Carlos Nóbrega
conversa com o também poeta
Nilto Maciel
Como a maioria dos escritores
brasileiros, Carlos Nóbrega é um desconhecido. Mora em
Fortaleza (como outras dezenas de bons poetas, contistas
e romancistas), não aparece nos jornais (e quem
aparece?), publicou cinco “livrinhos” (por pequenas
editoras, é claro) e, vez por outra, sai de casa ou da
empresa onde trabalha, para tomar um chope e conversar
com os poucos amigos, também escritores. Um deles sou
eu, que gosto de ser jornalista (do tipo antigo, sem
formação em curso de jornalismo) e de ouvir quem tem
muito a dizer. Conversei com ele (via correio
eletrônico) durante alguns dias do final do ano passado.
Só então fiquei sabendo de seu nome completo: Carlos
Alberto Medeiros Nóbrega, descendente de paraibanos.
“Nasci no Henrique Jorge (bairro popular da capital
cearense), poucos anos depois da inauguração do Conjunto
Residencial Casa Popular. Foi uma infância bárbara,
selvagem, no mato. Tão maravilhosa que ainda hoje, 45
anos depois (tenho 55) me fornece alumbramento. Depois
cresci, fiquei careca, fiz um curso de Gerência
Financeira na UFC, casei, descasei, recasei, extraí
cinco filhos daí, e escrevi uns versinhos bobos que
ficaram enfeixados nos livrinhos A sono solto, Outros
poemas, Breviário, Árvore de manivelas, O quanto sou e
8verbetes. Mais nada que mereça ser relatado, lembrado
ou registrado, a biografia é magrela mesmo”.
ENTREVISTA
Nilto Maciel – Saiba que não quero história. Evito isto.
Talvez para os pesquisadores do futuro, quando você for
morto e famoso, para os biógrafos sua história vá
interessar. Quero falar de hoje. Onde você se insere, em
que nicho da poesia brasileira você se sente (ou se
senta)? Você se sentaria ao lado de quem (sem
constrangimento, para você)? Ou não há cadeiras vazias
para você?
CN – No joguinho de palavras sente/senta, vou dizer
primeiro o que sinto sobre o assunto poesia. Nós, os
milhões de poetas soltos por aí como poeira no vento,
compreendemos muito bem que fazemos uma arte menor, uma
arte pobre, uma arte coitadinha... sempre achei que
poetas como eu não passam de músicos que não deram
certo, contistas preguiçosos, romancistas frustrados...
ou poetas pela metade. Mas fazer o que, não é?, a não
ser ficar se (me) repetindo em tudo quando é texto só
por causa de um vício que eu peguei quando conheci
Manoel Bandeira. Que me levou a João Cabral, que me
levou a Lorca, e por aí vai. Depois disso curti cada
cara em seu tempo: Francisco Alvim, outro tempo com
Leminski, etc. Mas os três primeiros ainda me perseguem.
E como eles já estão muito longe de mim no espaço, no
tempo e na glória, eu me sentaria, sim, e ficaria muito
à vontade e muito honrado, ao lado do nosso conterrâneo
Horácio Dídimo. Gosto muito dele, me ensinou muita
coisa. Quanto às cadeiras vazias, talvez eu responda
melhor assim: leio e repercuto tudo, e aqui e ali até
livro didático de matemática que não consigo entender.
Hoje estou lendo o Corão. Sei que se eu não dormisse,
nem comesse, nem trepasse, nem trabalhasse na Caixa
Econômica há três décadas (e confesso, para estranheza
de muita gente que eu adoro esse trabalho), se eu não
fizesse outra coisa a não ser ler, não daria para
conhecer um décimo por cento do que eu desejo, parece
que a falta e a ânsia de ler o que não leu vão
aumentando à medida que você vai lendo cada vez mais,
isto é uma constatação, até Pascal já disse uma vez.
Para a minha resposta ser mais clara sobre as cadeiras
vazias: para mim não há cadeiras vazias, de todo livro e
autor com quem me deparo eu aprendo um pouco ou muito,
tenho medo até de um dia ser apanhado em flagrante
delito, este pequeno texto, por exemplo, eu botei o nome
dele de plágio por medo de ele ter existido realmente
antes: O PLÁGIO// teu braço me lembra/ Vênus// Pelo
muito que teu braço /me falta// Por que não és/ pelo
menos/ apenas uma simples/ estátua? Pode perfeitamente
ter sido roubado de Ferreira Gular, ou de Waly Salomão
ou de Nilto Maciel ou sei lá mais de quem.
NM – Você prefere papas na língua ou línguas na papa?
CN – Dependendo da pressão sanguínea, do momento, eu uso
três, quatro, sei lá mais quantas formas de papa. Agora,
por exemplo, estou respondendo com as cujas na língua.
Do contrário eu diria: ô perguntinha escrota! Mas é isso
mesmo. Às vezes digo o que me vem na telha, às vezes me
policio e refaço o pensamento nas palavras. Não se trata
de ficar em cima do muro, é que, quando dá tempo, eu
temo mesmo as consequências. Afinal, como dizem por aí,
quem fala o que quer ouve o que não quer. Muitas vezes
eu falei ou escrevi (e ainda falo ou escrevo) o que quis
e depois quebrei a cara por calcular quanta energia
gastei naquilo e que foi inútil, pois eu estava errado.
Mas infelizmente ainda não consigo me controlar e lá vai
prejuízo. Afinal, por falar em papas, eu não sou o papa
nem o dalai lama, – então: ô perguntinha escrota!
NM – Foi uma brincadeira, mas consegui arrancar de você
alguma preciosidade. Agora vai outra casca de banana.
Poeta (escritor, de maneira geral) deve “falar” muito ou
só precisa escrever? Entrevista, memória, depoimento e
outros gêneros extraliterários têm alguma importância?
Você se sente à vontade ao desnudar-se assim ou prefere
se esconder ou se revelar no poema?
CN – Nilto, estou bêbado, e quero responder bêbado
(corrigi a palavra bêbado três vezes). Se o cara estiver
bêbado do que escreve, se fizer com gozo, então faça o
que lhe der na telha. Eu não faço nada além do que uns
versinhos bestas porque não tenho força pra fazer alguma
coisa grande. Quem puder tentar isso de outro jeito que
tente. Que jogue flechas do ar. Que arrisque. Alguns
atingem o alvo na mosca. Pelo que me consta Baú de ossos
é um livro de memórias, e é um monumento. O Diário de
Anne Frank é um caderno de adolescente (abstraiamos a
situação em que foi escrito), e é mais lido no mundo do
que Machado de Assis e do que Ezra Pound juntos. E eu
não me desnudo nas besteiras que escrevo: nunca o que
escrevi tem a ver com o que vivo. A verdade está na
cerveja, como não diziam os gregos. Não estou pensando
em nada, não estou calculado nada, mas estou super
inspirado. Escreverei alguma coisa. Se passar pelo
controle de qualidade de quando eu sóbrio, eu te mostro.
Ich! Tin-tin.
NM – Escrever é prazer, dor ou nada disso? Se for
prazer, é muito natural, humano. Se for dor, é
masoquismo (que também é um prazer). Pode ser também
sadismo. Fazer o leitor sofrer. Sim, o leitor sofre
quando lê, tanto quanto o escritor. Isso não o enche de
culpa?
CN – Ao contrário da música, da dança, que muitas vezes
expressam felicidade, o fato é que a literatura é o muro
das lamentações da arte. Não foi à toa que Vinícius
disse numa canção que o poeta só é grande se sofrer.
Mesmo nos contos infantis, que têm final feliz, o
assunto central é o sofrimento, a humilhação ou a
impotência. Quando rimos dos devaneios de D. Quixote nem
imaginamos que estamos rindo de nós mesmos, de quando
temos esperança. Por isso não me coloco de uma forma
pessoal no centro da pergunta. Todo autor explora o lado
escuro das pessoas, isto é, o lado escondido (pode ver:
rimos em público, mas choramos às escondidas). Não é,
portanto, uma questão de se ser masoquista, é lidar com
a matéria prima da literatura.
NM – Poesia e livro, poesia e internet. Você tem medo de
se perder no universo virtual e prefere ser visto nos
livros? De qualquer forma, você (e muitos outros) é
apenas uma fagulha? Ou acredita ser uma galáxia, uma
estrela, um brilho perpétuo no firmamento? Ter cinco
leitores é o suficiente?
CN – 1) Não faço restrição nenhuma ao computador, a ter
um blog, a ter um site com textos literários, é um meio
de publicar barato e prático e que tende,
inevitavelmente a ter prevalência sobre os meios
tradicionais; mas o fato de passar 6, 8 horas no
escritório onde trabalho lidando exclusivamente com a
máquina, me daria a impressão de que meus poemas seriam
mais uma de minhas atividades burocráticas, então por
enquanto fujo disso, a poesia me é uma atividade lúdica,
e eu não quero absolutamente confundi-la com o lado
árduo de meu outro trabalho. Por isso ainda prefiro
publicar em papel. Portanto, não é uma questão de temor,
é uma opção justificável pelas circunstâncias da minha
relação constante com a máquina. Um dia, quando eu me
aposentar, certamente tratarei disso. 2) Responderei ao
tamanho sideral desta pergunta com bem pouquinho. Nunca
serei um ser espaçoso nem no tempo nem no ar (noir?),
não sou porque primeiro não sou mesmo e depois não faço
questão, ou seja, não sofro chiliques pelo fato de não
ser, jamais irei ao Saara buscar a água rara da glória.
Faço sincera autocrítica das coisinhas que eu escrevo:
são umas tolices que a mim me divertem e a poucos
interessam, nada mais do que isto. Então talvez eu
chegue apenas a um pouco além da fagulha, para ficar na
metáfora que você está usando, digamos que se trate de
no máximo o tempo do palito de fósforo se queimar. E não
ria o riso dos irônicos por achar que estou usando de
falsa modéstia ou que seja o reconhecimento da minha
santa mediocridade, esse é um sentimento sincero que
possuo a respeito dos meus livros, e acrescento que não
sou absolutamente infeliz ou incomodado ou injustiçado
por causa de me sentir mero fogo fátuo, sou comum mesmo
e trivial, gosto de futebol, de tomar umas, de ouvir
piadas infames (só de ouvir, porque não sei contar)... –
você acha que alguém assim poderia entrar no reino da
imortalidade? Nunquinha. Quero a mortalidade e me
belisco todo dia para saber se está tudo bem. 3) Ter
somente cinco leitores realmente não é uma coisa boa,
mas fazer o que? Há algo que dói mais do que isto quando
a gente publica um livro: é a sobra. Minha primeira
publicação foi de 1000 exemplares. Quanta inexperiência,
quanta ilusão neste número! Consegui me desfazer (sic,
sic – mas é este o termo) de uns duzentos e poucos, e
aquela imagem, aquela coluna negra (a capa era preta)
que, em vez de diminuir, cada vez mais crescia aos meus
olhos, me aborrecia de verdade, me torturou durante uns
quatro anos seguidos, quando finalmente resolvi juntar
todinhos e fragmentá-los, queimá-los ou vender para o
papel velho, nem sei mesmo o que foi que eu fiz, sei que
tirei da minha frente aquele pesadelo, aquele abandono.
Hoje publico 300, 500 exemplares no máximo, e ainda
sobra... quem sabe não chegue o dia de eu publicar os
tais cinco exemplares para sentir o prazer de lançar
(que glória!) uma 2ª edição?
NM – Falamos de você e de quem é poeta (os outros), do
poema, do prazer e da dor de escrever, do livro de
poemas e dos poemas em computador, dos leitores (esses
outros que somos também nós). Você pode falar do que é
poema? O que você quer, quando escreve? Poema é para ser
lido/ouvido/visto? Quem lê, ouve e vê, precisa ser bom
leitor e bom ouvinte? Ler com (ou por) avidez/paixão.
CN – Poesia é uma manifestação dos espíritos (no
plural), por isso se mostra de formas absolutamente
diferentes. Alguns se confessam poetas cerebrais, outros
intuitivos, há quem construa textos como se estivessem
fazendo desenhos, outros compõem coisas herméticas, tudo
igualmente bom ou igualmente ruim. Mas eu não acredito
que exista a criação puramente cerebral nem puramente
intuitiva, vejo nessas classificações apenas estágios do
fazer. Quando esses impulsos (sentimentos, insights, ou
seja, o que for) se materializam, aí os textos refletem
um pouco (e às vezes apenas um mínimo) da idéia ou do
sentimento original do criador; partindo de mim,
portanto, não acredito em sinceridade absoluta, em
fidelidade absoluta, entre o produto final e a embrião
imaterial do poema. É algo totalmente transformado. Veja
bem, quantas coisas foram iniciadas a partir de um
impulso, e o cara ao tentar melhorá-las sob o aspecto
estético, terminou dizendo o contrário ou algo muito
distante de seu sentido original? Acho que esse
“desvio-padrão” acontece com todo escritor e em qualquer
gênero. O que eu acabei de dizer significa exatamente
minha vivência com a poesia, ou seja, é uma coisa
desmistificada, embora que eu jamais me definiria
cerebral... Na verdade, nunca penso muito sobre o modo
de fazer, eu a faço de maneira selvagem, primitiva, sem
estilo. O que eu posso dizer com segurança é que: 1)
algo sem nome acontece quando eu percebo que surgirá na
minha frente uma fileira de palavras que me farão
arrepiar, e aí se dá uma fuga da realidade que dura
alguns segundos (chamam isto de inspiração, mas eu
considero pejorativa essa denominação); 2) Repito quase
sempre as mesmas temáticas; são recorrentes, por
exemplo, o tempo e o destino; e sempre busco ser simples
para ser compreendido (ainda assim, uma tia minha – e
também muitas pessoas cultas falam que não compreendem
bulhufas); e 3) finalizado o texto, o que eu sinto é:
ora uma sensação de prazer parecido com o fato de ter
comido uma coisa boa, ora a de alívio por me desfazer de
um peso que estava carregando. Por fim, eu não chamaria
de paixão o sentimento que tenho pela poesia, chamaria
de alegria, pois paixão nos chega sem ser chamada e
depois se acaba, e alegria a gente busca.
NM – Para finalizar, você está contente com o que
escreveu? Pretende escrever mais? Ou escrever não é
pretensão? É sina?
CN – Não estou contente de jeito nenhum. Noventa e tanto
por cento é ruim. Um por cento talvez seja bom. Mas eu
vou continuar tentando, um dia, quem sabe, eu termine
alguma coisa que considere o resto excessivo. Por
enquanto, não. Embora eu já me veja como um veterano das
tentativas e perceba as possibilidades se escasseando,
vou continuar caçando esmeraldas, (por si só isso me
diverte pra caramba), e um dia, quem sabe, eu encontre
uma pedrinha comum, mas bem bonita. Se isto acontecer, e
quando acontecer, eu te digo, você vai ser o primeiro a
saber. Combinado? Obrigado pelas oportunidades que você
me deu aqui no seu blog.
Fortaleza, janeiro de 2011. |