Bruno Tolentino
Castro Alves
Contemporâneo
Castro Alves não envelheceu, antes
redimiu o tempo. E não o seu tempo, nem o nosso, mas a noção mesma
do tempo como inimigo do belo e carrasco do ser. Sua obra, que
acabei de reler a par com o melhor de Wordsworth e Byron, desafia
galhardamente aquela noção e sai-se bem dos dois confrontos. O
século e quebrados que nos separa daquela assombrosa produção de
apenas sete anos de ofício na curta vida de um jovem vai-se ele
mesmo encurtando a cada página relida. Relê-las é humilhar o tempo
que acreditávamos o dono de tudo; a esse roedor só de nossas pobres
certezas e categorias assumidas, assistimos ao poeta i-lo despindo
de seu poder de parálise pela tensão viva de cada estrofe, não raro
de cada verso num inteiro poema. Vamos voltando assim à "Cachoeira
de Paulo Afonso" como retomamos, por exemplo, com Wordsworth a "Tintern
Abbey"; nada mudou porque tudo foi transfigurado de uma vez por
todas. Se em "Child Harold" pareceu-me notar-lhe algo de uma neve
senil nas têmporas e nas cadências, em "Mocidade e Morte" a mesma
voz nos chega da dolorosa paixão de um jovem que ouvia e ecoava na
mais fina música da mente os passos da morte certa. O que repõe a
questão do poder "atemporal" — dito de transfiguração — da linguagem
de poesia. E no que consiste isso, que significa essa não
temporalidade? Distinto daquela derrapante dimensão "intemporal"
incompatível com o dizer poético (o qual supõe a busca de uma
concreção do pensamento longe de todo idealismo abstrato), esse
poder de manter em vida aquilo de que o mero tempo das cronologias
faz carniça, paradoxalmente reside numa só capacidade a conquistar
pela poesia: a de arraigar-se num dado momento com toda a força das
sutilezas do espírito. Quem diria! Elevar um discurso para fora do
alcance do poder letal do tempo significa, justamente, temporalizar
ao mais alto grau as coisas e as linguagens da mente... Estou
dizendo que o poeta máximo é aquele cujo dizer, fundado nas coisas
deste mundo, num presente vivido, tende de modo natural àquelas
alturas do pensamento a que convergem o universal, os mistérios da
sensibilidade de um povo e as sutilezas de seu idioma. A partir de
então este pode "mudar" o quanto seja — e nosso léxico preferencial
e até nossa sintaxe mudaram muito desde a composição de "Vozes d'África"
— mas não lhe será mais possível furtar nada ao impacto
emotivo-verbal que a um dado ponto na história nele encarnou-se
perfeitamente.
Estou arriscando sugerir que só a
emoção bruta ("gut emotion") tornada linguagem ao seu mais puro grau
salva das garras de abutre do tempo a fragilidade do ser, a
realidade. A arte (e não só a da palavra, esse nosso "lugar no
tempo") consegue ser nossa única perenidade revisitada; mas apenas
quando se queira um antídoto — o único de que dispomos, contra as
tentações da "intemporalidade", vale dizer, da abstração. Esta
última, ainda quando tenha parecido esplêndida, envelhece. Hugo
envelheceu, se pouco; Vigny, que lhe prefiro, algo menos; mas tenho
que, onde ambos lograram driblar até certo ponto a "lenda dos
séculos", foi onde arrancaram à fala do dia-a-dia as coisas e as
crenças de um momento e as limparam de toda banalidade corriqueira,
tornando-as noções antes de elevá-las a cumes de uma impensável
grandeza. Já Samuel Johnson é hoje quase risível, uma ponderosa
irrelevância. Browning temo que empalideça a cada nova leitura, seu
olhar ocluso e empostado parece suportar mal as ferrugens combinadas
do tempo e da Idéia... A pretensa poesia de Voltaire morreu como o
aborto de uma retórica abolida. Os exemplos são inúmeros. A
abstração e a poesia jamais se entenderam.
Dito isto, noto que, como em
Wordsworth, o que apaixona em Castro Alves não é sua paixão pelas
idéias, ou mesmo pela vida ou pelo mundo que a continha em suas
contingências; é a radical "tradução" que ele faz destas minúcias
nos termos de uma linguagem exaltada, mas paralela ao coloquial e
limpa de maneirismos, e que por isso mesmo nos chega trazendo tudo
aquilo intacto mais de cem anos depois. Arrisco portanto deduzir que
a sua, como a do vate inglês da natureza, foi uma arte do
aqui-e-agora, a visão do fotógrafo ancorado no imediato; mas,
transfigurados no poema pela linguagem nobre a que ambos souberam
transpor os ângulos do cotidiano, esses "instantâneos" no
contingente deixam ipso facto de pertencer apenas a uma época, a um
específico "lugar no tempo". E concluo que esse roedor, o tempo que
data e destrói, concede direitos de soberania a todo triunfo do
espírito fundado no particular. Triunfo esse dependente, por sua
parte, da renovação de um certo imprescindível fio transmissor a que
chamarei agora (por empréstimo a Antônio Paulo Graça) de
sensibilidade. É um conceito que venho testando contra as instâncias
da melhor arte do passado, e com Castro Alves obtive um dos melhores
resultados.
Em certo Byron cheguei a suspeitar que
a linguagem, em que pese a mestria incontestável, se tivesse em
certa medida adelgaçado com o adensamento progressivo da língua
inglesa desde seus tempos. Ora, nosso idioma não padeceu menos esse
processo, seja com a noção suicida de "ruptura" entre os excessos de
22, seja com as adiposidades e modismos acumulados desde então.
Sente-se e escreve-se cada vez mais crassamente o que se fala mal. E
no entanto em Castro Alves não percebo um emagrecimento da
substância, nem um enfraquecimento da pujança verbal. Sua leveza de
tom continua segura e firme, sua pungência modulada e convincente.
Essas espumas flutuam sem medo nas corredeiras do tempo, foram de
contingência em contingência e a todas lhes sobreviveram. Restaria
perguntar-se por quê. Talvez seja que, ao oposto daquele outro
genial capenga, seu verso continha todas as impurezas do real,
somadas a uma aderência algo mais estrita àquelas "coisas da mente"
que, ditas com a transparente singeleza e a famosa paixão que o
tornaram ilustre e amado, via assegurar que aquela voz tão sua, tão
temporal, cruzasse, negasse o tempo e viesse inteira até nós, aos
justos festejos deste sesquicentenário. Se não é algo assim o
cristalino segredo da perenidade de Antonio Castro Alves, não sei o
que seja.
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