Luís Vaz de Camões
Variante da mesma elegia no Cancioneiro de Fernandes Tomás:
Belisa, uma só alma desta triste,
um só descanso meu, uma só vida,
em que todo meu mal e bem consiste;
Belisa, a quem esta alma está rendida
com tão sobejo amor, tão de verdade,
que o bem que tem é ser por ti perdida!
Quão contrário parece em tal beldade,
que os corações abranda com brandura,
haver tanta dureza e crueldade!
Quão contrário parece em fermosura,
que deixa atrás tudo o que é humano,
condição desumana, áspera e dura!
Quão mal parece aquela que com engano
daria a vida a quem lhe está sujeito
querer desenganar para mor dano!
Quão mal parece um puro amor perfeito
não ser com outro tal galardoado
ou, ao menos, com outro contrafeito!
Quão mal parece estar desesperado
quem tanto por ti sofre e tem sofrido!
Quão mal parece a Amor ser desamado!
Mas quão pior parece quem rendido
não é a esse parecer que tudo rende,
e pior o que está menos perdido.
Quanto pior parece quem defende
ser essa fermosura sempre amada
e quanto há-de ser não o que pretende!
Oh, que cousa será tão escusada
cuidar ninguém que podes tu ser vista
que a vontade não fique subjeitada!
Mal conhece o poder de tua vista
quem cuida que o que nela acaso alcança
pode ter modo com que lhe resista.
Quão bem pareceria uma esperança
no merecer contino por amar-te
não sempre a amor mas traz desconfiança!
Quão bem podia eu meu mal mostrar-te,
se o quisesses tu ver, porque merece
que queiras alguma hora abrandar-te.
quão bem parece, oh, quão bem parece
um peito que a outro alheio sente
um verdadeiro amor paga merece.
Se padecer por ti continuamente
pudesse dar remédio ao que te ama,
bem poderia eu andar contente.
Mas temo que aquela ardente chama
com que este coração tanto abrasaste
te esfria tanto a ti quanto a mi inflama.
Belisa, se a beldade assi imitaste
dos que a morada têm celeste amiga,
porque a condição deles não tomaste?
Nenhum deles há lá que Amor não siga;
e até no que amor te está mostrando
te mostras mais cruel e mais imiga.
Que peito deixara de estar brando
a um amor, qual eu tenho, firme e puro,
e a um mal qual por ti estou passando?
Não digo peito já, senão que muro,
um mal que tu não queres que eu conte
não haja já tornado menos duro.
Que penedo, que bosque ou duro monte
me negou seu favor e sua ajuda,
que bravo mar, que brando rio e fonte?
Nenhuma cousa há hoje agreste e ruda
que a meu mal não mostre sentimento
e com o favor que pode não me acuda.
Tu, que és causa só de meu tormento,
e tu, que podes só remediar-me,
queres que meus queixumes leve o vento.
Tu, que me pagarias com amar-me,
me não queres pagar nem com a morte,
porque com isso podes contentar-me.
Tu, em quem pôs a minha triste sorte
de meu mal o remédio verdadeiro,
te mostras cada vez mais dura e forte.
Que carvalho, que enzinha ou que pinheiro,
que salgueiro, que faia alta e sombria,
que freixo, buxo, louro ou castanheiro;
que planta, enfim, das que este bosque cria
deixarão de regar, e inda hoje regam,
estes meus olhos tristes, noite e dia?
Quando a algumas destas plantas chegam
os meus tristes suspiros, lhe concedem
o favor, que os ouvidos teus lhe negam.
Se não sabem negar o que lhe pedem
as árvores silvestres, duras plantas,
que de Natureza áspera procedem;
tu, que com fermosura o mundo espantas,
e os corações mais livres mais sujeitas,
se brandamente os olhos alevantas,
porque o amor e fé tão firme enjeitas
de aquele que de estar sujeito tanto
as tuas sem-razões lhe são aceitas?
Estende pela terra o negro manto
a noite; da alegria e luz a Aurora;
e nos meus tristes olhos dura o pranto.
Não são lágrimas já as que alma chora;
mas é humor vital, que o fogo que arde
em mi, lançando vão os olhos fora.
Por onde espero já que me não tarde
de consumir a vida mal tão fero,
nem meu fado para outro bem me guarde.
Nem na derradeira hora ajuda espero
que tu, vendo em que estado me tens posto,
queiras ainda entender o que te quero.
Porque não voltarás o belo rosto
ao lugar em que então morto me vires,
não por ter compaixão, mas por teu gosto?
Nem espero que então, cruel, suspires,
nem que de dar-me morte te arrependas;
antes de ledo o rosto de mi vires.
Queira Deus que a pastor te inda não rendas
que te faça entender o que me fazes
nem que tu, no teu mal, o meu entendas.
Belisa, olha de quem te satisfazes;
porque no amor e fé, qual se te deve,
de teu merecimento são capazes.
Isto não por haver que se te atreve
no que a Fortuna dá, falsa e inconstante;
se houver nele amor, há-de ser breve.
Qual rústica bastança, ai, tão bastante,
Belisa, a merecer somente neste
qual ouro, qual rubi, qual diamante.
E, se com isto, algum cuida render-te,
entenderás daqui, claro imagino,
quão longe este estará de merecer-te.
Porque cuidar ninguém é desatino
merecer a cria a natureza
tão sobrenatural, quase divino.
Estremece só a grão crueza
que tu, cruel pastora, usas comigo,
pois o teu grão valor tanto despreza.
Estremece só o grão castigo
que tu me dás a mi, que não mereço;
estremece só ser-te inimigo.
Este que abate tanto teu grão preço
merece o mal que a mi me estás fazendo;
merece padecer o que eu padeço.
Eu só que por te amar vivo morrendo,
vê quanto sem razão tão mal me tratas,
estou por amor males padecendo.
Se cuidas que com isto desbaratas
este amor puro, sabe que te enganas,
porque mais vidas dás quanto mais matas.
São tuas perfeições tão sobre-humanas
que mais rendido então a ti me vejo,
quando me ofendes mais e mais me danas.
Não me faz a mi mal este sobejo
amor, que faz que morra e que te adore,
porque só contentar-te é meu desejo.
Consente já que nesse peito more
a piedade, que é rezão que tenha;
assi não veja cousa por que chore.
Assi no teu curral nunca se venha
o lobo carniceiro, antes se aleixe
sempre teu trigo em salvo à eira venha.
Assi o teu manso gado não se queixe
do calmoso Verão, por que vazio
de verde erva o campo sempre deixe.
Assi nunca o corrente e manso rio
as tuas sequiosas cabras negue
o seu brando licor suave e frio.
Assi nunca a vontade se te entregue
ao amor com que matas mil pastores
e a mi com mortal ódio me persegue.
Assi não sintas nunca as vivas dores
desta alma que por ti em vão suspira;
assi nunca tu sintas mal de amores.
Oh, quanto menos este mal sentira
se acertara de ser tão venturoso
que te vira algum'hora menos ira.
Mas na branda sazão do gracioso
Verão, que tudo faz alegre e claro,
e no Inverno triste e furioso,
sempre vejo teu rosto tão avaro
de qualquer mostra alegre que me engane,
quanto de fermosura ao mundo raro.
Não tens mostra que não me desengane;
não somente de que eu ledo não viva,
mas que não me atormente nem me dane.
Cada hora esta vontade mais cativa
a ti vejo, e a ti sempre enjeitá-la;
basta matar de branda e não de esquiva.
Se algum tempo já remediá-la
o teu peito cruel não determina,
não queiras sequer mais que atormentá-la.
E ainda que cuides que é indigna
de ter tamanho bem, não se te esconde
que do mal que lhe fazes não é digna.
Donde, Belisa, donde, ai, dize donde
achar posso piedade que te abrande?
Ou me acaba de todo ou me responde.
Porém, já não espero, por mais que ande,
que tu nisto te mostres piedosa,
pois que te não abranda um mal tão grande.
Mas, por mais que te mostres rigorosa,
deixar meu pensamento é impossível;
não foras tu, Belisa, tão fermosa.
E, por mais que esta dor seja terrível,
a contemplação só da causa dela
não na fará menor, mas sim sofrível.
Mas se eu viver e não puder sofrê-la,
perder por ela a vida podes ver-me;
porém não descontente de perdê-la.
Que se eu sou tão contente de render-me
a quem só de meus males se contenta,
mais o serei também de ver perder-me.
Belisa, este amor se te apresenta
para que ou o desvies ou me mates;
em ti só vive, em ti se representa.
E por mais mal já agora que me trates,
não porás nesse amor nenhum receio,
que em mi novos não são estes combates;
antes, quando estiver posto no meio,
nas mores sem-razões, no mor trabalho,
então de mor firmeza estarei cheio.
Bem vejo que contigo em vão trabalho,
pois quanto mais me vês que por ti peno,
então, cruel, contigo menos valho.
Tudo é para meu mal, quanto ordeno,
pois quanto ordeno é porque mais te ame,
e quanto mais te amo me condeno.
Forçado é que a mi mesmo desame,
pois que de mi procede o mal mais certo,
e a mi mesmo cruel imigo chame.
Se deste amor tão claro e descoberto
queres vingar-te como de adversário,
em mi mesmo vingança tens bem perto.
Inda que não me foi justo contrário,
pois para que algum mal meu acertasses,
fazê-lo eu mesmo a mi foi necessário.
Merecia isto bem que já abrandasses
esse entranhável ódio, essa ira intensa,
e que um tamanho amor não enjeitasses.
Bem vês que uma beldade tão imensa
devia acer-me honra tão pequena
que só render-me tomo por defensa.
Mas inda que este amor meu me condena,
contente fico assaz desta vitória.
Que não me dão meus males tanta pena
quanto serem por ti que me dá glória.
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