Carvagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

Carlos Augusto Lima

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

14.1.2006


 

No armarinho do seu Salomão

A editora Rocco abre o baú do irreverente Waly Salomão e lança Armarinho de Miudezas, do autor. O livro traz os delírios escritos em algumas décadas de inconformismos. Waly morreu em 2003 e deixou sua verve provocativa semeando debates sobre a cultura nacional
 

 

Você pode nunca ter lido Waly Salomão. Você pode ter lido muito Waly Salomão. Você pode não gostar do que Waly Salomão escreveu. Você pode ter conhecido Waly Salomão. Você pode ter perdido a oportunidade de conhecer Waly Salomão. Um dia você pode ter achado Waly Salomão um gênio. Outro dia você já achou Waly um bobo. Você pode ter acompanhado a carreira do Waly ou, então, nunca ter ouvido falar nesse tal de Waly Salomão.

Gostando ou não, conhecendo a fundo, ou não, uma coisa é certa, se é que existe alguma coisa de certeza a essa altura do campeonato do tempo que a gente vive: impossível deixar de reconhecer a importância que teve esse sujeito torto, engraçado, meio azedo e barulhento que foi Waly Salomão. Nascido em Jequié (Bahia), em 1943, de pai sírio e mãe sertaneja, foi poeta, ensaísta, compositor, editor e assumia a alcunha de "agitador cultural", seja lá o que isso signifique. Contudo, vai ver era isso, um agito era o que Waly queria (e fazia) de melhor. Em 72 publica seu primeiro e mais emblemático livro, Me segura qu'eu vou dar um troço, prosa caleidoscópica, pós-tropicalista e influência certa para o que veio depois, na geração 70. Parcerias de peso na canção popular e, entre a década de 90 e o começo do século XXI, publica em livro o montante da sua produção poética, marcada por uma profunda oralidade, discursiva, cheia de momentos sublimes e, ao mesmo tempo, de coisas sofríveis. Em maio de 2003, Waly se foi. Partiu num rabo de foguete, virou estrela, virou entidade, orixá e deve estar sentado em lótus, ou correndo à toa e rindo de nós, aos trancos e barrancos de uma outra dimensão.

E muito. Pois no dizer de Antônio Risério, sua figura é (era) a hipérbole. Efusivo ao vivo, efusivo no texto, como se lê na recentíssima reedição, revista e ampliada, de seu Armarinho de Miudezas, coletânea de escritos, textos e delírios vários, escritos entre décadas. Esse armarinho já abrira em 1993, com uma edição da Fundação Casa de Jorge Amado. Nesta edição mais recente, por exemplo, encontramos textos publicados além 93, como seu depoimento num evento Anos 70: trajetória, produzido pelo Itaú Cultural de São Paulo, em 2001. Provocativo, Waly, mestre dos improvisos e imprevistos, tece seu discurso a partir do discurso do outro, no caso, Carlos Alberto Messeder Pereira, teórico de referência para os estudos sobre a geração marginal, um dos participantes da mesa. Aproveita e esculacha mitos, discursos já comuns sobre aquela geração, enaltece a energia da década, mas detona: "mas eu quero produzir o melhor a diante". Ainda: "quanto à década de 70, esse fóssil, eu me prefiro um míssil".

Ficar parado no tempo não dava, nem queria, o seu Salomão. Sua caixa de badulaques, miçangas e jóias preciosas continha o que havia visto de melhor, as coisas de Torquato, de Hélio Oiticica e seu "mitos vadios", a Bahia barrocodélica, um mix de Malevitch com Olodum, Allen Ginsberg, Maiakoviski em fitinhas do Bom Fim. Mas seu tempo era hoje e, entre o passado choroso e saudoso, preferia, sim, Gisele Bündchen! Tudo numa prosa maluca, num discurso desconexo, para disfarçar as fragilidades teóricas, dirão alguns. Mas para que sistemas, se o seu Salomão não dava bola para sistemas e esquemas ? Seu pacto de encruzilhada era com o torto e o rasteiro. É preciso ler Waly com olhos tronchos, mais para vesgos que azuis. Bárbaro em aforismos, seu Armarinho de Miudezas exibe as peças do fragmento, do epigrama e faz da frase solta seu melhor produto para exportação, ou importação, pois só a apropriação permite, só o plágio tem vez.

Mas, seu mel do melhor era agitar certos conformismos. Isso, Waly fazia bem e tinha como bandeira, função, em desdizer as verdades preciosas, os beletrismos, o espírito de modorra da academia e, até mesmo, de quem se dizia vanguarda, discreto e bem comportado. Pensar além, sempre. Mas com impulso e alegria, sem medo do perigo. Waly fuzila: "Chique é ser melancólico e cínico." Pois a reza era contra a cautela, a sensatez e o cuidado. Suas salvas de arrepios e o míssil que se queria era contra as boas condutas e o conformismo, de que lado viesse. Contra o amargor do pós-moderno, a batida do Olodum descendo o Pelô.

Frágil, inconstante, paradoxal, que seja, mas não se negue o valor de Waly Salomão em espetar com finíssimas agulhas a bolha da conformidade. Pois sempre é preciso ter alguém para fazer esse trabalho sujo, de desviar o rumo do trem, puxar o tapete e perder a rota do barco.

Waly cantou o ponto, deu um trago no charuto, agora vai subir. Saravá, Salomão!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

15.11.2008