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Luís Vaz de Camões


 


 

Sonetos Apócrifos
 





Perder-me assi em vosso esquecimento

 

Perder-me assi em vosso esquecimento
não mo consente o ser por vós perdido,
que sê-lo eu e ser de vós sabido
ou consentido já eu me contento.

Mas tratardes com um descuido isento
quem vos tem o contrário merecido,
bem que me tenha a mi n'alma ofendido,
mais me ofende em vós o merecimento.

Não pode sofrer-vos culpa a vontade
que comigo vos entreguei, Senhora,
nem cousa que em vós pareça tacha.

Acho eu em vosso rosto piedade,
pois ela nele enfim com graças mora,
e toda a perfeição em vós se acha.
 


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Pois torna por seu rei, e juntamente


Pois torna por seu rei, e juntamente
por Cristo, a governar aquela parte
onde se tem mostrado um Numa, um Marte,
o famoso Luís, justo e valente.

O Tejo espere ver de todo o Oriente,
onde se tão raros dões o Céu reparte,
render a tanto esforço, aviso e arte
mil palmas, mil tributos novamente.

Os que bebem no Gange, os que no Indo,
a quem pouco valerão lança e escudo,
o render-se terão por bom partido.

O Eufrates temerá, seu nome ouvindo;
que, para dele ver vencido tudo,
já viu do braço seu tudo vencido.
 


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Por gloria tuve un tiempo el ser perdido


Por gloria tuve un tiempo el ser perdido.
Perdiame de puro bien ganado.
Gané, quando perdi, ser libertado;
libre agora me veo, mas vencido.

Venci, quando de Nise fui rendido;
rendime por no ser della dexado;
dexome en la memoria el bien pasado;
paso agora a llorar lo que he servido.

Servia al premio de la luz que amava;
amandola, esperavale por cierto;
incierto me salió, quando esperava.

La esperanza se queda en desconcierto;
el concierto en el mal que no pensava,
el pensamiento con un fin incierto.


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Por que a Terra no Céu agasalhasse


Por que a Terra no Céu agasalhasse,
o Céu na Terra Deus agasalhou;
lá não cabendo, cá se acomodou,
por que lá, de cá indo, se alargasse.

Por que o homem a ser deus por Deus chegasse
por o homem a ser homem Deus chegou;
seu divino poder tanto humanou,
por que o humano em divino se tornasse.

Vede bem o que deu e recebeu:
não se perca um bem tanto da memória.
Deu-nos a vida; a morte padeceu.

Trocou por nossa pena a sua glória.
Deu-nos o triunfo que ele mereceu:
porque Amor foi autor desta vitória.


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Porque me faz Amor inda acá torto


Porque me faz Amor inda acá torto?
O mal te faga Deos, desbergonçado,
rapaz bil, descortez, que me has guiado
a ber a Biolante, que me ha morto.

Bila, por más non berme tomar porto
en repouso ningun, desbenturado!
Mas para chorar sempre quede a bado;
as agoas dos meus olhos som conforto.

Bem vir ser tua madre Cypriana
una mundana astrosa, deshonesta,
cruel, falsa, sem lei, dura e tirana;

que a bos ella ser outra, e não ser esta,
não tiberas bontá tão deshumana,
nem fora contra mim tão cruda besta.


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Prometi já mil vezes de emendar-me


Prometi já mil vezes de emendar-me,
propus já duas mil de converter-me;
mas quando, no fim, quis determinar-me,
de quanto prometi fui esquecer-me.

Eu mesmo a mi não posso obedecer-me,
posto que bem trabalho refrear-me;
Deus sabe quanto temo de perder-me
e quanto custará poder salvar-me.

Mas qual será Senhor, o duro peito,
a quem vosso Amor não estê dando
de se poder salvar grã confiança?

Não bastam quantos males tenho feito
nem ver-me em tal estado qual eu ando
que de salvar-me perca a esperança?


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Quando descansareis, olhos cansados


Quando descansareis, olhos cansados,
pois já não vedes quem vos dava vida?
Ou quando vereis fim e despedida,
a tantas desventuras e cuidados?

Ou quando quererão meus duros Fados
erguer minha esperança tão caída?
Ou quando, se de todo é já perdida,
alcançar podereis meus bens passados?

Bem sei que hei-de morrer nesta saudade,
e que meu esperar é todo vento,
pois nada espero ao que desejo.

E pois tão clara vejo esta verdade,
bem pode vir a mim todo o tormento,
que não me há-de espantar, pois sempre o vejo.


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Quando do raro esforço que mostravas


Quando do raro esforço que mostravas
largo fruto na guerra produzias,
cortou-te a parca em flor, porque excedias
com teus feitos os anos que contavas.

De armas cobrindo o rosto, afiguravas
Marte encoberto, Amor se o descobrias;
que, se com a espada os esquadrões abrias,
com jeito os olhos após ti levavas.

Não pôde não ferir-te imigo ferro.
Vulcano foi que, com sua fortaleza,
o mais seguro arnês divide e parte.

Dá porém por desculpa de seu erro
que creu de teu esforço e gentileza
que eras filho de Vénus e de Marte.


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Quando os olhos emprego no passado


Quando os olhos emprego no passado,
de quanto passei me acho arrependido;
vejo que tudo foi tempo perdido,
que tudo emprego foi mal empregado.

Sempre no mais danoso mais cuidado;
tudo o que mais cumpria mal cumprido;
de desenganos menos advertido
fui, quando de esperanças mais frustrado.

Os castelos que erguia o pensamento,
no ponto que mais alto os erguia,
por este chão os via em um momento.

Que erradas contas faz a fantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
triste o que espera, triste o que confia!


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Quantas penas, Amor, quantos cuidados


Quantas penas, Amor, quantos cuidados,
quantas lágrimas tristes sem proveito,
de que mil vezes olhos, rosto e peito
por ti cego, me viste já banhados!

Quantos mortais suspiros derramados
do coração, por tanto a ti sujeito!
Quantos males, enfim, tu me tens feito,
todos foram em mim bem empregados.

A tudo satisfaz (confesso-te isto)
üa só vista branda e amorosa,
de quem me cativou minha ventura.

Ó sempre para mim hora ditosa!
Que posso temer já, pois tenho visto
com tanto gosto meu tanta brandura?


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Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento


Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
vos hei-de ver tão tristes e agravados?
Não bastam meus suspiros inflamados,
que sempre em mi renovam seu tormento?

Não basta consentir meu pensamento
em mágoas, em tristezas e em cuidados,
senão que haveis de andar tão maltratados
que lágrimas tenhais por mantimento?

Não sei porque tomais esta vingança,
mostrando-vos na ausência tão saudosos,
se sabeis quanto pode üa esperança.

Olhos, não agraveis outros fermosos,
tornando um puro amor em esquivança,
pois ficais, por esquivos, desdenhosos.


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Quão bem-aventurado me achara


Quão bem-aventurado me achara,
se o Amor tanto me favorecera
e assi como menos mostrar quisera
com ver no mais me contentara.

Inteiro e perfeito o bem lograra,
se meu desejo a mais se não atrevera;
pois, já que pude ver-vos, merecera
ao menos alcançara o que desejara.

Este desejo meu, esta ousadia
naceu comigo despois que pude ver-vos;
e, com vos ver, Senhora, se acrecenta.

Trabalho de o tirar da fantesia,
por quanto creio ofender-vos.
Mas, quanto mais resisto, mais me aumenta.


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Quão cedo te roubou a Morte dura


Quão cedo te roubou a Morte dura,
ânimo ilustre a grandes cousas dado,
deixando o frio corpo assi lançado
em estranha, mas nobre, sepultura!

Desta vida de cá, que pouco dura,
todo de sangue imigo já banhado,
por mão de teu valor foste levado
aos campos da imortal vida segura.

O espírito goza da ditosa idade;
e o corpo, não cabendo cá na terra,
às aves, que o levassem, se entregou.

Deixaste a todos mágoa e saudade;
buscaste morte honrosa em dura guerra;
deu-te o Tejo, e o Ganges te levou.


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Que doudo pensamento é o que sigo?


Que doudo pensamento é o que sigo?
Após que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi, que não me entendo;
nem o que calo sei, nem o que digo...

Pelejo com quem trata paz comigo;
de quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pretendo?
Quem do meu próprio mal me faz amigo?

Porque, se naci livre, me cativo?
E pois o quero ser, como não quero?
Porque me engano mais com desenganos?


Se já desesperei, que mais espero?
E, se inda espero mais, como não vivo
esperando algum bem de tantos danos?


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Que esperais, esperança? Desespero


«Que esperais, esperança?» «Desespero».
«Quem disso a causa foi?» «Üa mudança».
«Vós, vida, como estais?» «Sem esperança».
«Que dizeis, coração?» «Que muito quero».

«Que sentis, alma, vós?» «Que amor é fero».
«E enfim, como viveis?» «Sem confiança».
«Quem vos sustenta, logo?» «Üa lembrança».
«E só nela esperais?» «Só nela espero».

«Em que podeis parar?» «Nisto em que estou».
«E em que estais vós?» «Em acabar a vida».
«E tende-lo por bem?» «Amor o quer».


«Quem vos obriga assi?» «Saber que sou».
«E quem sois?» «Quem de todo está rendida».
«A quem rendida estais?» «A um só querer».


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Que estila a Árvore sacra? Um licor santo


«Que estila a Árvore sacra?» – «Um licor santo».
«Para quem?» – «Para o género é humano».
«Que faz dele?» – «Um remédio soberano».
«Para quê?» – «Para a culpa e triste pranto».

«E que obra?» – «Reduzir Luzbel a espanto».
«Porquê?» – «Porque cum pomo fez grão dano».
«Que foi?» – «A morte deu com um engano».
«Tanto pôde?» – «Sem falta pode tanto».

«Quem sobe a ela?» – «Quem do Céu deceu».
«A que dece?» – «A subir a criatura».
«Que quis da terra?» – «Só levá-la ao Céu».

«É escada para ir lá?» – «É a más segura».
«Quem o obrigou?» – «De Amor só se venceu».
«Que amava este Feitor?» – «Sua feitura».


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Que fiz, Amor, que tão mal me tratas?


Que fiz, Amor, que tão mal me tratas?
Não sendo todo teu, que mal me queres?
E, se por teu me tens, porque me feres
e a minha triste vida desbaratas?

Se com a fera Ninfa te contratas
e de suas asperezas não diferes
a quem me aqueixarei do que fizeres?
quem y vida me dará, se tu me matas?

Ó despiadosa honra e fama,
respondes com mortal esquecimento,
não tens a tanta fé algum respeito!

Mas, já que tu não vês a quem te ama,
não vindo, não terás conhecimento
de quem de contino por ti chama.


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Quem busca no amor contentamento


Quem busca no amor contentamento
achará nele que é seu natural;
mas a substância que há do bem ao mal
é como folha que revolve o vento.

Quem foi sujeito deste movimento
não pode ter sua glória por tal
que dure num ser para sempre igual,
pois é mudável pera seu tormento.

Assi que, em Amor, se acham cada dia
estes dous contrários ambos num sujeito,
os quais por ventura são ordenados

ora em üa, ora em outra via,
em perda dos que amam, ou em proveito,
mas em nenhum momento são desesperados.


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Rebuelvo en la incessable fantasia


Rebuelvo en la incessable fantasia
quando me he visto en mas dichoso estado:
si agora, que de Amor vivo inflamado,
si quando de su ardor libre vivia.

Entonces desta llama solo huia,
despreciando en mi vida su cuidado;
agora, con dolor de lo passado,
tengo por gloria aquello que temia.

Bien veo que era vida deleitosa
aquella que lograva sin temores,
quando gustos de amor tuve por viento.

Mas, viendo hoy a Natércia tan hermosa,
hallo en esta prision glorias mayores,
y en perderlas, por libre, hallo tormento.


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Saudades me atormentam cruelmente


Saudades me atormentam cruelmente,
saudades de meu bem passado;
mas sam eu a tantos males condenado
sem razão por que posso ser ausente.

Por amor me vi um tempo já contente,
por amor eu me quis atormentado,
bem é que o meu erro veja tão passado
como com minha dor e mal presente.

Que bem mereceu pois fez tal partida
não vos ver ou não me verdes vós, Senhora,
por que assi pagasse minha vida.

Mas pois minha alma se viu e chora
não queirais que chore a sorte por perdida
ver-vos os meus olhos branda algüa hora.


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Se algüa hora essa vista mais suave


Se algüa hora essa vista mais suave
acaso a mim volveis, em um momento
me sinto com um tal contentamento
que não temo que dano algum me agrave.

Mas, quando com desdém esquivo e grave,
o belo rosto me mostrais isento,
üa dor provo tal, um tal tormento
que muito vem a ser que não me acabe.

Assi está minha vida ou minha morte
no volver desses olhos, pois podeis
dar, c'uma volta deles, morte ou vida.

Ditoso eu, que o Céu quer (ou minha sorte)
que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
ou morte, para haver morte querida.


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Se ao que te quero desses tanta fé


Se ao que te quero desses tanta fé
quando dás tormento ao coração,
meus suspiros não seriam tão em vão,
nem eu te pediria em vão mercê.

Mas é tanta a tua dureza que não crê
os males que me faz tua condição,
podendo contigo mais a sem rezão
do que é o eterno amor que em mi se vê.

E pois sempre à morte me chegaste
com desamor que não te merecia,
eu morrerei; mas sabe que ganhaste

dizerem-te as gentes cada dia:
«Ah, Senhora cruel, porque mataste
a quem mais que à vida te queria?»


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Se da célebre Laura a fermosura


Se da célebre Laura a fermosura
um numeroso Cisne ufano escreve,
üa angélica pena se te deve,
pois o Céu em formar-te mais se apura.

E se voz menos alta te procura
celebrar, ó Natércia, em vão se atreve;
de ver-te já a ventura Liso teve,
mas de cantar-te falta-lhe a ventura.

No Céu naceste, certo, e não na terra;
para glória do mundo, cá deceste;
quem mais isto negar muito mais erra.

E eu imagino que de lá vieste
para emendar os vícios, que ele encerra,
cos divinos poderes que trouxeste.


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Se el triste corazon que siempre llora


Se el triste corazon que siempre llora
sin ser obra su llanto meritoria
pudiesse ya gozar de la vitoria
de la guerra del amor, que l'empeora;

si entre los verdes arboles, dó agora
estoi apacentando la memoria,
pudiesse yo gozar por suma gloria
de ver un solo punto a mi pastora;

ni el aire, con el aire que consiente
Amor, el mi dolor se aumentaria,
ni con la de mis ojos esta fuente.

Mas, para despojar-me de alegria,
ordena mi passion que viva ausente
de quien jamas lo esteve el alma mia.


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Se grão glória me vem de olhar-te


Se grão glória me vem de olhar-te,
é pena desigual deixar de ver-te.
Se presumo com obras merecer-te,
grão pago de engano é desejar-te.

Se quero, por quem és, louvar-te,
sei certo por quem sou ofender-te.
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
que prémio quero mais que só amar-te?

Porque amor tão raso sempre fere?
ó humano tesouro, doce glória,
que quer mais a alma que te serve?

Escrita estarás em minha memória;
e a alma viverá que por ti morre;
que, ao fim da batalha, é a vitória.


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Se para mi tivera que algum dia


Se para mi tivera que algum dia,
movida com paixão de meu tormento,
tivéreis um pequeno sentimento
de quem com isto só descansaria;

a meus males por glória julgaria
e por prazeres quantas penas sinto;
e, em meio do pesar, contentamento
com tão doces lembranças sentiria.

Mas ai, triste de mi, que estou cuidando
cousas que me darão mais cedo a morte
em pago de doudice tão notória!

De que serve estar tanto desejando,
pois vosso merecer e minha sorte
me fazem duvidosa esta glória?


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29/03/2006