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Bruno Tolentino

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

Bruno Tolentino

 


 

BIOGRAFIA

 

Bruno Lucio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 — São Paulo, 27 de junho de 2007) foi um poeta brasileiro. Nascido numa tradicional e rica família carioca, conviveu desde criança com intelectuais e escritores, entre eles Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Foi ensinado a falar francês e inglês antes mesmo de se alfabetizar no português. Seu avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal. Saiu do Brasil em 1964, mudando-se para a Europa, onde viveu por mais de 30 anos, tendo trabalhado com o poeta inglês W. H. Auden, e convivido com os escritores Giuseppe Ungaretti, Elizabeth Bishop e Samuel Beckett. Foi professor nas universidades de Oxford, Essex e Bristol, publicando obras em Paris e Oxford durante a década de 1970. Em 1987, é condenado à prisão de 11 anos, sob a acusação de tráfico de drogas. Cumpriu 22 meses da pena em Dartmoor.

Tolentino retornou ao Brasil em 1993, publicando, em 1994, o livro "As Horas de Katarina", pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura. Bruno também recebeu o prêmio em 2003, com o livro "O Mundo como Idéia", o qual escreveu ao longo de 40 anos.

No Brasil, o poeta teve um histórico de aparições na mídia devido a polêmicas. Numa entrevista a Revista Veja, em 1996, criticou Caetano Veloso, Chico Buarque e os irmãos concretistas Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Teve também desavenças com críticos literários e professores de filosofia da Universidade de São Paulo.

Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

Bruno Tolentino

 


 

O ESPECTRO

(A Ivan Junqueira)

 

Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura...


 

O ESPÍRITO DA LETRA

(Um poema de "A balada do cárcere")

 

Ao pé da letra agora, em minha vida
há a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida
entre as vogais do amor... Mas como vê-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que há anos-luz se esbate sem saída,

sem prazo de morrer na luz que treme?!
O mostro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: é a letra M
a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme...
 

 

O ANJO ANUNCIADOR

 

 — Ouve, Maria, a nossa
(não, não te assustes!) é uma luminosa
tarefa: retecer
o pequeno clarão que abandonaram,
o lume que anda oculto pela treva!
Porque irás conceber!
Porque a mão, desejosa
e tosca, que O tentara
reter, ainda que leve,
desfez-se ao toque, assim como uma vez
tocado o sopro se desfaz a avara,
a dura contração do peito ansiado...
Mas a haste, o jasmim despetalado,
é tudo o que ainda resta
dos canteiros do céu aqui na terra,
que um seco vento cresta
e uma longa agonia dilacera.
No entanto a morte há de morrer se tu quiseres,
ó gota concebida
bendita entre as mulheres
para que houvesse vida
outra vez, e nascesse desse fundo
obscuro do mundo,
o ninho incompreensível do teu ventre.

Não, não toques ainda
nem a fímbria do manto nem o centro
do mistério que anima a tua túnica:
aguarda, ó muito séria, a ave mansa
e recebe em teu corpo de criança
a Verônica única,
a enxurrada de pétalas te abrindo.

Em tumulto reunidas,
as cores da perdida Primavera
vão retornar, virão
numa enchente de asas, aluvião,
púrpura, sempre-viva, nascitura
estranheza do amor da criatura,
constelação descendo ao rosto teu:
é Ele, é O que reúne o coração
e o grande anel da esfera,
o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo,
a coluna de luz, o capitel que se perdeu...
Que eu

venho anunciar apenas a um esquivo,
humílimo veludo, a frágil chama
que há de crescer em ti, que hás de ser cama
ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro
e fonte e ânfora e água,
hás de ser lago
em que as sombras se afogam, que naufragam
no imenso, ó jovem branca como um lenço;
hás de conter a lágrima
do Infinito, o Seu vulto
e os tumultos da luz na travessia
entre a dádiva, a perda e a renúncia:
quando de um certo dia
cheio de luz amarga

em que serás enfim a sombra esguia
que O deu à luz e que O assistiu morrer...
Atravessa, ó Maria,
os abismos do ser,
ouve este estranho anúncio
e deixa-te invadir para colher,
mais fundo que a razão
e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio
da mais viva alegria:
entreabre-te ao clarão
da visita suave,
mas terrível, terrível, deixa a ave
do imenso sacrifício te ofender.

Ó pétala intocada,
hás de sofrer
intensa madrugada
e num lago de luz como afogada
hás de durar suspensa
entre a graça imortal e a dor imensa.

Mas canta, canta agora
como a fonte borbulha, como a agulha
atravessa o bordado,
canta como essa luz pousa ao teu lado
e te penetra e tece a nova aurora,
a nova Primavera e a tessitura
do ramo que obedece e se oferece
para o mistério e pela criatura.

Canta a alucinação,
o toque enfim possível dessa mão
que há de colher para perder e ter
o infinito que nasce do deserto
e a semente que morre se socorre
tudo o que no estertor tentava ser.

Canta a canção do lírio e do alecrim,
essa canção que és e que na treva,
na escuridão da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim
como o imenso te ampara,
ó voz tão clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d'O sem-fim,
ó mãe de Deus, canta e roga por mim
 

 

 

 

 

 

 

 

26.12.2007