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Carlos Gildemar Pontes




Quando a poesia seduz e engravida



 

A poesia exerce um fascínio indescritível nos poetas e nos leitores maduros deste gênero. Sedução que provoca reação imediata: desejo de produzir, no poeta-leitor-de-poeta, e estesia e estranhamento, no leitor iniciado. O objetivo deste trabalho é mostrar como a poeta Íris Tavares foi “seduzida e engravidada” com a leitura da poesia de Drummond, escrevendo O domador do verbo: elegias a Carlos Drummond de Andrade.

A arte é a mais bela manifestação do espírito humano. Conceituá-la é buscar a essência das coisas: a ânima, de que nos falou Jung; a aura, discutida por Walter Benjamin; ou o álamo, que representa a dualidade de todo ser. Em silêncio, o homem fascina-se diante do futuro por nascer, do presente por viver e do passado, que é a nossa casa de visitas constante.

A poesia, forma superior de sublimação da intersubjetividade, proporciona o resgate de imagens conscientes e inconscientes que povoam o mundo do poeta. E estas imagens muitas vezes são simples, naturais, como os momentos que compõem a nossa existência e os nossos sonhos (que são a nossa existência paralela), vividos em silêncio. Essa questão já foi discutida noutros textos do livro Literatura (quase sempre) marginal [1]. Entendemos que “O poeta é uma soma de leituras e saberes oriundo de sua experiência sensível em contato com a matéria que o cerca”.(PONTES, 2002: 58)

A poesia reúne todos esses elementos para ligar o sonho à realidade, a racionalidade ao mistério, o óbvio ao inominável, o complexo ao natural - o indescritível estado do belo. Seja diante do fogo, em torno das cavernas, ou nas teclas do computador, o homem pervaga suas emoções entre o espanto e a descoberta do ato de criar. Assim foi com Homero, Ovídio, Dante, Camões, Rilke, Neruda, Bandeira, Quintana ou Drummond. E com esses anônimos passageiros da ilusão, os mesmos que não temem o fogo e o silêncio da palavra, o seu mínimo sentido. Quantos há pelo mundo, na obscuridade das noites, a estender seus olhos às estrelas ou às vielas fétidas das favelas, para extrair o cult movie de nossas existências?

Lembremos de um momento simples qualquer, despercebido pelo homem comum, mas que inquietou o poeta Mário Quintana, diante do papel em branco, no instante silencioso da criação. De repente, uma formiguinha atravessa a folha: estava revelada a poesia. O vazio deixou de ser silêncio para ser poesia.

O Domador do verbo: elegias a Carlos Drummond de Andrade [2], da poeta Íris Tavares, não é só uma homenagem ao poeta que foi ser gauche na vida, é um diálogo com a poesia que cada um de nós carrega no tempo/espaço das nossa pequenas ações.

Seguindo a trilha dos grandes poetas, Íris Tavares não apenas emodelou seus versos nos do outro, mas reconstruiu um caminho pessoal que começou em Santos de quarentena e ora se estende a’O Domador do verbo.

A presença de Drummond é marca vincada no semblante poético de Íris. A linguagem simples e solidária como trabalha seus poemas faz com que a poeta se ponha ao lado do “mestre” como se postaram os oráculos da Antiga Grécia em torno da pitonisa.

São 58 poemas distribuídos em três partes: Unidade, Soluz e Plurais, interligados de forma a revelar a admiração e a reverência da autora diante do poeta mineiro.

Há uma duplicidade no eu lírico da autora que se divide. O eu que se dirige a um interlocutor e o eu-outro que fala sozinho, para-si, faz a poeta encontrar-se, por vezes, sob o signo da contradição, que move a relação entre os homens. Em alguns poemas, o eu que se torna um eu-outro só espia, só ouve, incompreendido, pasmado; enquanto esse eu duplo lírico vai tecendo no poema uma linguagem de cumplicidade, projetando ora Drummond, o homenageado, ora o amante/amado real que se foi, ou vai com os dois, identificando a presença do corpo do amado no desejo de dizer, através do texto poético, o seu sentimento de solidão.
 

Eram de ferro aqueles gemidos
prisioneiros de quartos
ideais pagãos
olhos abertos
orações
corações aflitos

Agora foram-se todos
um anjo torto
Raimundo
José

E agora?

Somente imagem verde
do teu cheiro na fragrância do hortelã
(p. 16)

 

Esse sentimento de solidão individual, que é também o de solidão no mundo, vai de encontro a autoreferenciação poética tão trabalhada dentro da lírica modernista, especialmente por Drummond: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai , Carlos! ser gauche na vida.

No que retruca Íris: Ser gauche não é tão simples / Em dias que a morte reina /tudo nos parece irremediavelmente igual. (p.18)

Esse diálogo intertextual vai conduzir os poemas d’O Domador do verbo a um espelho (Drummond) de imagem fixa, silenciosa. O sentimento do mundo em Drummond vai buscar a dimensão cósmica do homem a partir da sua própria expectação e amadurecimento estético. A rosa do povo seria o livro de confirmação da sua opção pelo tempo presente.

Para Íris Tavares, esse mesmo sentimento do mundo começa a ser gerado, a partir da assumida cumplicidade com o poeta. Drummond despertou a menina que corria pelas vielas de Juazeiro do Norte para os horizontes do imaginário poético do mundo. Essa estupefação, bem comum entre os jovens poetas, provoca angústia e solidão, alimento do seu ato criador.

A solidão para a poeta tem muitas faces, numa delas chora a morte de Drummond, noutra o amante que perdeu, a poesia que não foi, a volúpia que se esvaiu e agora só resta na lembrança.
 

silêncio, um poeta descansa
[...]
Silêncio nas ruas
um país órfão
grita
silêncio
carnavais virão
ilusão virá
[...]
Silêncio
a cidade está confusa, sentida
silêncio
um poeta descansa
na ilusão da cidade
que quer dormir
(p. 24)

 

Não foge a poeta, nessa sedução solitária pelo poeta/poema, da indagação metafísica da existência. Se Drummond projetou-se no anjo torto para dizer a si mesmo que é preciso ao poeta uma gauchização da vida, Íris percebe, ao seu modo, que o medo de ser diferente aparece como constatação da vida comum, banalizada pelo cotidiano, só interrompida pela poesia.
 

Ah meu poeta sem religião!
os homens são primeiramente fetos
                depois fé
                depois sofrimento
                depois amor
                depois vida
                depois morte
                E depois?

Ah meu poeta
depois... (silêncio)
tempo agora não existe
            não conta
(p. 23)

 

Da impossibilidade de ser como o poeta à identificação do parecer ser (pois que também é poeta) ou do querer ser como o poeta, Íris faz com que a sua semelhança a Drummond se presentifique no seu discurso poético dialógico. O diálogo do poema matriz com o poema decorrente se dá de forma direta:
 

Amanheceu
e José
pensou
que o tempo
podia parar
[...]
Quem é José?
(p. 75)

 

Nas duas primeiras partes do livro, Íris se volta quase que integralmente aos motivos drummondianos. E se sente não mais que ...essa menina nascida em rimas / à cata de um verso / na pista do mestre. (p. 85)

Mas é exatamente na terceira parte do livro que Íris sai da procura/homenagem para o encontro com a sua própria poesia. O eu poético desata-se da necessidade de dizer ao poeta para dizer ao mundo, numa relação de eroticidade com as coisas que a cercam.

Tudo tem sentido através do cheiro, do sabor e do prazer. A mulher que escreve agora, naturalmente faz gemer e gritar a poesia do seu corpo em chamas.
 

Dói-me esse sorriso de cristal
gemidos de quase animais
somos?
A tarde invernou em pleno verão
       que agora escorre de mim.
(p.113)

 

É nessa sedução pelo poema que Íris nos mostra a sedução pelos encantos da vida, da existência plena do “vir a ser” do eu no poema, da mesma perplexidade que tomou conta do poeta Mário Quintana ao ver a sua folha em branco invadida pela poesia em forma de formiga. Para Íris, essa revelação pode estar no desejo que formiga em seu corpo de solidão.
 

Em cada parte do meu corpo
reflito misteriosas novenas
que desfiam num terço
aos pés da nossa cama
no sublime afã
dos meus seios
tão crentes
quanto carentes
tão majestosos
quanto simples
naturalmente orais
cúmplices – faces adormecidas
seios intumescidos, rijos
por um sublime sacrilégio
o de tocá-los
pele, papel riscado
dessa língua
mais pura e suave
que o cetim
(p.107)

 

Nessa sedução pela poesia, Íris realiza uma busca erótica que, se não se concretiza no seu corpo solitário, certamente se realiza na sua linguagem poética eivada de erotismo e prazer pela descoberta da imagem poética.

Drummond sorri, certamente. A luta com as palavras não é tão vã assim. Esse encanto, esse feitiço, quase um fetiche, faz de Íris uma admiradora (por que não dizer uma devota?) daquele que transformou a simplicidade em bandeira e mergulhou no homem sem devaneios, mas com a linguagem dos que souberam voar.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PONTES, Carlos Gildemar. Literatura (quase sempre) marginal. 2ª ed. Fortaleza: Acauã, 2002, (Coleção Ensaio Tupiniquim, v. 2).
TAVARES, Íris. O domador do verbo: elegias a Carlos Drummond de Andrade. Ilustrações de Maria Fabiane Alves Balbino. Fortaleza: Expressão, 1994


Notas:


[1] Reunião de textos sobre autores considerados marginalizados, dentre eles, os poetas João Melo, Edônio Alves, Tancredo Lobo, Gregório Guimarães e Íris Tavares .

[2] Todas as referências ao livro serão feitos apenas com a indicação da página.
 

 



Carlos Drummond de Andrade
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