Carlos Augusto Lima
14.1.2006
No armarinho do seu Salomão
A editora Rocco
abre o baú do irreverente Waly Salomão e lança Armarinho de
Miudezas, do autor. O livro traz os delírios escritos em algumas
décadas de inconformismos. Waly morreu em 2003 e deixou sua verve
provocativa semeando debates sobre a cultura nacional
Você pode nunca ter lido Waly Salomão.
Você pode ter lido muito Waly Salomão. Você pode não gostar do que
Waly Salomão escreveu. Você pode ter conhecido Waly Salomão. Você
pode ter perdido a oportunidade de conhecer Waly Salomão. Um dia
você pode ter achado Waly Salomão um gênio. Outro dia você já achou
Waly um bobo. Você pode ter acompanhado a carreira do Waly ou,
então, nunca ter ouvido falar nesse tal de Waly Salomão.
Gostando ou não, conhecendo a fundo,
ou não, uma coisa é certa, se é que existe alguma coisa de certeza a
essa altura do campeonato do tempo que a gente vive: impossível
deixar de reconhecer a importância que teve esse sujeito torto,
engraçado, meio azedo e barulhento que foi Waly Salomão. Nascido em
Jequié (Bahia), em 1943, de pai sírio e mãe sertaneja, foi poeta,
ensaísta, compositor, editor e assumia a alcunha de "agitador
cultural", seja lá o que isso signifique. Contudo, vai ver era isso,
um agito era o que Waly queria (e fazia) de melhor. Em 72 publica
seu primeiro e mais emblemático livro, Me segura qu'eu vou dar um
troço, prosa caleidoscópica, pós-tropicalista e influência certa
para o que veio depois, na geração 70. Parcerias de peso na canção
popular e, entre a década de 90 e o começo do século XXI, publica em
livro o montante da sua produção poética, marcada por uma profunda
oralidade, discursiva, cheia de momentos sublimes e, ao mesmo tempo,
de coisas sofríveis. Em maio de 2003, Waly se foi. Partiu num rabo
de foguete, virou estrela, virou entidade, orixá e deve estar
sentado em lótus, ou correndo à toa e rindo de nós, aos trancos e
barrancos de uma outra dimensão.
E muito. Pois no dizer de Antônio
Risério, sua figura é (era) a hipérbole. Efusivo ao vivo, efusivo no
texto, como se lê na recentíssima reedição, revista e ampliada, de
seu Armarinho de Miudezas, coletânea de escritos, textos e delírios
vários, escritos entre décadas. Esse armarinho já abrira em 1993,
com uma edição da Fundação Casa de Jorge Amado. Nesta edição mais
recente, por exemplo, encontramos textos publicados além 93, como
seu depoimento num evento Anos 70: trajetória, produzido pelo Itaú
Cultural de São Paulo, em 2001. Provocativo, Waly, mestre dos
improvisos e imprevistos, tece seu discurso a partir do discurso do
outro, no caso, Carlos Alberto Messeder Pereira, teórico de
referência para os estudos sobre a geração marginal, um dos
participantes da mesa. Aproveita e esculacha mitos, discursos já
comuns sobre aquela geração, enaltece a energia da década, mas
detona: "mas eu quero produzir o melhor a diante". Ainda: "quanto à
década de 70, esse fóssil, eu me prefiro um míssil".
Ficar parado no tempo não dava, nem
queria, o seu Salomão. Sua caixa de badulaques, miçangas e jóias
preciosas continha o que havia visto de melhor, as coisas de
Torquato, de Hélio Oiticica e seu "mitos vadios", a Bahia
barrocodélica, um mix de Malevitch com Olodum, Allen Ginsberg,
Maiakoviski em fitinhas do Bom Fim. Mas seu tempo era hoje e, entre
o passado choroso e saudoso, preferia, sim, Gisele Bündchen! Tudo
numa prosa maluca, num discurso desconexo, para disfarçar as
fragilidades teóricas, dirão alguns. Mas para que sistemas, se o seu
Salomão não dava bola para sistemas e esquemas ? Seu pacto de
encruzilhada era com o torto e o rasteiro. É preciso ler Waly com
olhos tronchos, mais para vesgos que azuis. Bárbaro em aforismos,
seu Armarinho de Miudezas exibe as peças do fragmento, do epigrama e
faz da frase solta seu melhor produto para exportação, ou
importação, pois só a apropriação permite, só o plágio tem vez.
Mas, seu mel do melhor era agitar
certos conformismos. Isso, Waly fazia bem e tinha como bandeira,
função, em desdizer as verdades preciosas, os beletrismos, o
espírito de modorra da academia e, até mesmo, de quem se dizia
vanguarda, discreto e bem comportado. Pensar além, sempre. Mas com
impulso e alegria, sem medo do perigo. Waly fuzila: "Chique é ser
melancólico e cínico." Pois a reza era contra a cautela, a sensatez
e o cuidado. Suas salvas de arrepios e o míssil que se queria era
contra as boas condutas e o conformismo, de que lado viesse. Contra
o amargor do pós-moderno, a batida do Olodum descendo o Pelô.
Frágil, inconstante, paradoxal, que
seja, mas não se negue o valor de Waly Salomão em espetar com
finíssimas agulhas a bolha da conformidade. Pois sempre é preciso
ter alguém para fazer esse trabalho sujo, de desviar o rumo do trem,
puxar o tapete e perder a rota do barco.
Waly cantou o ponto, deu um trago no
charuto, agora vai subir. Saravá, Salomão!
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