensão
real da vida. "Nostálgica passacale/ essas horas/ quando uma rosa
que desabrocha/ harmoniza a vida! "Minto./ Não era a mesma lua./ Nem
a mesma sou." "E sobre o saibro do caminho/ a borboleta morta." "Em
pianíssimo solo/ poemizo/ e aqui inscrevo/ desvalidez e medo."
"Silêncio insuportável/ de pré-tempestade." "Enleada no tema de três
notas/ imagino um texto d'amore:/ A:M:O -- talvez, // E adormeço.
"Em surdina/ agora inútil/ o par de asas. "A cigarra que concertiza/
não verá florida/ a arvore onde se exibe.(...) Estio aberto/ como
centenas de gambiarras/ e desgarrada/ trila sua ária/ esta suicida//
num presto adágio/ onde tudo termina!
É sempre difícil tentar explicar o
poético, mas, sem dúvida, "Para Violino Solo"para mim é um exercício
de meditação sobre a precariedade da vida, que se esgota na morte
física. Para Maria José Giglio só a poesia funciona como um elemento
de superação dessa contingência, ao não necessitar de argumentações
para permanecer, livre que é em seu estado de inocência. Ao já não
procurarem as causas, as palavras se tornam auto-significantes como
emoção e fruição apenas.
Leia Maria José Giglio
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