Castro Alves
Edilene Matos
Castro Alves - A sedução da voz, o verso
in Jornal A Tarde, 15/03/97
Partindo do entendimento de voz como “sopro de vida”,
como um ponto onde se assentam os movimentos esculpidos do aparelho
fonador, portanto, aliando uma permissividade corporal, estendo o
mito de Castro Alves à sua voz que pulsava Logos e Eros, voz sonora
e musical, e remeto a Paul Zumthor quando se refere aos poetas
medievais, estendendo o seu pensamento à “performance” do poeta
romântico, que dá continuidade a essa tradição medieval: “Palavra
gesticulada dos poetas, a música, a dança, esse jogo cênico e verbal
que é linguagem do corpo e colocação em obra das sensualidades
carnais” (ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo, Companhia das
Letras, p. 245).
A eficácia da palavra cantada, pronunciada por um
poeta é de tal ordem que atinge o real, tornando-o construtor do
mundo, do socium. Nessa perspectiva, encaminha-se em organizações
míticas e o poeta atinge a condição do divino, situação privilegiada
e originada pela magia da palavra que move céus e terras, que
entroniza nos altares dos deuses um humano.
O charme da voz, a sedução, “sortilégios de palavras
de Mel” remete-nos a Peithó e ao seu poder de fascinar,
correspondendo “no panteão grego, ao poder que a palavra exerce
sobre o outro” (DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia
Arcaica. Rio, Zahar, 1988, p. 38). Evidente que se trata de uma
potência ambivalente: benéfica e maléfica. Essa sacralização se dá
em nível de uma incontida euforia coletiva, provocada pelas
repercussões no imaginário social. O poeta como um mago, um
possuidor de caráter advinhatório, que lhe é conferido pelo poder da
palavra, institui um espaço social que lhe permite a perpetuação do
mito.
Tal qual a Calíope, de Hesíodo, retórica de bela voz,
a voz do poeta Castro Alves circula, miticamente, conduz o povo pela
persuasão e não pela violência, ressuscitando o caráter de poder que
o poeta possuía na sociedade grega até a decadência do “aedo”,
considerado parasita na sociedade democrática.
De todo modo, Castro Alves segue uma tradição,
culminando na denominada “oratória baiana”, que vem dos primeiros
tempos da Baía de Todos os Santos, de Vieira com Os Sermões,
passando pelo seiscentista Gregório de Mattos (cuja alcunha “Boca do
Inferno” aponta para a importância da boca como orifício de onde sai
a voz) à Rui Barbosa, Otávio Mangabeira e outros. Também o povo
adota essa eloqüência, a exemplo do popular “Jacaré” (que subia nos
caixotes improvisando palanques e, diariamente, reunia curiosos à
sua volta, em qualquer espaço de rua, para ouvi-lo em seus discursos
inflamados) ao não menos conhecido poeta de inusitada performance,
Cuíca de Santo Amaro - Leiam, leiam. O marido que passou o cadeado
na boca da mulher” –, aos jovens artistas que aproveitam qualquer
intervalo das músicas nos trios elétricos e enviam as suas mensagens
loucas ou atrevidas ou acertadas, levando uma verdadeira multidão ao
delírio dionisíaco no carnaval da Bahia.
É sabido que Castro Alves e Tobias Barreto disputavam
a glosa de motes nos intervalos das encenações no Teatro Santa
Isabel, no Recife, assistidos, sobretudo, pelos alunos da Escola de
Direito, centro de onde borbulhavam as novas idéias da época,
1860/1870. Admiradores de um e outro lado tomavam partido de um ou
outro improvisador. Castro Alves, 10 anos mais jovem, era o
quixotesco moço de arrebatadas emoções. Tobias Barreto, germanófilo,
preocupava-se com as novas idéias positivistas. E o público,
evidentemente, era o vencedor!
O depoimento mais remoto sobre o timbre poderoso da
voz de Castro Alves foi dado por um Martins Francisco Terceiro, neto
de José Bonifácio, O Patriarca, contando que, ao visitar o poeta,
ficou vivamente impressionado com a firmeza, vibração e sonoridade
da sua voz.
Se Rui Barbosa, conterrâneo e contemporâneo, que
chegou a dividir aposento com Castro Alves, em São Paulo, disse dele
“encanto irresistível, desses que transfiguram um orador ou poeta”,
o paraibano José Camelo de Mello Rezende, autor do clássico folheto
de cordel O Pavão Misterioso, no auge de sua indignação, cantou:
“Levantai-vos Castro Alves/do túmulo onde dormes/Vinde já neste
momento/Com vossa lira feliz/Permutar as Vozes d’África’/Pelas de
vosso país.”
Se a linguagem verbal origina-se da linguagem
gestual, entende-se porque a estátua do poeta Castro Alves, erguida
no umbigo da parte alta da cidade do Salvador, tem o gesto de braços
e mãos estendidos, olhos contemplativos e repousados na enseada da
Baía de Todos os Santos, numa atitude de redentor e salvador do seu
povo, homenagem àquele que lhe entregou a praça: “A Praça Castro
Alves é do povo, como o céu é do avião”, um espaço de completa
liberdade, sugerido pela inscrição no ar, pelo vôo livre e altaneiro
do condor. Num pedaço de mármore e bronze, a eternização do mito,
demonstração do desejo de fica-te aí para não apagar a memória do
seu povo, numa espécie de evocação às musas que têm o poder de fazer
os poetas lembrar-se. Uma revivificação corporificada, em que os
acordes da voz são sugeridos pelo gesto declamatório, fazendo-me
recorrer, mais uma vez, a Paul Zumthor em um de seus geniais
insights: “A voz jaz no silêncio do corpo como se trouxesse o corpo
na sua matriz” (ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Vo São Paulo, Companhia
das Letras, 1993, p. 241).
O herói-poeta, do alto da sua estátua, espaço vazio e
revestido de cimento nas mesmas medidas do homem, de início morto
para o mundo, se descobre vivo em um mundo que ele parece contemplar
à distância. Estas linhas que demarcam a estátua de Castro Alves
(propositadamente inaugurada em 2 de julho de 1923, centenário da
Independência da Bahia, onde o avô materno – Periquitão – lutara e
saíra como herói de guerra), e ao longo das quais se moldou, se
definem umas em relação às outras, convergindo para um sentido desse
grande texto, que não se dissocia daquele espaço determinado, mas
não fica nele circunscrito.
Aqui, vale retomar a idéia de Ivan Bystrina ao se
referir aos padrões de solução para a assimetria, apontando a total
radicalização do que denomina segundo procedimento – o da inversão,
que é um mecanismo totalmente simbólico (BYSTRINA, Ivan. Semiótica
da Cultura – Pré-print. São Paulo, 1995).
As ideologias fazem um amplo uso da inversão, nesse
contexto exemplificada com a morte, momento seminal para o
nascimento de um mito reafirmação da vida sobre a morte, o que, de
certa forma, encontra eco em Georges Bataille quando afirma:
“Reproduzir-se é desaparecer” (BATAILLE, Georges. Les larmes d’Eros.
Paris, Union Générale Éditions, 1985, p. 70).
O tema simbólico da estátua de Castro Alves é
reproduzido em cartões-postais e em sua base são depositadas flores,
regularmente. Integrando física e emocionalmente a paisagem da praça
onde está instalada, a estátua, uma figuração plástica, impõe a
presença do poeta no cotidiano, gesticulando e falando ao modo da
criação de Pigmalião.
Tal qual a estátua do Cavaleiro de Bronze, uma das
geniais obras poéticas de Puskin, que se anima e abandona o seu
lugar para perseguir o sedutor de sua viúva, a estátua de Castro
Alves guarda e confere liricidade aos passantes, chegando a aplaudir
a alegria do seu povo nos momentos de descontrações dionisíacas.
A fronteira entre a vida e a massa imóvel e morte se
apaga nesse desenho e a estátua, de aparente vida fictícia, se
afirma, impondo a sua presença corporificada no mito do poeta
Antônio Frederico de Castro Alves.
Edilene Matos é escritora e professora universitária,
no momento cumprindo doutorado de literatura na PUC-São Paulo.
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