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Luís Vaz de Camões




Não me julgueis, Senhora, a atrevimento






Não me julgueis, Senhora, a atrevimento
o que me faz fazer um mal tão forte
que não me basta nele o sofrimento;

que tal me traz já agora minha sorte
que me faz buscar vossa crueldade
donde só por remédio espero a morte.

Não vos pude calar esta verdade,
porque força não tem poder humano
contra outro, que não tem humanidade.

Amor, que tudo faz para mór dano,
me deu o mal, levou-me o sofrimento.
Ah, duro Amor, cruel e desumano!

Não vos lembre, Senhora, meu tormento,
que este bem o merece a ousadia
de eu empregar em vós meu pensamento.

Lembro-vos um amor que, cada dia,
em mim tão verdadeiro e firme crece
que alheio me traz já do que soía.

Não peço que o pagueis como merece,
que não mereço eu tanto; mas só peço
que por mim não cuideis que desmerece.

Porque, se só por si é de tal preço
que a suprir basta seu merecimento,
quanto eu de minha parte desmereço;

bem vejo que em tomar o sofrimento
para viver, melhor remédio fora
que um tão desordenado atrevimento.

Mas eu, que do viver menos já'gora
de todo a livro, pois crecendo
vão com a vida os males cada hora,

vos quis manifestar meu mal, sabendo
a quanta desventura se aventura
quem pretende fazer o que eu pretendo.

Quisesse – oh, oxalá! – minha ventura
que castigásseis vós esta ousadia
com üa cruel morte, triste e dura;

que não seria morte, mas seria
um suave remédio doce e brando
deste mal, que me mata cada dia.

Até quando, Senhora, e até quando
terá lugar em vós vossa crueza,
e a morte não, em mim, que a estou chamando?

Abrande meu amor vossa dureza,
que esta alma em si transforma com tal cura
que já não é amor, mas natureza.

Abrande já üa vida, em que só dura
a alma, por que veja e exprimente
que não tem fim a grão desaventura.

Abrande já üa dor que juntamente
a vida penetrou e a alma triste,
e lhe roubou o estado seu contente.

Mostrai-vos poderosa em quem resiste
em desobedecer ou enojar-vos,
e não já contra quem vos não resiste.

Em quem cuidar que digno foi de amar-vos
mostrai vosso poder, pois o merece;
em mim não, que o não sou tão-só de olha-vos.

Atentai por üa alma que se esquece
de si, porque em vós pôs sua lembrança
e tal que em nenhum tempo desfalece.

Nem suspeito que possa haver mudança
num coração que mais que a si vos ama.
Dai-lhe já morte, ou vida, ou esperança,
que tudo será glória por tal dama.



 


 

 

 

 

 

20/03/2006