Bruno Tolentino
Quero o país de volta
O poeta que passou
trinta anos na Europa se diz horrorizado com o baixo nível, acha que
o país regrediu e parte para a briga
Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino,
menino carioca de família aristocrática, gosta de dizer que é de um
tempo em que rico não roubava. O avô foi conselheiro do Império e
fundador da Caixa Econômica Federal e seus tios eram intelectuais,
como os escritores Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquinio dos
Santos, além dos primos Barbara Heliodora, a crítica teatral, e
Antonio Candido, o crítico literário. Ainda era analfabeto em
português quando duas preceptoras, mlle. Bouriau e mrs. Morrison, o
ensinaram a conversar em francês e inglês dentro de casa. Tolentino
saiu do Brasil em 1964 e, no estrangeiro, ocupou-se de árvores
genealógicas de origem erudita. Orgulha-se de ter filhos com
mulheres descendentes do filósofo Bertrand Russell e do poeta Rainer
Maria Rilke. O mais novo, Rafael, de 8 anos, nascido em Oxford,
Inglaterra, onde o pai ensinou literatura durante onze anos, é filho
da francesa Martine, neta do poeta René Char. Bruno publicou livros
de poesia em inglês e francês. Em 1994, lançou no Brasil As Horas de
Katharina, e no fim do ano passado mais dois, Os Deuses de Hoje e Os
Sapos de Ontem - todos ignorados pela crítica, pelo público e pelos
curiosos.
Aos 56 anos, já de volta ao Brasil,
Tolentino tem feito força para tornar-se herdeiro do embaixador José
Guilherme Merquior, intelectual de boa formação e polemista
musculoso. Tem conseguido aparecer. Brigou com os poetas concretos,
depois com o que considera máquina de propaganda de Caetano Veloso e
sua turma. Em seguida, com os críticos literários e os filósofos,
elevando ainda mais o tom numa entrevista publicada por O Globo,
duas semanas atrás. Fora do país, Tolentino ensinou em Oxford, Essex
e Bristol e trabalhou com o grande poeta inglês W.H. Auden. Conheceu
celebridades como Samuel Beckett e Giuseppe Ungaretti. Horrorizado
com a possibilidade de ver o filho mais novo crescendo em escolas
que ensinam as obras de letristas da MPB ao lado de Machado de
Assis, abriu fogo contra o que considera o lado ruim de sua pátria,
como explica em sua entrevista a VEJA:
VEJA - Por que tantas brigas ao mesmo tempo?
TOLENTINO - Para ver se o pessoal cai em si e muda de
mentalidade. O Brasil é um país vital que está caindo aos pedaços.
Não quero sair outra vez da minha terra, mas não posso ficar aqui
sem minha família, que está na França. Não posso educar filho em
escola daqui.
VEJA - Por que não?
TOLENTINO - Foi minha mulher quem disse não. Educar um filho
ao lado de Olavo Bilac, última flor do Lácio inculta e bela, que
aconteceu e sobreviveu, ao lado de um violeiro qualquer que ela nem
sabe quem é, este Velosô, causou-lhe espanto. A escola que ela
procurou para fazer a matrícula tem uma Cartilha Comentada com nomes
como Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e Caetano. O
menino seria levado a acreditar que é tudo a mesma coisa. Ele nasceu
em Oxford, viveu na França e poderá morar no Rio de Janeiro. Ele diz
que seu cérebro tem três partes. Mas não aceitamos que uma dessas
partes seja ocupada pelo show business.
VEJA - Qual o problema?
TOLENTINO - Minha mulher já havia se conformado com os
seqüestros e balas perdidas do Rio, mas ficou indignada e espantada
pelo fato de se seqüestrar o miolo de uma criança na sala de aula.
Se fosse estudar no Liceu Condorcet, em Paris, jamais seria
confundido sobre os valores do poeta Paul Valéry e do roqueiro
Johnny Hallyday, por exemplo. Uma vez entortado o pepino, não se
desentorta mais. Jamais educaria um filho meu numa escola ou
universidade brasileira.
VEJA - Não é levar Caetano Veloso a sério demais? Ele não é
só um tema de currículo, entre tantos outros?
TOLENTINO - Não. Ele está também virando tese de professores
universitários. Tenho aqui um livro, Esse Cara, sobre Caetano, uma
espécie de guia para mongolóides, e a mesma editora desse livro me
pede para escrever um outro, sob o título Caetano Se Engana. É
preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho
de Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é
entretenimento. E entretenimento não é cultura.
VEJA - O que você tem contra a música popular?
TOLENTINO - Se fizerem um show com todas as músicas de Noel
Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio
de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. Não se trata de
cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música popular
brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se
confunde com a erudita. Então, como é que letra de música vai se
confundir com poesia?
VEJA - O senhor não está ressentido por ele ter assinado um
manifesto contra um artigo seu sobre uma tradução do poeta Augusto
de Campos? No fundo, parece que o senhor está querendo aparecer à
custa deles.
TOLENTINO - Não tenho ressentimento nem ciúme. Nem tenho nada
contra quem assina manifesto. Se você vê um amigo seu brigando na
rua, o mínimo que pode fazer é ir lá apartar. Foi o que ele fez no
caso do Augusto de Campos. Só que assinou um cheque em branco. A
princípio achei que ele tinha entrado de gaiato, e lhe dei o
benefício da dúvida, sobre uma questão muito delicada de tradução e
de cultura que ele não está capacitado para julgar. Nem ele nem Gal
Costa. Que intelectuais são esses? Se os irmãos Campos não sabem
inglês, imagine eles.
VEJA - Os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos não
sabem inglês?
TOLENTINO - Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por
exemplo, traduziram Rainer Maria Rilke e criaram a frase "ele tem um
pássaro", que é literal, mas que em alemão quer dizer que alguém tem
uma telha a menos, é meio doido. São péssimos poetas e péssimos
escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber.
VEJA - Por que só o senhor, e não outros críticos, diz essas
coisas?
TOLENTINO - Na República das Letras ainda estamos à espera
das diretas já. A usurpação do poder legal por vinte anos deixou-nos
seus legados nas patotas literárias que desde então controlam a
entrada em circulação, ou a exclusão pelo silêncio, de livros,
autores, obras inteiras. Nas redações dos jornais como nas
universidades prevalece a censura, e o único critério para sancionar
uma obra parece ser o bom comportamento do neófito, sua genuflexão
aos ícones da hora. Nossa crítica suicidou-se matando o diálogo, o
debate e a polêmica. Mascarados de universitários, esses anõezinhos
conseguem dar a impressão de que a inteligência nacional encolheu,
que em Lilliput só se sabe da cintura para baixo. Quem já ouviu
falar de Alberto Cunha Melo, que vive escondido no Recife, e é nosso
maior poeta desde João Cabral? São dele estas palavras: "Viver,
simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem". Mas José Miguel
Wisnik ora é crítico, ora é letrista e compositor, portanto é
catedrático. Os violeiros empoleiraram-se nas cátedras e Fernando
Pessoa virou afluente da MPB. Não é à toa que até em Portugal os
brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhada logo à
primeira frase: "Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões
quando a banda passou e..." É preciso perguntar dia e noite: por que
Chico, Caetano e Benjor no lugar de Bandeira, Adélia Prado e
Ferreira Gullar?
VEJA - Por que o senhor acha os críticos brasileiros ruins?
TOLENTINO - O que os críticos disseram sobre meus trinta anos
de poesia? Só, desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não
suficientemente progressista. Que eu, o escritor Diogo Mainardi e -
como é mesmo o nome do marido da Fernandinha Torres? - o diretor
Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos de
gente famosa. Quer dizer, chamam a atenção para a pessoa e não para
a obra. E toda pessoa é discutível. Eu sou meio apalhaçado mesmo. A
minha biografia é interessante, meio cinematográfica, e assim é como
se eu não tivesse escrito nada. Uma espécie de Ibrahim Sued das
letras.
VEJA - Mas o que aconteceu com os críticos para que se
tornassem tão incapazes, na sua opinião?
TOLENTINO - A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um
haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e
verbas. É uma gente venal, vendida, que controla as nomeações para
as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco como eu?
Todos, de Roberto Schwarz a David Arrigucci, foram formados pelo meu
primo Antonio Candido, que é um geriatra nato.
VEJA - Caramba... Não sobra nenhum crítico brasileiro?
TOLENTINO - Sobra, evidentemente, Wilson Martins, que não tem
lá muito gosto poético, mas enfim...
VEJA - O senhor também não sobra?
TOLENTINO - Em vários sentidos. Não tenho onde escrever. Sou
herdeiro, e me considero assim, da combatividade crítica de José
Guilherme Merquior. Crescemos e fomos amigos juntos, tínhamos idéias
convergentes embora nem sempre coincidentes. Quando ele morreu, em
1991, houve um grande suspiro de alívio entre nossos crititicos e
poetômanos. Infelizmente ele era embaixador. Eu não sou embaixador
de nada. Essa gente está morta de medo de que eu venha a ter uma
tribuna. Não me importa ser celebrado lá fora. Não faço falta lá, há
muitos outros como eu. Aqui, com esta independência, cultura,
erudição e combatividade, não tem outro que nem eu.
VEJA - Sem embaixada, o senhor vai ser só poeta?
TOLENTINO - Minha obra poética está basicamente terminada.
Escrevi poesia por mais de trinta anos e não conheço nenhum outro
poeta, além de Manuel Bandeira, que tenha conseguido escrever bem
além dessa média. A partir daí, decai. Estou transferindo o meu
esforço para o ensaio. Falar, por exemplo, dos males que a ditadura
causou ao país me parece cada vez mais um sintoma do que uma causa.
É um sintoma do Febeapá, vem no bojo dele. A imbecilidade já
crescia. A ditadura simplesmente institucionalizou a falta de
respeito pela realidade, pelo próximo, pela legalidade. A verdade
foi substituída pela verossimilhança, a literatura, pela imitação da
literatura.
VEJA - O senhor poderia dar exemplos disso?
TOLENTINO - Foi Wilson Martins quem levantou essa idéia, ao
dizer que as obras de Chico Buarque e Jô Soares eram imitações da
literatura. Auden, o Drummond lá dos ingleses, também dizia algo
parecido. A gente lia um cara e concluía que ele era muito ruim.
Auden discordava, dizendo que ele era muito bom. "Faz a melhor
imitação de poesia que já li", dizia. Parecia piada mas não era.
VEJA - O senhor acha que a imitação é ruim?
TOLENTINO - A imitação da literatura se dá quando se fecha no
círculo de ferro na modernidade. Ela obriga o leitor a seguir moda,
busca efeito imediato, como se tudo começasse por você, naquele
momento. A verdadeira literatura está sempre acuando tudo que a
precedeu. Quincas Borba, de Machado, contém toda a novelística
russa, e também Balzac. Wilson mostrou com muita acuidade e
mordacidade que os romances de Chico são uma reedição do nouveau
roman, que já morreu. Agora morreu a última representante dele,
Marguerite Duras. Conheci toda aquela gente do nouveau roman, Alain
Robbe-Grillet, Michel Butor, e saí correndo. Chato existe em todo
lugar, não só no Brasil. Mas Wilson foi injusto com a imitação do
Jô. É uma coisa que não pretende ser mais do que aquilo mesmo,
divertir.
VEJA - Por que o senhor não vai ensinar o que sabe nas
universidades?
TOLENTINO - Só entro numa universidade disfarçado de cachorro
ou levado por uma escolta de estudantes. Sou um vira-lata muito
barulhento. Não vão me convidar para nada porque eu quero acabar com
os empregos e mordomias deles. Quero que eles passem por todos os
exames de Oxford para ver se sabem mesmo alguma coisa.
VEJA - Então as universidades não servem para nada?
TOLENTINO - A escola pública desapareceu. A fórmula de
sobrevivência do país é a trilogia emprego público, de preferência
com aposentadoria acumulada, condomínio fechado e plano de saúde.
Esse é o apartheid construído por uma elite analfabeta e totalmente
irresponsável que entregou nossa cultura. Nem estou falando da nossa
classe média, que tem dinheiro para gastar em boates e shows e sair
de lá gargarejando cultura.
VEJA - O senhor tem acompanhado a produção intelectual das
universidades brasileiras?
TOLENTINO - O departamento de filosofia da Universidade de
São Paulo nunca produziu filosofia nenhuma, não por inépcia ou
preguiça, mas por um estranho espírito de renúncia parecido ao
espírito de porco. Cultivavam a crença de que só poderia nascer uma
filosofia no Brasil "ao término de um infindável aprendizado de
técnicas intelectuais criteriosamente importadas", como diz um
professor de lá. Mais urgente do que filosofar era macaquear os
debates dos "grandes centros" produtores de cultura filosófica. O
que significava tomar o padrão europeu do dia como norma de aferição
do valor e da importância do pensamento local. Imaginando ou
fingindo preservar a mente brasileira de uma independência
prematura, o que os maîtres à penser da USP fizeram foi apenas
incentivar a prática generalizada do aborto filosófico preventivo.
Não espanta que, por quatro décadas, o "rigor" (com aspas) uspiano
não produziu outro resultado senão o rigor mortis de uma filosofia
que poderia ter sido o que não foi.
VEJA - Mas José Arthur Giannotti escreveu um livro de
filosofia, Apresentação do Mundo, que foi muito elogiado...
TOLENTINO - É, ele escreveu um besteirol sobre Ludwig
Wittgenstein saudado em suplementos de várias páginas como marco do
nascimento da filosofia no Brasil. É uma audácia depois de Mário
Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Pereira da Silva e Olavo
de Carvalho. Nós temos uma filosofia nativa, isso sem falar da
filosofia de cunho religioso, teológico, que eu não vou citar porque
sou católico e vão dizer que estou puxando a brasa para a sardinha
da Virgem Maria. Passei cinco meses garimpando nas páginas daquele
livro e não encontrei nada que não fosse uma leitura do que
Wittgenstein acha da dificuldade lingüística de compreender a
realidade. Isso a gente já sabe, a partir do próprio Wittgenstein.
Uma filosofia nacional não tem nada a ver com isso.
VEJA - Tem a ver com o quê?
TOLENTINO - A cultura filosófica brasileira é quase nula.
Nossos professores gastaram décadas lendo Marx, em vez de Husserl.
Aqui só dá o tripé Kant, Hegel e Marx. E onde está a grande tradição
escolástica que vai de Aristóteles a Husserl? Isso não é lido nem
discutido aqui. Mas existe uma filosofia brasileira. Reale e Olavo
de Carvalho, que não se formaram em lugar algum, não perderam tempo
com essa estupidez. Foram estudar e aprender as tantas línguas que
falam. Eu, quando tenho dificuldade com latim, grego ou alemão, é
para eles que telefono.
VEJA - O senhor não está exagerando, sendo duro demais?
TOLENTINO - Não. Não passei nenhum dia aborrecido aqui.
Sempre encontro gente inteligente. Quando cheguei à Europa, não tive
nenhum complexo de inferioridade. É verdade que eu conheci em casa o
que o Brasil tinha de melhor. Faço parte do patriciado brasileiro. E
não via diferença entre Ungaretti e Manuel Bandeira, só de língua.
Era a mesma coisa. Não havia um Terceiro Mundo na minha cabeça. Eu,
quando pequeno, conheci Graciliano Ramos e Elisabeth Bishop. Só
havia gente dessa categoria.
VEJA - Dá a impressão de que só agora se começou a falar e a
escrever besteira no país...
TOLENTINO - O besteirol, se havia, estava lá longe, nos
cantos. Hoje ele está no centro. Tem razões mercadológicas, de
dinheiro. Os artistas devem ganhar muito, muito dinheiro, para ir
gastar em Miami. Só não é possível que esses senhores usurpem a
posição do intelectual. Eles são um formigueiro com pretensão a
Everest.
VEJA - Não é bom para o país ter um intelectual na
Presidência da República?
TOLENTINO - Votei no Fernando Henrique Cardoso porque era uma
oportunidade única, desde Rui Barbosa, de ter um intelectual no
poder. E o que ele fez na sua primeira entrevista coletiva? Citou
Machado de Assis ou Euclides da Cunha? Não. Citou o mano Caetano.
Uma coisa tão espantosa quanto Rui Barbosa, se tivesse ganho a
eleição, citasse Chiquinha Gonzaga. O Brasil que eu conheci, e do
qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade
intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o
Brasil. Quero saber quem seqüestrou a inteligência brasileira. Quero
meu país de volta.
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