Luís Vaz de Camões
Se obrigações de fama podem tanto
Se obrigações de fama podem tanto
que inda de Helena vive hoje a memória,
fazendo cada vez maior espanto;
se também de Lucrécia a lívia história,
inda que já passada, cá florece,
e por fama e triunfo hoje têm glória;
se a perfeição de Laura nunca esquece,
também é que por fama laureada
nos ficou por Petrarca, e hoje crece;
e se aquela cruel troiana espada,
deu com a morte vida à formosura
de Dido, por Virgílio celebrada;
e se Vénus formosa, hoje segura
se apresenta em mil versos, e Diana
com as nove Irmãs de Apolo tem ventura;
que fará a formosura soberana
de Figueiroa ilustre, de quem quero
cantar com doce lira e mantuana?
Mas se me ela não falta, dela espero
cantar, não destas já, que já acabaram;
destas cante Virgílio, cante Homero,
que, se outras com seus versos celebraram,
foi que, por sua idade, a desta dama
- por inda estar no Céu – não na alcançaram.
Mas tinha-lhe a Ventura oriental cama
guardada lá em Damão por que, nascendo,
perder fizesse às outras glória e fama.
E enquanto alegre declarar pretendo,
vós, pai de tal tesouro, dai-me ouvidos,
para dele dizer mais do que entendo.
Não reproveis meus versos de atrevidos;
antes dai-lhe louvor, para que sejam
de tal dama, e de vós, favorecidos.
Que milagres de amor farei que vejam?
Direi os olhos belos, boca e riso,
mil partes, que outras damas ter desejam;
cabelos de ouro, enfim seu grande aviso,
sua arte, perfeição e formosura,
que na terra nos mostra um paraíso.
Que mais? O grave aspeito e a brandura,
a boca de rubis, cheia de perlas,
das cristalinas mãos a neve pura.
Senhora Dona Maria, entre as mais belas,
vós sois quem nossa idade hoje enriquece
e entre elas sois qual sol entre as estrelas.
Por vós Damão, Senhora, hoje florece,
por vós as Musas já do sacro monte,
donde contino o louro verde crece,
vos vêm apresentar, da clara fonte,
de pálidas violas coroadas,
as pegáseas flores de Heliconte.
A vós se vêm cantando, rodeadas
das Ninfas que o dourado Tejo cria,
com suas doces liras temperadas;
e com seu suave canto e melodia,
chegadas a vós já, dizem, cantando:
«Esta é por quem Apolo emudecia.
Esta é por quem Vertumno desprezando
Pomona, de contino se abrasava,
na menos parte sua imaginando.
Esta é por quem em fonte se tornava
o avô de Faetonte, e por que Orfeu
as fúrias infernais aquebrantava.
Esta é por quem só Tróia se perdeu.
Esta é a quem Páris deu a maçã de ouro,
e esta por quem Orlando endoudeceu.
Esta é quem, desde o Ganges até o Douro,
só sem falta compôs a Natureza,
do Índico oriental todo o tesouro.
Esta é quem trouxe a luz toda à nobreza
dos de Lião Fajardos, que descende
do real tronco ingrês, na mor alteza.
Esta é a flor do Lago, que se estende,
e em quem do novo nasce a real planta.
Esta é a quem o mesmo Amor se rende.
Esta é por quem a Aurora se levanta,
na parte oriental, mais clara e pura.
Esta é por quem, morrendo, o cisne canta.
Esta é por quem nos dotou só a Ventura
de mil primores cheia, colocada
em rara perfeição de formosura.
Esta será de nós sempre cantada,
e dos novos Poetas mil louvores
terá com fama eterna e sublimada.
Na festa de deus Pã cem mil pastores
desta felice terra a ti cantando,
mil ramos levarão cheios de flores;
a ti as suas lutas dedicando,
seus jogos pastoris de cem mil partes,
com versos te estarão sempre louvando.
E tu, que de teu ser nunca te partes
com formosura e graça de contino,
com que por fama ao mundo te repartes:
com rosto branco, alegre e peregrino,
aceitarás seus versos, coroada
de rosas e de louro a ti só dino.
Dali, de nosso coro venerada,
terás cargo da selva de Diana,
e entre nós tu serás mais estimada.
Dali, ó alta Dea e soberana,
governarás o índico Oriente
e todo Estado além da Taprobana.
Dali correndo irá de gente em gente
tua fama, fazendo esquecida
a das antigas damas do Ocidente,
ganhando teu louvor imortal vida.»
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